Em 13 de setembro de 2013, Steven Tucker e Rick Hunter adentram um sistema de cavernas conhecido como
Rising Star
(Estrela Ascendente), 50 quilômetros a noroeste de Johannesburgo, na
África do Sul. O lugar atrai espeleólogos desde a década de 1960, e suas
passagens e galerias estão bem mapeadas. A expectativa de Tucker e
Hunter é descobrir um trecho ainda pouco palmilhado.
Eles têm também outra preocupação, ainda que em segundo plano. Na
primeira metade do século 20, essa mesma região produzira tantos
fósseis dos nossos mais antigos antepassados que ficou conhecida como o “
berço da humanidade”.
Embora há muito tempo tenha passado o auge da busca aos fósseis por lá,
os dois espeleólogos sabem que, por outro lado, um pesquisador da
Universidade de Witwatersrand, em Johannesburgo, reiniciou a busca por
ossadas.
Nas profundezas do sistema de grutas, Tucker e Hunter passam por um
estreitamento batizado de Passagem do Super-Homem – a maioria das
pessoas somente consegue atravessar mantendo um dos braços junto ao
corpo e estendendo o outro acima da cabeça, como faz o Homem de Aço ao
voar. Depois de cruzar um imenso salão, eles escalam uma parede rochosa
denteada, a Espinha do Dragão. No alto, chegam a uma pequena cavidade
repleta de estalactites. Tucker desliza para dentro de uma fissura no
piso da gruta. O seu pé encontra um degrau de pedra, depois outro,
embaixo, e aí... nada. Espaço vazio.
Descendo mais, vê que se trata de um buraco estreito e vertical, em
certos pontos com largura de apenas 20 centímetros. Chama Hunter e pede
que o siga. Ambos são esguios, só ossos e músculos. Se tivessem o tronco
algo mais largo, não teriam se esgueirado por passagem tão apertada – e
aí a descoberta de
fóssil humano mais assombrosa dos últimos 50 anos não teria ocorrido.
Ainda
que primitivos em alguns aspectos, o rosto, o crânio e os dentes do
fóssil exibem traços modernos o bastante para justificar a inclusão do
H. naledi no gênero Homo. O artista John Gurche usou pelo de urso para
simular o cabelo. - Foto: Mark Thiessen/National Geographic.
Lee Berger, o paleoantropólogo que pedira aos exploradores que ficassem
de olho em ossadas, é um americano corpulento, de rosto avermelhado e
bochechas que inflam quando sorri – o que acontece com frequência. No
início dos anos 1990, quando Berger foi contratado pela Universidade de
Witwatersrand (mais conhecida como “Wits”) e saiu atrás de fósseis,
havia muito que o foco de quem se interessava pela
evolução humana passara a se concentrar no Grande Vale Rift, na África Oriental.
Para muitos, a África do Sul apresentava um interesse apenas secundário
para o entendimento da evolução humana. Berger, contudo, estava
empenhado em provar o contrário. Mas, durante quase duas décadas, os
achados relativamente insignificantes que fizera só ressaltavam quão
pouco o país podia contribuir para a questão.
Mistério da evolução da espécie humana
O que mais o interessava eram fósseis que pudessem esclarecer o
principal mistério que paira na evolução: o surgimento do nosso gênero, o
Homo, ocorrido entre 2 milhões e 3 milhões de anos atrás. No
outro lado da divisa estão os primatas australopitecos, exemplificados
pelo
Australopithecus afarensis e o seu espécime mais conhecido, Lucy, cuja ossada foi achada na Etiópia, em 1974. No lado mais próximo de nós está o
Homo erectus,
uma espécie que já conhecia os utensílios, dominava o fogo, se
deslocava por longas distâncias, era dotada de um cérebro volumoso e
tinha um corpo com proporções similares às nossas. Entre o
A. afarensis e o
H. erectus,
porém, há um intervalo obscuro de 1 milhão de anos, no qual um animal
bípede se transformou no primeiro ser humano, uma criatura não só
adaptada ao meio mas também capaz de usar a inteligência para alterá-lo a
seu favor. Como ocorreu tal revolução?
