Litorais recortados
Físicos tentam explicar por que variam tanto os contornos costeiros
Edição Impressa 187 - Setembro 2011
“Nuvens não são esferas, montanhas não são cones e litorais não são círculos”, disse certa vez o matemático francês Benoit Mandelbrot, que cunhou o termo fractal em 1975, se referindo à incapacidade da geometria convencional de retratar as formas da natureza. Os fractais – formas geométricas de aparência rugosa, cheia de reentrâncias – saem-se muito melhor na tarefa. Pode-se observar isso em imagens de satélite da ferramenta on-line Google Earth. Vários trechos de litorais do mundo – especialmente na Noruega, mas também no Brasil, em particular na divisa entre o Pará e o Maranhão e entre São Paulo e o Rio de Janeiro – parecem não mudar de aparência, não importa a altura da qual sejam visualizados. Partes de costa com poucos quilômetros parecem versões em miniatura de trechos de centenas de quilômetros. Essa é a principal propriedade dos fractais: a semelhança dos detalhes das partes com a figura completa.
Certos trechos de costa, porém, têm contornos mais tortuosos e dão a impressão de terem uma “fractalidade” mais acentuada, noção capturada matematicamente pelo conceito de dimensão fractal. O valor dessa quantidade pode ser de igual a 1, para uma longa praia com contorno suave, como certos trechos do litoral nordestino próximos de uma linha perfeitamente reta, até teoricamente igual a 2, para uma costa tão recortada, repleta de baías e cabos dentro de mais baías e cabos, que medir o seu perímetro com máxima resolução seria uma tarefa praticamente impossível. Análises sugerem que costas reais não têm dimensão superior a 1,6 – a maioria fica entre 1 e 1,4.
Modelos – Apesar de litorais serem citados como exemplos de fractais desde os anos 1960, só em 2004 surgiu a primeira explicação de como a natureza os esculpe. O físico francês Bernard Sapoval e seus colegas italianos Andrea Baldassari e Andrea Gabrielli criaram um modelo simples da força erosiva do mar em costas rochosas. Pelo mecanismo proposto, a tortuosidade costeira resultaria do equilíbrio entre a força das ondas e a capacidade da linha da costa de atenuá-la.
À medida que as baías e os cabos escavados pelo mar se tornam mais recortados, aumenta o poder dessas feições geológicas de aprisionar e dissipar a energia das ondas. O mecanismo seria o mesmo que torna as paredes com superfícies rugosas ótimos isolantes acústicos. Apesar de parecerem realistas, os litorais que surgiram nas simulações sempre acabavam com uma dimensão fractal de 1,33, valor que descreve bem a costa leste dos EUA e partes do litoral sul fluminense. Mas que não dá conta de toda a variedade de contornos costeiros.
Após Sapoval apresentar esse trabalho num seminário na UFC, o físico José Soares de Andrade Junior e seus alunos de doutorado Pablo Morais e Erneson Oliveira começaram a pensar em como produzir litorais virtuais com dimensões fractais diferentes. Com o português Nuno Araújo e o alemão Hans Herrmann, físicos do ETH, criaram um modelo que, embora simplifique muito a ação do mar, trata de forma mais realista a distribuição espacial das rochas. Enquanto o modelo anterior dispunha as rochas mais ou menos resistentes à erosão aleatoriamente e de forma não correlacionada ao longo da costa, o novo modelo tenta simular, com a introdução de correlações estatísticas de longo alcance no espaço, as afinidades que rochas vizinhas possuem.
“Essas correlações são capazes de mudar a dimensão fractal da costa”, conta Andrade. Desse modo, os pesquisadores puderam gerar litorais com dimensões fractais que variavam de 1 a 1,33, dependendo da distribuição de resistência à erosão das rochas.
O novo modelo sugere ainda que os litorais só assumem formas fractais quando a força do mar é equilibrada pela dureza das rochas. Se a resistência das rochas for bem maior que a força das ondas, a costa tem formato rugoso, mas não é fractal. Quando a intensidade das ondas supera muito a resistência das rochas, a costa é continuamente erodida e o litoral assume a forma de um tipo especial de fractal, chamado de autoafim. “Esse fractal tem propriedades de contração e dilatação desiguais em diferentes direções”, explica Andrade. Ele espera em breve identificar essas diferentes geometrias costeiras em imagens reais de satélite e, com ajuda de geólogos do Instituto de Ciências do Mar da UFC, verificar se a dinâmica da erosão ocorre como o modelo prevê. “Se, por exemplo, identificarmos erosão acelerada”, diz, “alguma medida de proteção poderá ser tomada”.
Como todo modelo, o do grupo franco-italiano e o da equipe da UFC são uma representação simplificada da realidade e desprezam um fator que oceanógrafos e engenheiros costeiros consideram essencial na definição da linha da costa: o relevo submarino, que determina a direção de propagação das ondas e como elas incidem sobre a costa.
Os rios de areia, fluxo de sedimentos levantados pelas ondas e carregados pelas correntes marinhas, são outro detalhe importante que os modelos desconsideram. O especialista em geomorfologia costeira Dieter Muehe, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, explica que as áreas de maior risco de erosão estão nos pontos para os quais as ondas convergem e o fenômeno acontece com maior energia.
Andrade confessa ainda não saber exatamente como incluir o transporte de areia em seu modelo, que considera uma primeira aproximação do que ocorre com os litorais em escala continental – o movimento dos sedimentos, em comparação, atuaria em uma escala menor, com a dimensão aproximada de uma praia. O grupo da UFC, que também estuda o movimento das dunas de areia, começou a investigar como acontece o transporte da areia na água. Andrade afirma: “É preciso estudar o fenômeno do ponto de vista físico em uma escala menor, antes de o transpor para uma maior”.
>Artigo científico
MORAIS, P.A. et al. Fractality of eroded coastlines of correlated landscapes. Physical Review E. 7 jul. 2011.
MORAIS, P.A. et al. Fractality of eroded coastlines of correlated landscapes. Physical Review E. 7 jul. 2011.
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