terça-feira, 20 de maio de 2014

Ossos da Terra

Satélite delimita as regiões de maior densidade da superfície do planeta
CARLOS FIORAVANTI | Edição 219 - Maio de 2014
© EDUARDO CESAR
Os Andes, uma das regiões de difícil acesso investigadas pelo Goce...
Os Andes, uma das regiões de difícil acesso investigadas pelo Goce…

Até cair no mar, em novembro do ano passado, encerrando sua missão de quatro anos na órbita do planeta, o satélite Goce (sigla em inglês para missão de estudo da gravidade e da circulação oceânica em regime estável) registrou com precisão o campo gravitacional da Terra, determinado pela variação de densidade. Quanto maior a massa no interior da Terra, maior o campo gravitacional e a aceleração da gravidade. Agora as informações estão ajudando a desvendar as grandes estruturas da Terra, principalmente de regiões de difícil acesso como a Amazônia, os Andes e a Sibéria, onde os dados terrestres são escassos. Projetado, lançado e administrado pela Agência Espacial Europeia (ESA), o Goce tem ajudado a reconstruir a história da Terra.

Usando as informações do Goce, Carla Braitenberg, da Universidade de Trieste, na Itália, determinou as regiões de maior densidade ou de maior campo gravitacional, destacando as áreas mais densas, como se estivesse observando os ossos da Terra, inacessíveis a observações geológicas diretas. Ela identificou as estruturas rochosas mais antigas, chamadas de crátons, da África e da América do Sul e detectou a continuidade das estruturas de maior ou de menor densidade dos dois continentes, como a Província da Borborema, no nordeste brasileiro, que se conectava geologicamente com o oeste da África Central. A conclusão é que esses blocos de rochas deviam ser contínuos antes de os continentes se separarem, afastando o que agora reaparece unido.

Usando o Goce, o físico Everton Bomfim, em seu doutorado no Instituto de Astronomia, Geociências e Ciências Atmosféricas (IAG) da Universidade de São Paulo (USP), detectou falhas nas medições da variação de gravidade, por terra, em áreas limitadas na Amazônia na década de 1970. Em seguida, ele verificou que o cráton da Amazônia, antes visto como único, pode ser na verdade dois – um ao norte, o Escudo das Guianas, e outro ao sul do rio Amazonas, o Escudo Brasileiro –, ainda que tenham idades geológicas próximas entre si, de até 3,2 bilhões de anos.

Essa possibilidade “poderia mudar um pouco a história geológica da região”, disse Bomfim, com a ressalva: “Não é possível tirar uma conclusão final a partir apenas de medidas gravitacionais. Precisamos também de outras fontes de dados como o paleomagnetismo”. O paleomagnetismo é uma técnica de análise das variações do polo magnético da Terra e de determinação dos polos magnéticos das rochas há milhares ou milhões de anos (ver Pesquisa FAPESP nº 85). Estudos paleomagnéticos recentes nas regiões sul e norte do cráton amazônico, coordenados por Manoel D’Agrella-Filho e Franklin Bispo-Santos, também do IAG-USP, detectaram uma possível diferença na direção entre as duas partes do cráton, indicando que elas poderiam ter origens distintas e que, em algum momento, já estiveram separadas. “Apenas sugerimos essa indicação, que contraria conclusões amplamente aceitas sobre a formação da bacia sedimentar amazônica”, observou Bomfim. Já é o bastante, porém, para aventar outras possíveis ocorrências de jazidas minerais e de petróleo ainda não identificadas na região.
© ESA
... cujas imagens de variações do campo gravitacional lembram uma Terra amassada
… cujas imagens de variações do campo gravitacional lembram uma Terra amassada

