terça-feira, 20 de maio de 2014

A origem do cerrado

Histórias evolutivas divergentes dão formas distintas às savanas atuais e afetam possíveis respostas a mudanças climáticas 

MARIA GUIMARÃES | Edição 219 - Maio de 2014
© CEZARY WOJTKOWSKI / TIPS / GLOW IMAGES
A fauna de grande porte, como estas manadas de zebras  e gnus no Parque Nacional de Ngorongoro, na Tanzânia, reduz  a campo parte da paisagem africana
A fauna de grande porte, como estas manadas de zebras e gnus no Parque Nacional de Ngorongoro, na Tanzânia, reduz a campo parte da paisagem africana

Árvores pequenas e retorcidas, às vezes com a casca dos troncos transformada em carvão pela passagem do fogo, em meio a um tapete de capim. Quem já viu logo reconhece o cerrado, a savana brasileira. Na África e na Austrália, os dois outros continentes em que o bioma é característico, as savanas formam paisagens muito parecidas. Mas a semelhança é superficial, já que o cerrado tem uma biodiversidade maior a ponto de estar na lista de 34 áreas no mundo com maior riqueza de espécies, e sob ameaça de extinção – os hotspots.

A novidade é que as savanas dos três continentes também diferem em como respondem ao fogo, à umidade e à temperatura, conforme um grupo internacional, com a participação de brasileiros, mostrou em janeiro na revista Science a partir de dados compilados em mais de 100 estudos realizados em 2.154 áreas de savana na América do Sul, na África e na Austrália.

Além da importância para compreender o funcionamento desse ambiente, os achados são essenciais para a criação de modelos que prevejam a reação das savanas às mudanças climáticas e estimem a sua capacidade de amenizar essas alterações ao remover carbono do ar.
“Conseguimos ver um papel aparente da história evolutiva na determinação da dinâmica contemporânea do bioma”, diz Caroline Lehmann, da Universidade de Edimburgo, na Escócia. Essa visão mais abrangente é para ela a conclusão mais empolgante do trabalho que coordenou. As diferenças parecem acontecer porque a savana é relativamente jovem: deve ter surgido entre 3 milhões e 8 milhões de anos atrás. Nessa época, os continentes já estavam separados havia um bom tempo e suas floras e faunas tinham acumulado diferenças marcantes. As espécies de árvores presentes, com uma dominância de mirtáceas (família que inclui a pitanga, a goiaba, a jabuticaba e o eucalipto) na Austrália e de leguminosas na África, são distintas em fenologia – a periodicidade com que produzem flores e frutos –, resistência ao fogo, crescimento e arquitetura. Já o cerrado, a mais diversa das savanas, não tem uma família botânica predominante.

Um olhar mais atento sobre os fatores ambientais que regem esses ecossistemas revelou que eles estão por trás de diferenças funcionais. Na África e na Austrália, as chuvas e a temperatura têm um efeito forte em aumentar a frequência do fogo, já que propiciam o crescimento de capins. Em menor intensidade, esses fatores também afetam o tamanho das árvores. Na América do Sul essas relações são muito fracas, tanto no Brasil como na Venezuela, onde também há vegetação savânica. A variação de um continente para o outro surpreendeu os pesquisadores, que esperavam uma homogeneidade maior. “Em retrospecto, parece bastante óbvio quando se considera a diversidade na arquitetura e na fenologia das árvores nessas regiões”, reflete Caroline.
© THOMAS SCHOCH / WIKIMEDIA COMMONS
Com pouca água para agricultura, na Austrália as savanas são mais preservadas
Com pouca água para agricultura, na Austrália as savanas são mais preservadas

O importante é que essa variação significa que não é possível usar um único modelo para prever qual será, por exemplo, a biomassa de árvores em determinadas condições ambientais, ou como a vegetação reagirá a mudanças na temperatura global. Uma particularidade do cerrado é ter evoluído num ambiente mais úmido do que as outras savanas. “Nos outros continentes, sob o mesmo clima em que aqui há cerrado, já haveria floresta”, exemplifica a engenheira florestal Giselda Durigan, do Instituto Florestal do Estado de São Paulo em Assis, interior paulista, coautora do estudo.

As particularidades da África também se devem à grande variedade de herbívoros de tamanho avantajado – como elefantes, antílopes ou zebras, com suas manadas populosas – cuja voracidade vegetariana impede a sobrevivência das mudas de árvores e torna muito mais comum o campo dominado por capins. 

“A ausência da megafauna na América do Sul é em grande parte responsável pela diversidade do cerrado”, diz Giselda.

Sem os grandes herbívoros – aqui muitas vezes representados pelo gado –, o que mantém aberta a fisionomia do cerrado é o fogo. Quando não há queimadas, as árvores crescem, se multiplicam e inibem a germinação e o desenvolvimento de espécies endêmicas, que não toleram a sombra. Sem fogo e sem pastejo, o próprio capim pode prejudicar os brotos que precisam de luz. Um exemplo de como a fauna e as queimadas são parte integrante do ecossistema apareceu na pesquisa que Giselda vem realizando na Estação Ecológica de Santa Bárbara, no interior paulista. Ela encontrou uma planta com menos de 10 centímetros de altura que descobriu ser um exemplar de Galium humile, da família do café, uma espécie que não era coletada no estado desde 1918. O curioso é que o achado se deu justamente numa área que nas últimas décadas foi muito sujeita a incêndios e ao uso como pastagem. “A flora e a fauna do cerrado dependem da passagem do fogo”, alerta Giselda. “No Brasil vamos ter que aprender a usá-lo como ferramenta de manejo, agora que a lei prevê a prática para o bem do ecossistema.”

