Primeiros animais filtradores
Descoberta de novos exemplares do artrópode 'Tamisiocaris
borealis' revela que a espécie foi precursora na obtenção de alimento a
partir da filtração da coluna d’água, como mostra Alexander Kellner em
sua coluna de maio.
Publicado em 09/05/2014
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Atualizado em 09/05/2014
Reconstrução de 'Tamisiocaris borealis', primeiro animal
filtrador de que se tem notícia. A espécie vivia nos mares do Cambriano
há aproximadamente 518 milhões de anos. (imagem: Bob Nicholls/ Bristol
University)
No grupo mais bizarro de formas cambrianas
conhecidas até agora estão os anomalocarídeos: artrópodes que surgiram
por volta de 518 milhões de anos.
No grupo mais bizarro de formas cambrianas conhecidas até agora estão os anomalocarídeos. Esses artrópodes, que surgiram por volta de 518 milhões de anos, eram tidos como predadores, ocupando o topo da cadeia alimentar.
Isso até a descoberta, realizada pela equipe de Jakob Vinther, da Universidade de Bristol, Inglaterra, de novos fósseis, sugerindo a presença de formas filtradoras. Detalhe: animais filtradores não eram conhecidos na Era Paleozoica. Não por acaso a pesquisa foi publicada com destaque pela revista Nature.
A fauna de Sirius Passet
Há aproximadamente duas décadas foram descobertos importantes depósitos fossilíferos em Sirius Passet, no norte da Groenlândia. A idade das rochas é estimada em 518 milhões de anos, e a boa condição de preservação de seus fósseis, que refletem uma das fases iniciais da diversificação dos animais, aumentou o interesse por seu estudo.Estima-se até o momento que já tenham sido recuperados cerca de 10 mil exemplares desses depósitos, a maioria deles relacionada com esponjas e artrópodes. Mas há diversas espécies, bastante enigmáticas, que ainda não foram bem compreendidas pelos cientistas – entre elas, Tamisiocaris borealis, conhecida apenas por um exemplar contendo apêndices da região anterior.
Apesar de terem observado feições similares a um grupo de artrópode basal denominado anomalocarídeo, os pesquisadores não sabiam bem que tipo de animal era aquele, descrito pela primeira vez em 2010.
Com nome pra lá de complicado, os anomalocarídeos formam um grupo de artrópodes marinhos basais, encontrados sobretudo em rochas formadas entre 518-500 milhões de anos, período denominado Cambriano, no início da Era Paleozoica.
O registro mais recente do grupo é um único exemplar, chamado Schinderhannes, descoberto na Alemanha em rochas formadas há aproximadamente 408 milhões de anos (Devoniano Inferior).
O primeiro registro do grupo, feito com base em apenas alguns apêndices, foi Anomalocaris. Não se tinha muita ideia do tipo de animal que representava; alguns paleontólogos famosos, como Stephen Jay Gould (1941-2002), achavam que podia se tratar de um filo novo, completamente distinto dos atuais.
Mas, felizmente, a descoberta de exemplares mais completos veio demonstrar que o Anomalocaris representava um artrópode, grupo de invertebrados extremamente diversificados tanto no passado quanto nos tempos atuais.
Restos de anomalocarídeos são encontrados na Groenlândia, Alemanha, Estados Unidos, Canadá, Polônia, Austrália e China. De modo geral, esses artrópodes lembram um camarão gigante, atingindo, algumas espécies, o tamanho máximo de 2 metros.
Entre suas características principais estão dois apêndices bem desenvolvidos na região anterior da boca, formados por diversos segmentos que podiam se curvar, possivelmente para capturar presas.
Na parte lateral do corpo exibem diversos lóbulos, que o auxiliavam em seu deslocamento pelos mares cambrianos. Os animais do grupo eram tidos como predadores, uma visão que o estudo feito pela equipe de Vinther acaba de mudar.
Rede para peneirar partículas
Os pesquisadores encontraram cinco novos exemplares de Tamisiocaris borealis. Embora nenhum deles esteja completo, os novos dados anatômicos confirmaram que a espécie representava, de fato, um anomalocarídeo, particularmente devido às feições dos grandes apêndices na região anterior da boca.Como é comum no grupo, esses apêndices têm diversos espinhos, que formam duplas e estão direcionados ventralmente, cada um contendo espinhos acessórios. Diferentes dos demais, no Tamisiocaris esses espinhos acessórios são mais longos e finos, além de estarem dispostos com espaçamento regular, formando uma estrutura que lembra um pente. Em algumas partes esses espinhos podiam até se entrelaçar, formando uma espécie de rede.
Examinando formas recentes, Vinther e colegas detectaram semelhanças com animais filtradores. Constataram, por exemplo, que alguns camarões, copépodes e outros crustáceos (inclusive o krill) exibem adaptações típicas para uma atividade filtradora, como apêndices dotados de processos alongados que, como observaram no Tamisiocaris, também formam uma espécie de rede eficiente para peneirar partículas na coluna d'água.
A partir do movimento desses apêndices, as partículas são levadas à boca e alimentam o animal – o que também deve ter funcionado para a espécie cambriana. De acordo com o espaçamento e tomando por base animais recentes, os autores propõem que o tamanho do alimento de Tamisiocaris variava de 0,5 a 0,7 milímetros.
Um ponto interessante salientado no estudo é que os grandes apêndices dos anomalocarídeos são de tamanho variado e possuem características anatômicas distintas, indicando que esses artrópodes basais desenvolveram diversas maneiras de se alimentar. As formas filtradoras e predadoras são exemplos extremos.
A equipe de Vinther deixa claro que as formas
planctônicas tinham de estar presentes em grande número já no início do
Cambriano para poder sustentar espécies filtradoras de grande porte
Outro ponto ressaltado no trabalho é a hipótese de que a fauna
planctônica teria se originado e diversificado apenas no final do
Cambriano. A equipe de Vinther deixa claro que as formas planctônicas
tinham de estar presentes em grande número já no início do Cambriano
para poder sustentar espécies filtradoras de grande porte, como é o caso
de Tamisiocaris, cujo tamanho devia variar de 40 a 60 centímetros.De qualquer modo, fica comprovado que os anomalocarídeos eram bem mais diversificados do que se supunha, podendo ser considerados como um grupo que obteve grande sucesso nos mares cambrianos.
O trabalho da equipe de Jakob Vinther ilustra mais uma vez como novos fósseis podem mudar a percepção dos cientistas sobre os hábitos de formas extintas, principalmente no caso de animais do Cambriano, alguns tão diferentes das formas marinhas atuais.
Alexander Kellner
Museu Nacional/ UFRJ
Academia Brasileira de Ciências
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