O testemunho fóssil é vago e decepcionante. Um pouco mais antiga que o
H. erectus é a espécie
Homo habilis,
batizada de “habilidosa”, em 1964, porque Louis Leakey e os seus
colegas a consideravam responsável pelos artefatos de pedra que acharam
em Olduvai, na Tanzânia. Essa espécie virou o precário fundamento da
árvore genealógica humana, arraigando-a assim na região da África
Oriental. Para além do
H. habilis, a história humana permanece turva, representada unicamente por um punhado de fragmentos fósseis de
Homo que nem chegam a ser suficientes para identificar uma espécie.
Há muito Berger vem argumentando que o
H. habilis é primitivo
demais para merecer a posição privilegiada que ocupa na origem do gênero
humano. Outros cientistas concordam e acham que, na verdade, ele
deveria ser contado entre os australopitecos. Mas Berger está quase
sozinho ao defender a ideia de que a África do Sul é o local mais
promissor para se buscar o verdadeiro
Homo mais antigo. Berger
sempre exibiu a ambição e a personalidade para virar um dos
protagonistas cruciais em seu campo, tal como Richard Leakey ou Donald
Johanson (coube a este último a descoberta da ossada de Lucy). No
entanto, faltava-lhe o principal: os ossos que comprovassem a sua
hipótese.
Três
espécies do gênero , todas surgindo no registro fóssil por volta de 2
milhões de anos atrás, reforçam o argumento contra uma progressão linear
rumo à humanidade – posição salientada pela mescla única, no H. naledi,
de traços primitivos e avançados - Reconstruções por John Gurche.
Imagens fora de Escala. Crânios por Mike Hettwer; fotografados no Museu
Nacional do Quênia. Exemplares de crânio (da esquerda para a direita):
KNMER 1813; 1470; 3733
Então, em 2008, ele fez uma descoberta importante. Ao explorar o local
mais tarde conhecido como Malapa, a 16 quilômetros da Caverna Rising
Star, ele e o filho de 14 anos, Matthew, toparam com alguns ossos de
hominídeos projetando-se de blocos de dolomita. No ano seguinte, a
equipe de Berger conseguiu extrair da rocha nada menos que dois
esqueletos quase completos. Datados de cerca de 2 milhões de anos atrás,
essa foi a primeira descoberta importante registrada ao longo de
décadas na África do Sul. Em muitos aspectos, essas ossadas eram muito
primitivas, mas, por outro lado, apresentavam características
estranhamente modernas.
Berger concluiu que os ossos pertenciam a uma nova espécie de australopiteco, que batizou de
Australopithecus sediba. Porém, foi além e alegou que os ossos constituíam as amostras que permitiriam decifrar a origem do
Homo.
Ainda que admitissem que Berger fizera uma descoberta “de cair o
queixo”, quase todos os decanos da paleoantropologia consideraram
inaceitável a interpretação que ele deu ao
A. sediba. Era novo demais, estranho demais e não estava no lugar certo para ser o antepassado do
Homo –
em suma, não podia ser um de nós. Em outro sentido, o mesmo se podia
dizer de Berger. Desde então, cientistas proeminentes publicaram artigos
sobre os primeiros
Homo e nem se deram ao trabalho de fazer menção a ele ou ao seu achado.
Berger não se deixou abalar pela rejeição e retomou o trabalho – havia
outras ossadas de Malapa à espera, ainda incrustradas em blocos de
arenito no laboratório, que exigiam a sua atenção. Então, certa noite,
Pedro Boshoff, um geólogo que Berger contratara para encontrar fósseis,
bateu à sua porta, acompanhado de Steven Tucker. Berger deu uma espiada
nas fotos que eles mostraram, feitas na Caverna Rising Star, e, de
imediato, percebeu que o sítio de Malapa vai ter de ficar em segundo
plano.
