Biologia Marinha
O Sistema Profundo
O sistema profundo começa no limite inferior da zona circalitoral e se estende até o ponto mais fundo do oceano, abrigando três zonas mais claramente reconhecíveis:
· Zona batial - até 2.000 metros. Ambiente livre da influência das ondas e da maré, com temperatura e salinidade relativamente estáveis, somente alterada pela passagem de correntes marinhas profundas.
· Zona abissal - até 6.000 metros. Ocupa 75% do fundo oceânico e possui uma temperatura uniforme e constante de 4 ºC. A ausência de luz é completa, o que permite a existência de crustáceos e peixes cegos e impede a ocorrência de fotossíntese.
· Zona hadal - além de 6.000 metros. A pressão é superior a 600 vezes a da superfície. Abrange todas as fossas abissais.
Relevo do fundo oceânico
O relevo do fundo dos oceanos não é simplesmente plano, como o fundo de uma piscina. Ao contrário possui diversos tipos de acidentes geográficos que afetam o percurso das correntes marinhas e retratam a história geológica da Terra.
Os aspectos mais relevantes do relevo submarino são a plataforma continental, os taludes, as planícies abissais, a Cordilheira Meso-Oceânica e as fossas abissais.
As feições e o relevo do fundo oceânico são determinados por processos geológicos, em especial pela tectônica de placas. Ela faz com que as placas da crosta terrestre onde se assentam os continentes e os mares se desloquem, criando choques e afastamentos entre elas. Nos pontos de choque formam-se as fossas abissais e como resultado do afastamento surgem as Cordilheiras Meso-Oceânicas, verdadeiras espinhas dorsais dos oceanos, locais onde se forma constantemente um novo assoalho marinho com o magma que emerge pela atividade vulcânica.
A plataforma continental é uma continuação natural do relevo continental que se estende até o talude, estando sob forte influência da água e dos sedimentos que procedem dele. É onde se concentra a exploração econômica dos oceanos, como a pesca e a extração de petróleo. Costumeiramente atinge 200 metros de profundidade e alcança até 200 milhas náuticas da linha de litoral. Mas grande é a sua diversidade com relação a extensão e características. Há locais como a costa da Califórnia e o litoral cantábrico onde praticamente não há plataforma continental, enquanto que na costa russa do Oceano Ártico ela estende-se até por 1200 quilômetros. Com toda essa variedade, a plataforma continental ocupa apenas 8% do fundo oceânico.
O talude corresponde à borda dos continentes, marcando os limites entre o reino continental e o marinho. Caracteriza-se pelo predomínio do relevo íngreme e acidentado, aumentando sua profundidade em um quilômetro e meio a cada 6 ou 8 quilômetros que se avança mar adentro. Estende-se por cerca de 9% dos fundos oceânicos.
As planícies abissais são encontradas nos maiores oceanos se estendendo desde a borda do talude até a Cordilheira Meso-Oceânica, geralmente entre 2 e 5 mil metros de profundidade. Com topografia relativamente plana, ocupa grande parte do fundo do mar, passando de 80% dele. É riquíssimo em minérios e recoberto por sedimentos criados pelas carapaças de organismos planctônicos.
Além das Cordilheiras Meso-Oceânicas, as planícies abissais têm a monotonia de sua planura quebrada por outras formas de relevo menos freqüentes, como maciços, guyotes, bancos, cânions e as falhas. Os maciços são montanhas isoladas de origem vulcânica que se destacam da planície abissal. Os guyotes são montanhas também isoladas porém com formato de cone truncado, apresentando o topo plano com aproximadamente 15 quilômetros de diâmetro e até 200 metros de profundidade. Quando o guyot tem o topo mais amplo e a mais de 200 metros de profundidade, recebe a denominação de banco. Os cânions são vales estreitos e não tão profundos a ponto de serem considerados como fossas abissais. As falhas são desníveis no terreno da planície abissal, formando como um degrau.
A Cordilheira Meso-Oceânica, também conhecida como dorsais, constitui-se na principal feição das planícies abissais, acompanhando o contorno dos continentes. Por ser uma cadeia de montanhas submarinas muito altas, emerge em diversos pontos do mar sob a forma de ilhas e arquipélagos.