Investigações como a do grupo de Giselda foram a base para o artigo publicado na Science, que reúne dados de muitos outros grupos de pesquisa. “É um tipo de estudo que ganha em abrangência, mas perde em detalhe”, comenta Giselda. Ela foi convidada para a reunião na Austrália que formou o grupo de trabalho em 2009, mas não pôde participar por conflitos de agenda: estava naquele país no mesmo momento, mas em outro evento. A única representante brasileira era, por isso, a engenheira florestal Jeanine Felfili, da Universidade de Brasília (UnB). Mas logo em seguida Jeanine não sobreviveu a um acidente vascular cerebral, e parte de sua contribuição foi concretizada por Ricardo Haidar, à época seu estudante de mestrado. Mesmo assim, em 2013 uma primeira versão do artigo foi recusada pela revista por ter poucos dados sul-americanos. Caroline então procurou Giselda, que nesse momento não só estava disponível como acabara de participar de um extenso levantamento sobre o cerrado e tinha todos os dados necessários na cabeça e no computador. “Muitos dos dados estavam em artigos em português ou mesmo ainda em teses”, conta a brasileira. Por isso, na prática eram invisíveis para os estrangeiros.

De olho no futuro

Com a sua contribuição o estudo se tornou mais representativo, com modelos estatísticos mais robustos para estimar o efeito de cada uma das variáveis sobre a biomassa da savana. Esses modelos também buscam prever o que pode acontecer com o porte das savanas diante das mudanças previstas no clima das próximas décadas. Ao considerar um aumento de quatro graus Celsius (°C) na média anual de temperatura, o estudo mostrou diferenças marcantes entre os modelos globais e regionais de alteração na biomassa das savanas. Na África, por exemplo, o modelo que não distingue continentes prevê uma leve redução na biomassa, enquanto o específico indica que haverá um aumento. Para a América do Sul, o modelo regional prevê, nesse cenário, uma redução de biomassa bem maior do que aquela prevista pela simulação global.
© FOTO EDUARDO CESAR / INFOGRÁFICO ANA PAULA CAMPOS
As cascas espessas das árvores do cerrado são essenciais para resistir ao fogo
As cascas espessas das árvores do cerrado são essenciais para resistir ao fogo

“Os mapas de biomassa prevista derivados de nossos modelos estatísticos são adequados para propósitos ilustrativos”, relativiza Caroline. “Mas, na verdade, as pessoas exercem uma influência enorme nos padrões atuais de biomassa por meio de desmatamento, agricultura, pecuária e derrubada seletiva.” Ela imagina, por isso, que haja bastante descompasso entre as previsões dos modelos e o que realmente acontece. E destaca o cerrado, que tem passado por transformações muito mais extensas do que as outras savanas, devido ao uso para a agropecuária, e já perdeu quase metade de seu território.
Mas antecipar o que as mudanças ambientais causarão nas savanas ainda é impossível, não só pela incerteza quanto ao que acontecerá no clima de cada continente. O problema é especialmente complexo para esses ecossistemas por sua enorme diversidade entre os continentes e dentro de cada um deles. O estudo se concentrou nas savanas mais típicas, que têm uma divisão mais ou menos equilibrada entre árvores e capins. Mas em cada um dos continentes o bioma pode ser desde um capinzal até uma floresta mais densa de árvores altas, com um estrato herbáceo esparso. “O aumento nas concentrações de CO2 atmosférico deve afetar de forma diferente os capins tropicais e as árvores, mudando o equilíbrio competitivo entre essas plantas centrais do sistema”, explica Caroline. Os efeitos serão variáveis conforme a região. “Posso dizer que nossa falta de compreensão de como os sistemas de savana podem responder à mudança climática é uma falha de conhecimento crítica que deveria ser levada a sério.” Para ela as savanas, que cobrem cerca de 20% da superfície terrestre do planeta, devem ser estudadas com tanto afinco quanto a Amazônia e outras florestas tropicais.
Intrigada com a relação fraca entre as variações de temperatura e chuva e a vegetação do cerrado, Giselda acredita que encontrará respostas abaixo da superfície. As características físicas do solo têm forte influência sobre a disponibilidade de água para as plantas, que precisam dessas reservas para enfrentar os períodos de estiagem. “Quando o solo é argiloso, uma seca de quatro meses é sentida pelas plantas como se durasse apenas dois meses”, explica. Isso acontece porque a argila consegue reter água em maior quantidade e por mais tempo do que a areia. “Mas quando há argila demais a água fica retida de tal maneira que as plantas não conseguem captar.” As condições ideais para o desenvolvimento das plantas, portanto, envolvem um equilíbrio sutil dos componentes do solo, que é mais variável de um ponto a outro do cerrado do que nas outras savanas.

Os modelos produzidos no estudo da Science para estudar a relação entre fatores ambientais e a biomassa arbórea levaram em conta os teores de carbono e de areia numa camada de 50 centímetros de profundidade. O carbono serve como medida da matéria orgânica ou do conteúdo em nutrientes do solo, e a areia como estimativa de sua capacidade de retenção de água. Mas esses indicadores são insuficientes, de acordo com Giselda, e foram escolhidos por estarem disponíveis sobre as savanas de todo o planeta.
Ao dar indicações das variáveis ambientais importantes para as savanas, o estudo aponta direções importantes para trabalhos futuros. Giselda imagina o que seria necessário para se ter uma compreensão melhor da complexa relação entre o solo, o clima e o cerrado: uma rede de pesquisa com grupos trabalhando em toda a extensão do bioma, cavando trincheiras em várias profundidades para examinar o solo e relacionar suas propriedades com o porte e outras características da vegetação.

Artigo científico
 
LEHMANN, C. E. R. et al. Savanna vegetation-fire-climate relationships differ among continents. Science. v. 343, n. 6.170, p. 548-52. 31 jan. 2014.

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