A descoberta
Depois de se contorcerem para descer por mais de 12 metros no buraco da
Rising Star, Tucker e Rick Hunter chegaram a outra câmara agradável,
com uma cascata de formações esbranquiçadas em um canto. Uma passagem
conduzia a uma cavidade mais ampla, com 9 metros de comprimento e 1 de
largura. O que chamava a atenção é o que havia no piso: ossos. Eles
acharam que as ossadas deviam ser modernas. Não tinham o peso de pedras,
como a maioria dos fósseis, nem estavam incrustradas em rochas –
estavam apenas dispersas sobre o piso, como se alguém as tivesse jogado
lá. Notaram um fragmento de mandíbula inferior, com os dentes intactos,
que parecia humana.
Mesmo pelas fotos, Lee Berger podia afirmar que os ossos não pertenciam
a seres humanos modernos. Certas características, sobretudo as do
maxilar e dos dentes, pareciam primitivas demais. E as imagens indicavam
que existem ainda mais ossos: Berger conseguia distinguir a silhueta de
um crânio parcialmente enterrado. Seria um esqueleto completo? Berger
estava perplexo. No registro fóssil dos primitivos hominídeos, as
ossadas quase completas, incluindo os dois esqueletos que ele próprio
exumara em Malapa, podiam ser contadas nos dedos de uma única mão. E
agora aquilo. Mas o que era aquilo? Qual a sua idade? Como havia ido
parar ali na gruta?
Mais urgente ainda era saber como retirar de lá os ossos, e o mais
rápido possível. Pela disposição deles, estava evidente que alguém já
passara por ali, talvez décadas atrás. Tucker e Hunter não tinham a
competência técnica necessária para extrair os fósseis, e nenhum
cientista conhecido de Berger – muito menos ele próprio – era magro o
bastante para descer por uma passagem tão estreita. Por isso, Berger
recorreu ao Facebook, anunciando que buscava indivíduos esguios, com
formação científica e experiência espeleológica – e, sobretudo,
“dispostos a trabalhar em espaços confinados”. Uma semana e meia depois,
cerca de 60 pessoas fizeram contato. Ele então escolheu as seis mais
promissoras, todas mulheres e jovens, apelidadas por Berger de
“astronautas do subsolo”.
Assim, com patrocínio da National Geographic Society, Berger reúne
cerca de 60 cientistas e monta um centro de comando na superfície, uma
barraca com equipamentos científicos, assim como um pequeno acampamento
para descanso e apoio. Espeleólogos locais ajudam a estender 3 mil
metros de cabos de comunicação e energia elétrica até o local dos
fósseis. Tudo o que acontece lá embaixo pode ser seguido por Berger e
seus colegas nos monitores instalados no centro de comando.
Marina
Elliott, acima, explora um salão com o paleontólogo Ashley Kruger. Ela é
uma das seis cientistas do grupo com a habilidade e os dotes físicos
para ir ao salão Dinaledi. Lee Berger, na tela, acompanha o trabalho da
superfície. - Foto: Robert Clark
Marina Elliott, na época aluna da Universidade Simon Fraser, no Canadá,
é a primeira a se esgueirar pelo buraco. Ela e duas companheiras, Becca
Peixotto e Hannah Morris, vão avançando centímetro por centímetro até a
“zona de pouso”, no fundo, e se agacham no salão que abriga os fósseis.
Trabalhando em turnos de duas horas e se revezando com outra equipe de
três mulheres, elas mapeiam e empacotam mais de 400 fósseis que jazem na
superfície e, depois, começam a retirar a terra em volta do crânio
semienterrado. Embaixo e à volta dele há muitos outros ossos, bem
compactados.
No decorrer dos dias seguintes, enquanto as pesquisadoras
vasculham a área de 1 metro quadrado em torno do crânio, os outros
cientistas se amontoam ao redor dos monitores de vídeo no centro de
comando, em uma atmosfera de excitação quase permanente. Berger, vez por
outra, ruma para a barraca-laboratório a fim de examinar os ossos que
se acumulam – até que um grito geral de assombro vem do centro de
comando e faz com que ele volte às pressas para acompanhar outra
descoberta em tempo real. São dias gloriosos.