As fossas abissais são as partes mais profundas, menos conhecidas do oceano e menos presentes, em apenas 3% do fundo oceânico. São mais comuns na região asiática do Oceano Pacífico. No Atlântico existem duas delas, a de Porto Rico e a de Sandwich. E o Índico possui apenas a Fossa de Java. O recorde de profundidade ainda pertence à Fossa das Marianas, com 11.034 metros registrados, que foi visitada uma única vez por Jacques Piccard e Don Walsh em 1960, a bordo do batiscafo Trieste. A Lua, por outro lado, recebeu seis tripulações do Projeto Apollo que a estudaram e coletaram amostras.
Fatores limitantes
A biodiversidade e as características das espécies bentônicas do sistema profundo são determinadas pelos fatores limitantes, dentre os quais destacam-se pressão, oxigênio e sedimentos.
A pressão é o principal fator atuante nas comunidades bentônicas de grandes profundidades, responsável pela distribuição das espécies e pela sua fisiologia.
Devido à pressão, a taxa metabólica de todos os animais é menor, o que faz que cresçam mais devagar e com um tempo de vida muito maior. O resultado é a ocorrência do gigantismo abissal dos invertebrados, que podem ser dez vezes maiores que os correspondentes da superfície.
A existência de organismos pluricelulares é inviável sem a presença de oxigênio. Ainda que a ausência de luz impeça o desenvolvimento dos produtores que gerem oxigênio, seu suprimento é, via de regra, suficiente e garantido pelas correntes marinhas que trazem para o fundo massas de água bem oxigenadas da superfície.
Na medida em que aumenta a profundidade, afastando-se da plataforma continental, os sedimentos que recobrem o fundo vão-se tornando cada vez mais diferente, afetando o tipo de organismo que pode instalar-se sobre e dentro dele. Nas planícies abissais assume uma textura fina, conhecida como vaza, sendo classificada em silicosa e calcária, de acordo com o tipo de organismo que lhe deu origem. A decomposição dos restos orgânicos que afundam desde a superfície torna a vaza muito rica em nutrientes. Mas eles somente serão úteis quando levados à superfície pelas correntes de ressurgência.
Até os cinco mil metros de profundidade a vaza é predominantemente formada pela deposição das carapaças de microrganismos calcários, como os de foraminíferos e de certas algas. Abaixo dessa profundidade, denominada Profundidade de Compensação do Calcário, os sedimentos calcários estão ausentes devido a enorme pressão que faz com que o carbonato de cálcio fique dissolvido na água. A vaza calcária cobre 68% do leito do Oceano Atlântico, 54% no Oceano Índico e apenas 36% do fundo do Oceano Pacífico.
Abaixo dos cinco mil metros a vaza mais comum é a de natureza silicosa, formada a partir das carapaças de diatomáceas e radiolários silicosos, que afundam desde a superfície. Porém a maior parte do fundo oceânico é coberta por uma argila vermelha, rica em alumínio e cobre.
O basalto é o tipo de rocha mais comum no fundo oceânico, aflorando em áreas de deposição vulcânica recente e em pontos onde as correntes marinhas não trouxeram sedimentos continentais. Nódulos de ferro e manganês são também muito freqüentes.
Tanto a salinidade como a temperatura mantêm-se invariáveis abaixo de 3 mil metros, independentemente da latitude e estação do ano.
Características dos ecossistemas do Sistema Profundo
Durante muito tempo acreditou-se que o fundo oceânico fosse uma região desolada e privada de vida. Isso porque a ausência de luz impediria o desenvolvimento de produtores que sustentariam alguma cadeia alimentar. Além do mais, as tremendas pressões e a temperatura permanentemente baixa tornariam qualquer forma de vida inviável. Apenas alguns peixes, vindo de menores profundidades, poderiam se aventurar esporadicamente pelo bentos do sistema profundo.
Entretanto, a análise de um cabo telegráfico quebrado a 2.300 metros de profundidade no leito do Mediterrâneo mostrou como essa concepção era errônea. Ao ser içado à superfície, descobriu-se uma assombrosa variedade de criaturas bentônicas crescendo sobre o cabo telegráfico. Tal descoberta foi confirmada pelos cientistas em 1964 durante um mergulho na Fossa de Porto Rico, onde observaram muitas espécies vivendo a cerca de nove mil metros de profundidade.
Os traços marcantes dos ecossistemas do sistema profundo são:
· baixas taxas reprodutiva e de mortalidade,
· tempo de vida prolongado,
· limitada variabilidade genética,
· limites estreitos de tolerância fisiológica,
· lento metabolismo,
· elevada biodiversidade, que aumenta com a profundidade, atingindo o seu máximo cerca da cota de 1.500 metros.