“O Goce não via detalhes, mas a Terra inteira”, sintetizou Eder Molina, professor do IAG-USP especializado em medições das variações do campo de gravidade, que foi o orientador de mestrado e doutorado de Bomfim. “Ou seja: via melhor coisas grandes, que os outros modelos gravimétricos não veem bem.” Por essa razão, disse ele, mesmo com uma resolução de 80 quilômetros, inferior a de outros satélites, os dados do Goce têm ajudado a complementar ou corrigir as medições terrestres, não tão abrangentes, e era o único a medir a variação dos componentes da gravidade em relação aos três eixos espaciais, chamados de x, y e z – até agora se media apenas a variação vertical, no eixo z, da aceleração da gravidade, determinada pela força da gravidade. O Goce via as variações do campo de gravidade de nove modos (para cima, para baixo, para frente, para trás e para os lados), indicando a influência de montanhas ou rochas mais densas da proximidade do ponto analisado, cujo formato, a partir daí, poderia ser delineado com mais precisão.

Em 2011, com informações de satélites gravitacionais mais simples que o Goce, Molina, com sua equipe, elaborou um mapa da variação do nível do mar, registrando uma diferença de 70 metros entre a altura da linha-d’água na África do Sul e em Belém, no Pará, em consequência da variação do campo gravitacional da Terra (ver Pesquisa FAPESP 181).

África e Andes

Sua obra seguinte, ainda não publicada, retratou o possível encaixe gravimétrico entre a América do Sul e a costa oeste da África antes da separação dos continentes. O mapa, ele notou, é muito semelhante ao publicado em fevereiro deste ano por Carla Braitenberg, de Trieste. Ela própria afirma, no artigo, que seu mapa representa outra forma de ver os continentes unificados em um único bloco e certamente será analisado com rigor por geólogos que examinavam apenas regiões específicas eventualmente comuns nos dois continentes.

“Alguns resultados questionam a validade de conceitos estabelecidos”, comentou Orlando Álvarez, pesquisador da Universidade de San Juan, Argentina, que trabalhou em Trieste com Carla Braitenberg durante um mês em 2010.  De volta à Argentina, usando o Goce e outros modelos gravimétricos, ele mapeou as zonas de fraturas dos Andes, o limite geográfico dos crátons da Argentina e o avanço horizontal ou inclinado da placa de Nazca sobre o continente sul-americano. “As áreas de ruptura causadas por terremotos intensos, como o de Valdivia em 1960, coincidiram com nossos resultados”, disse ele. “Podemos agora mapear as regiões mais frágeis e as possíveis zonas de ruptura antes dos tremores, embora não seja possível prever onde e quando um tremor possa ocorrer.”

Talvez às vezes seja possível. No dia 27 de março, o chileno Hans Agurto Detzel, em uma apresentação no IAG-USP, onde é pesquisador, disse que tinha observado uma sequência de terremotos pequenos na costa norte do Chile, com base em uma rede de sismógrafos, um dos aparelhos mais comuns para estudos em geofísica. Ele indicou uma região ainda vazia – uma lacuna sísmica – e a possibilidade iminente de um terremoto de magnitude oito a nove naquela área; o último dessa intensidade tinha ocorrido em 1877. No dia 1º de abril chegou o terremoto de magnitude 8,2 na região que ele havia assinalado, rompendo somente 200 dos 500 quilômetros da lacuna sísmica.

Nos dias seguintes, acompanhando os tremores no norte do Chile, ele notou que os tremores começavam a migrar para o sul da lacuna sísmica. Exatamente ao sul, entre Iquique e a península de Mejillones, parecia haver muita energia acumulada, “o suficiente para gerar outro sismo de magnitude similar ou maior”, segundo ele. Uma página do IAG na internet contém informações atualizadas sobre tremores no Brasil e nos países vizinhos.

Artigos científicos

BOMFIM, E. P. et al. Mutual evaluation of global gravity models (EGM2008 and Goce) and terrestrial data in Amazon Basin, Brazil. Geophysical Journal International, v. 2, p. 870-82. 2013.

BRAITENBERG, C. Exploration of tectonic structures with Goce in Africa and across-continents. International Journal of Applied Earth Observation and Geoinformation. 2014 (no prelo).

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