Os ossos estão bem preservados e, pela duplicação dos tipos, logo fica
evidente que não há na gruta apenas um esqueleto, mas dois, em seguida
três, depois cinco... Encerradas as três semanas reservadas por Berger
para a escavação, as pesquisadoras recuperam 1 200 ossos, mais que em
qualquer outro sítio arqueológico com antepassados humanos na África –
e, mesmo assim, não se esgota o material naquele metro quadrado ao redor
do crânio inicial. São necessários mais dias de escavação, em março de
2014, para remover tudo o que se encontra na camada de sedimentos de
apenas 15 centímetros de profundidade.
No total, 1 550 itens são recuperados, correspondentes a, no mínimo, 15
indivíduos. O conjunto de ossos impressiona. Há crânios. Maxilares.
Costelas. Dúzias de dentes. Um pé quase completo. Uma mão, com todos os
ossos intactos. Ossos minúsculos do ouvido interno. Adultos mais idosos.
Jovens. Crianças, identificadas por vértebras pequenas como dedais de
costura. Algumas partes dos esqueletos parecem espantosamente modernas.
Outras são primitivas – em certos casos, mais simiescas que as dos
australopitecos. “Descobrimos uma criatura notável”, comenta Berger, com
um sorriso largo.
Na paleoantropologia, os novos espécimes costumam ser mantidos em
sigilo até que sejam bem analisados, e os resultados, publicados.
Berger, porém, insiste para que os estudos sejam divulgados até o fim de
2014 – ou seja, exatamente meio século depois de Louis Leakey ter
divulgado a descoberta do primeiro membro do gênero humano, o
Homo habilis, que permanece até hoje nessa posição.
Seja como for, só há um jeito de concluir com rapidez a análise do
material: fazer com que os ossos sejam examinados por muita gente. Além
das duas dezenas de cientistas veteranos que o haviam ajudado a avaliar
as ossadas de Malapa, Berger convida mais de 30 pesquisadores jovens,
que acorrem a Johannesburgo vindos de 15 países, para um esforço
concentrado de estudo com a duração de seis semanas. Para alguns
cientistas mais velhos, essa mobilização de pesquisadores jovens a fim
de acelerar a publicação de resultados tinha algo de precipitado. No
entanto, para os jovens participantes, é “um paleossonho que virava
realidade”, define Lucas Delezene, hoje professor na Universidade de
Arkansas. “Na faculdade, quem não sonha com uma pilha de fósseis jamais
vistos e que têm de ser analisados?”
O
esqueleto quase completo expõe a estrutura geral do corpo do H. naledi.
Os ombros, quadris e tronco remetem a antepassados primitivos, ao passo
que os membros inferiores revelam características de aparência mais
humana. Já o crânio e os dentes exibem traços mesclados - Foto: Robert
Clark//National Geographic, Lee Berger/University of the Witwatersrand
A maratona de pesquisa acontece num recém-inaugurado laboratório da
Universidade de Witwatersrand. As equipes dividem-se em função das
partes do corpo. Os especialistas em crânio juntam-se num canto, à volta
de uma espaçosa mesa quadrada coberta de fragmentos de crânios e
mandíbulas, assim como moldes de outros crânios fósseis já bem
conhecidos. Mesas menores são reservadas para ossos de mãos, pés,
membros e assim por diante. A atmosfera é de concentração total. Berger e
os assistentes mais próximos circulam pela sala, parando aqui e ali
para trocas de ideias em voz baixa.
Definição da espécie
A pilha de fósseis de Delezene tem 190 dentes – uma parte crucial de
qualquer análise, pois muitas vezes só os dentes bastam para identificar
uma espécie. Algumas características são espantosamente humanoides – as
coroas dos molares são pequenas, por exemplo, com cinco cúspides, tal
como nos nossos molares –, mas, por outro lado, as raízes dos
pré-molares parecem toscas demais. “Não sabemos bem o que concluir
disso”, diz Delezene. “É muito bizarro.”