· populações pouco numerosas para cada espécie; e portanto, com biomassa reduzida, mil vezes menor do que a encontrada na plataforma continental.
Acredita-se que esse perfil ecológico seja o resultado de um ambiente muito estável em seus fatores limitantes (principalmente salinidade e temperatura) ou da intensa competição pelos escassos alimentos, que sustentariam poucos indivíduos, ou, ainda, da maior área disponível nas planícies abissais, que favoreceria o isolamento das populações e o surgimento de novas espécies.
A vida nas planícies e fossas abissais
A dificuldade de acesso ao sistema profundo torna seus ecossistemas os menos conhecidos da biosfera, não sendo possível reconhecer claramente diferenças locais, nem caracterizar e diferenciar os habitats do bentos de grandes profundidades.
As poucas observações feitas estão restritas à alguns pontos da planície abissal. A comunidade desses locais é constituída principalmente por poliquetas, crustáceos (isópodes e anfípodes) e pepinos-do-mar; ocorrendo alguns peixes, protozoários, anêmonas, esponjas, moluscos gastrópodes de conchas frágeis, tunicados, sipunculídeos, ofiúros, estrelas-do-mar, lulas e polvos. Existem representantes de praticamente todos os filos animais, com cerca de quatro mil espécies já registradas.
Uma característica e importante comunidade dos taludes e planícies abissais é a dos detritívoros. São hemicordados, poliquetas e moluscos bivalves que vivem enterrados no sedimento, ingerindo-o para dele retirar a matéria orgânica. São responsáveis pela reciclagem de nutrientes e pela alteração da textura do sedimento, permitindo a instalação de outros organismos.
Sobre a superfície vivem os filtradores capazes de capturar partículas orgânicas que afundam desde a superfície, sob a forma de pequenos flocos brancos, convenientemente denominados neve marinha.
A cadeia alimentar nas planícies abissais carece de produtores. O primeiro nível trófico é ocupado pelos filtradores. O papel de predador do topo da cadeia é exercido, geralmente, pelas estrelas-do-mar. Predadores nectônicos – como peixes e lulas – também se alimentam desses organismos bentônicos.
Detritívoros – hemicordados, poliquetas e moluscos bivalves.
Filtradores – isópodes, anfípodes, gastrópodes, lírio-do-mar, ofiúros, pepinos-do-mar; anêmonas, penas marinhas, esponja-de-vidro, esponja-túlipa, tunicados e sipunculídeos.
Predadores - estrelas-do-mar, peixes (lagartixa-do-mar – família Macrouridae -, peixe-tripé Benthosaurus spp, pai-velho Sternoptyx spp e enguia-pelicano Scaccopharynx spp), lulas e polvos.
As fossas abissais são habitadas predominantemente por crustáceos, poliquetas e pepinos-do-mar. Em menor porcentagem, encontram-se celenterados, moluscos, estrelas-do-mar, ouriços e ofiúros, podendo chegar a quatrocentas espécies.
Mas o ecossistema bentônico profundo mais extraordinário e estudado ocupa as redondezas das fontes hidrotermais submarinas
As fontes hidrotermais submarinas
No nosso próprio planeta temos habitats tão inacessíveis e desconhecidos como o de outros planetas, povoados por seres tão estranhos que poderíamos chamá-los de “ETs terrestres”. Tratam-se das chamadas chaminés (em inglês “smokes” ou ainda “vents”), fontes hidrotermais submarinas que costumam ocorrer em grande profundidades – abaixo de dois mil metros – nas regiões de fundo oceânico com atividade vulcânica. Foram descobertas apenas em 1977, bem depois da chegada do homem à Lua.
Nas fontes hidrotermais submarinas, a água penetra em minúsculas e inúmeras fendas no solo oceânico até entrar em contato com o magma que a aquece e a “contamina” com muitas substâncias químicas que a escurece. Ao se aquecer, até quase 1.000 °C, a água aumenta de pressão e escapa com força pela abertura da chaminé, quando já resfriou até cerca de 400 °C. Desta forma, a chaminé cria ao redor um ambiente aquecido, ácido e rico em nutrientes minerais, um verdadeiro oásis em meio a um mar escuro e gelado. E não apenas oásis, mas também um autêntico “El Dorado” pelo acúmulo de ouro, prata e cobre.
