Presentes do passado
Artigo de capa da CH de junho descreve como se deu a
domesticação de plantas e paisagens culturais na Amazônia pré-histórica.
Mandioca, pupunha e guaraná são apenas os exemplos mais conhecidos de
culturas que mantemos até hoje.
Publicado em 16/06/2015
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Atualizado em 16/06/2015
Há milhares de anos, os seres humanos começaram a manipular
plantas e animais com o objetivo de torná-los mais apropriados para o
consumo como alimentos ou como matéria-prima para artefatos. (imagem:
Albert Eckhout / Wikimedia Commons.
Nossa espécie (Homo sapiens) surge na África, há cerca de 200 mil anos, mas as mudanças comportamentais e cognitivas consideradas ‘modernas’ parecem ter emergido apenas nos últimos 50 mil anos de nossa história. A partir desse período, ocorre uma série de manifestações simbólicas em forma de ornamentos corporais, pinturas rupestres e sepultamentos ritualizados, como revelam sítios arqueológicos pelo mundo afora. Estavam lançadas as bases para a complexidade material e cultural que definiriam o papel de nossa espécie no planeta nos dias de hoje.
Dezenas de milênios mais adiante, uma forma inédita de relação com a natureza marcaria em definitivo o modo de vida das sociedades humanas: a domesticação. Podemos definir domesticação como um processo histórico/evolutivo pelo qual populações de organismos são alteradas em nível genético por meio da manipulação humana ao longo de um extenso intervalo de tempo. Como consequência, os organismos domesticados tornam-se em geral altamente dependentes da ação humana para sua sobrevivência e reprodução. Outro aspecto que define esse processo em sua essência é a natureza irreversível das mudanças induzidas nos organismos ditos domesticados.
Em algumas regiões, a domesticação culminaria no desenvolvimento da
agricultura e até na emergência dos primeiros Estados e impérios
Muitos foram os polos independentes de domesticação de plantas e animais no globo, entre os quais o mais precoce foi o chamado Crescente Fértil, região do Oriente Médio que vai do Egito à Mesopotâmia. Lá foram encontradas, por exemplo, as primeiras evidências de domesticação da cevada, do trigo e do linho, em cerca de 8.500 a.C. Outro centro relevante foi o território atual da China, onde teve início a domesticação de pelo menos três importantes cereais: dois milhetes (Setaria italica e Panicum miliaceum), por volta de 7.000 a.C., e o arroz, em cerca de 8.000 a.C.
No Novo Mundo, povos que viviam na América Central – especificamente no território do México atual – domesticaram a abóbora por volta de 8.000 anos a.C., o milho em torno de 7.000 anos a.C. e o feijão em aproximadamente 1.000 anos a.C. Já a batata e a quinoa, ambas originárias dos altiplanos andinos, aparecem nos vestígios arqueológicos por volta de 6.000 a.C. Nas regiões costeiras do Peru, é o algodão que se destaca como o principal cultivar da região a partir de 4.000 a.C.
Outro importante centro de domesticação vem ganhando espaço nos estudos arqueológicos, ampliando esse rico e intrigante cenário: a Amazônia. Os registros mais bem estudados de domesticações promovidas por populações pré-históricas que viveram no imenso território amazônico são o tema deste artigo. Ali esses povos floresceram e deixaram seus frutos – muitos dos quais hoje tanto apreciamos, ainda que por vezes desconhecendo suas origens.
Domesticação na Amazônia
Por milênios, a grande diversidade dos ecossistemas amazônicos tem exigido de suas populações humanas, além de um conhecimento minucioso do ambiente, o domínio de ampla gama de técnicas e de tecnologias empregadas na obtenção de recursos da natureza. No extremo dessas estratégias, podemos destacar a manipulação e a domesticação de plantas, muitas das quais consumimos em grande quantidade nos dias de hoje.Em artigo publicado em 2010, Charles R. Clement, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, estimou em 138 o número de plantas amazônicas sob algum grau de domesticação à época da chegada dos europeus nas Américas. Naquele período, uma das plantas mais importantes na dieta das populações indígenas era a mandioca. Entre as palmeiras, o fruto da pupunha, extremamente rico em óleos e amido, é o que mais se destacava. A seleção praticada sobre a mandioca resultou no desenvolvimento de raízes cada vez maiores (com mais amido) e mais tóxicas (o que parece conferir mais proteção contra a predação por herbívoros, nas roças). Já os frutos da pupunha experimentaram um aumento de tamanho na ordem de 2.000% em relação às suas populações selvagens.
Estudos arqueológicos também indicam a região do alto rio Madeira, onde hoje está situado o estado de Rondônia, como o provável centro de origem da domesticação tanto da mandioca quanto da pupunha, bem como da pimenta (da espécie Capsicum chinense) e do amendoim. As variedades de C. chinense mais conhecidas no Brasil são a pimenta-murupi, a pimenta-de-cheiro e a pimenta-de-bode. Curiosamente, essa região é também considerada o centro de origem do tronco linguístico tupi, além de ser uma das poucas áreas na Amazônia com fortes evidências de ocupação humana contínua ao longo dos últimos 10 milênios.
Estudos indicam a região do alto rio Madeira (atual Rondônia) como o provável centro de origem
da domesticação da mandioca e da pupunha
Um caso que parece ter sido especial é o do cacau. Embora seja uma espécie nativa da região, ela provavelmente foi domesticada na América Central, pelos povos maia ou zapoteca, por volta de 4.000 a.C. Por fim, temos o que parece ter sido o único animal domesticado na Amazônia, o pato-do-mato ou pato-almiscarado. Nesse caso, pesquisas ainda estão em fase muito incipiente no que se refere à antiguidade e à localização desse evento.
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