O mesmo efeito paradoxal toma conta das outras mesas. Ossos das mãos
modernos exibem dedos muito curvos, mais adequados a algum animal
arborícola. Os ombros também exibem aspectos simiescos, e as lâminas
muito abertas da pelve são tão primitivas quando as de Lucy – todavia,
na mesma pelve, a base parece a de um ser humano moderno. Já os ossos
das pernas começam apresentando formato similar ao de um australopiteco,
tornando-se modernos à medida que se aproximam dos pés – praticamente
idênticos aos nossos. “Quase que dá para traçar uma linha pelo quadril:
primitivo na parte superior, moderno na inferior”, diz o paleontólogo
Steve Churchill, da Universidade Duke. “Se você tivesse topado só com o
pé, podia até imaginar que pertencia a um indígena local
recém-falecido.”
Mas aí resta a questão da cabeça. Quatro crânios parciais foram
encontrados – provavelmente dois masculinos e dois femininos. No que se
refere à morfologia geral, claramente parecem avançados o bastante para
serem incluídos entre os
Homo. No entanto, as caixas cranianas
são minúsculas – apenas 560 centímetros cúbicos para os machos e 465
para as fêmeas, bem menos que a média de 900 centímetros cúbicos do
H. erectus,
e menos que a metade da nossa própria caixa craniana. Um cérebro
volumoso é indispensável para a condição humana, a marca característica
de uma espécie que evoluiu e sobreviveu graças à inteligência. Essas
criaturas não são exatamente humanas. Possuem a cabeça pequena demais,
mesmo que tenham alguns membros com características humanas.
“Estranho como o diabo”, define o paleoantropólogo Fred Grine. “Cérebro
minúsculo em corpo nada minúsculo.” Os machos adultos medem cerca de
1,5 metro e pesam 45 quilos; as fêmeas, um pouco mais baixas e leves. “O
que isso indica é um animal no meio da transição entre o
Australopithecus e o
Homo”,
comentou Berger quando, em junho deste ano, chegou ao fim o esforço
concentrado de identificação. “Tudo o que serve para tocar o mundo de
modo crucial é mais parecido conosco. Já as outras partes preservam
fragmentos do passado primitivo.”
Em alguns aspectos, o novo hominídeo da Caverna Rising Star está ainda mais próximo aos seres humanos modernos que o
Homo erectus. Para Berger e colegas, fica evidente que pertence ao gênero
Homo,
ainda que distinto de todos os outros membros. Por isso, não lhes resta
outra saída além de propor a criação de uma nova espécie, batizada de
Homo naledi, numa alusão à gruta onde foram achados os ossos – na língua local, o soto do sul, naledi significa “estrela”.
Como aqueles fósseis foram parar numa câmara tão remota?
Em novembro de 2013, quando ainda retiravam da caverna o extraordinário
conjunto de ossos, Marina Elliott e as suas companheiras ficaram
igualmente surpresas com o que não conseguiam achar. “Estávamos no
terceiro ou no quarto dia e ainda não havíamos topado com nenhum
resquício de fauna”, diz Marina. No primeiro dia, ossos pequenos de aves
tinham sido achados no piso da caverna, mas, fora isso, só havia as
ossadas de hominídeos.
Afinal, como aqueles restos mortais tinham ido parar numa câmara tão
remota? Era evidente que os indivíduos não viviam na caverna – não havia
artefatos de pedra nem restos de alimentos que sugerissem tal ocupação.
Era concebível que um bando de
H. naledi poderia ter se
perdido e ficado de algum modo preso nas galerias. A distribuição dos
ossos, porém, parecia indicar que foram sendo depositados no decorrer do
tempo, talvez ao longo de séculos. E, se tivesse arrastado para ali
corpos ou partes de corpos desde outros pontos, onde haviam sido
abatidos ou já estavam mortos, um animal carnívoro teria deixado marcas
de dentes nos ossos – e disso não se via o menor traço. Por fim, se, ao
longo de milênios, os ossos tivessem sido levados por água corrente até
os recantos mais profundos da Rising Star, essa água teria carregado
também outros tipos de entulho. Mas não se via cascalho nem outros
resíduos no salão dos fósseis, apenas o sedimento fino que se soltara
das paredes da caverna ou que passara por estreitas fendas. “Quando a
gente elimina o impossível”, certa vez Sherlock Holmes lembrou a seu
amigo Watson, “o que resta, por mais improvável, deve ser a verdade.”