As chaminés externamente parecem vulcões, mas funcionam como fontes hidrotermais. Apesar da elevada temperatura da água expelida – cerca de 400 °C -, ela permanece no estado líquido devido às imensas pressões a que está submetida, mais de 200 vezes a da superfície do mar. Na verdade, os organismos desse ecossistema não são especialmente adaptados ao calor, pois a três centímetros do fluxo principal de água quente a temperatura é de 2 ºC, típica dessas profundidades.
A fauna existente nesse ecossistema surpreendeu aos cientistas, não só por ser completamente exótica e única, mais ainda pelo fato de terem encontrado as arqueobactérias. Elas parecem ser os mais antigos organismos vivos da Terra. São capazes de usar o enxofre – exalado abundantemente pelas fontes hidrotermais submarinas – como fonte de energia (dispensando a luz solar) para transformar dióxido de carbono, água e os tóxicos nitratos em alimento para si e outros organismos.
Muitos supõem agora que a vida tenha surgido no nosso planeta em um ambiente como esse, e não na superfície dos oceanos primitivos. Experiências em laboratório, simulando as condições ambientais das fontes hidrotermais submarinas, porém sem a presença de nenhuma célula, resultaram na produção de cadeias de aminoácidos. Elas seriam as precursoras das primeiras proteínas e, portanto, da vida., como ocorreu há mais de um bilhão de anos atrás.
Acredita-se que Vênus, Marte, assim como as luas jupiterianas Io e Europa tenham ou já tiveram ambientes similares aos das fontes hidrotermais submarinas, aumentando as esperanças de se encontrar vida em nosso sistema solar.
Já foram identificadas cerca de trezentas espécies diferentes vivendo nas fontes hidrotermais submarinas, como siris, caranguejos, lagostas, camarões, anêmonas, polvos e os bizarros mexilhões gigantes com 25 centímetros de comprimento.
Na cadeia alimentar das fontes hidrotermais submarinas, o papel de produtor é assumido pelas arqueobactérias que, muito antes do surgimento da fotossíntese, permitiram o desenvolvimento da vida graças à quimiossíntese, um processo metabólico menos sofisticado e evoluído que a fotossíntese.
O mais típico e característico habitante das fontes hidrotermais submarinas é o poliqueta tubiforme Riftia pachyptila. Pode ter desde alguns centímetros até três metros de comprimento. Não possui boca, estômago ou mesmo intestino. No seu lugar há uma bolsa repleta de arqueobactérias simbióticas que lhes fornecem a alimentação. Guelras, semelhantes às dos peixes, retiram oxigênio e sulfeto de hidrogênio da água para nutrir as arqueobactérias.
Curioso habitat do fundo oceânico onde a combinação de singulares fenômenos geológicos resulta no afloramento de petróleo, metano e sulfetos, que se espalham por sobre os sedimentos. Pelo frio intenso do local, essas substâncias permanecem congeladas, sendo consumidas por raras sulfobactérias quimiossintetizantes Beggiatoa que sustentam uma simples cadeia alimentar. Elas vivem em simbiose nas brânquias de mariscos do gênero Calyptogena. Em troca de abrigo, produzem alimentos usando a matéria prima retirada da água pelas brânquias.
A elevada concentração de metano dissolvido na água cria piscinas de salmoura que, tão intensa é sua salinidade, mata a todos os peixes que entram nela.
A descoberta do primeiro afloramento frio foi realizada em 1985 no Desfiladeiro Submarino de Monterey, no litoral da Califórnia (EUA), a uma profundidade de 3.200 metros. Os cientistas ficaram surpreendidos com a imensa concentração de mariscos ao redor das piscinas de salmoura e com a variedade de formas de vida em um ambiente tão frio e profundo.
A partir do ponto desde onde aflora os compostos sulfurosos se estabelece um gradiente de concentração deles, responsável pela zonação concêntrica na distribuição das diversas espécies de mariscos, que se diferenciam fisiologicamente quanto à resistência ao metabolismo dos compostos sulfurosos dissolvidos na água. É uma situação equivalente a dos costões rochosos, onde a resistência à dessecação cria uma clara zonação entre as espécies.
Essa comunidade é formada predominantemente por vermes poliquetas, mariscos e gastrópodes. Eventualmente pode ser observada a visita de siris, estrelas-do-mar, pepinos-do-mar, isópodes gigantes e peixes.
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