Após descartar todas as outras explicações, Berger e a sua equipe viram-se diante da conclusão improvável de que os corpos dos
H. naledi haviam sido deliberadamente deixados ali por indivíduos da mesma espécie. Até agora, só o
Homo sapiens,
e alguns seres humanos arcaicos, como os neandertais, eram tidos como
capazes de tratar os mortos dessa maneira ritualística. Talvez naquela
época o Passagem do Super-Homem fosse largo o bastante para ser
atravessado a pé, e os hominídeos apenas largaram os fardos sobre o
buraco, sem que eles próprios se arriscassem à descida. Com o tempo, a
pilha crescente de ossos foi pouco a pouco tombando na câmara inferior.
A fim de dispor desse modo dos cadáveres, os hominídeos enfrentaram a
escuridão em todo o trajeto até o buraco estreito e, depois, no caminho
de volta, o que teria exigido algum tipo de iluminação artificial –
tochas ou fogueiras acesas a intervalos. A ideia de um animal de cérebro
minúsculo realizando algo assim complexo parece tão improvável que
muitos outros pesquisadores simplesmente se recusam a considerá-la
viável. Em algum momento no passado, argumentam eles, deve ter existido
uma entrada na caverna que permitia um acesso mais direto à câmara dos
fósseis, e por ela os ossos provavelmente foram carregados pela água.
“Tem de existir outra entrada”, insistiu Richard Leakey, depois de uma
visita a Johannesburgo para examinar os fósseis.
Nesse caso, seria inevitável que a correnteza de água levasse,
juntamente com os ossos, cascalho, matéria vegetal e outros tipos de
entulho até o salão dos fósseis. O problema é que disso não há nenhum
indício. “Não tem muita margem para a subjetividade aqui”, diz o geólogo
Eric Roberts. “Os sedimentos não mentem.”
As práticas funerárias proporcionam conforto aos vivos, dignificam os
falecidos ou facilitam a transição deles para a vida futura. Tais
sentimentos são característicos da humanidade. Mas o H. naledi, ressalta
Lee Berger, não era um ser humano – o que torna esse comportamento
ainda mais intrigante. “É um animal que parece ter tido a capacidade
cognitiva de se reconhecer como separado da natureza”, afirma.
Um
grupo de H. naledi dispõe dos restos mortais de seus semelhantes.
Embora esse comportamento avançado seja desconhecido em hominídeos
primitivos, “não há outra explicação para a presença das ossadas”,
afirma Lee Berger, o cientista responsáve - Ilustração de Jon Foster.
Fonte: Lee Berger, Universidade de Witwatersrand (Wits), África Do Sul
Os mistérios em torno da classificação do
H. naledi, e de como
as ossadas acabaram na caverna, estão inextricavelmente vinculados à
questão da idade desses ossos – e isso ninguém sabe por enquanto. Na
África Oriental, os fósseis podem ser datados com exatidão sempre que
achados acima ou abaixo de camadas de cinza vulcânica, cuja idade pode
ser avaliada pela desintegração, regular como um relógio, dos elementos
radiativos na cinza. Em Malapa, Berger tivera sorte: os restos do
A. sediba
estavam entre duas concreções – finas camadas de calcita depositadas
por água corrente – que podiam ser datadas por radiometria. No entanto,
as ossadas no recesso da Rising Star jaziam no piso da caverna ou
estavam enterradas em sedimentos rasos e mesclados. Quando os ossos
foram parar na gruta é um problema ainda mais espinhoso do que saber
como lá chegaram.
Para quase todos os pesquisadores que participaram da maratona de
estudo dos fósseis, a grande preocupação era o modo como seria recebida a
análise sem que tivesse sido estabelecida uma data. Berger, porém, não
se mostrou nem um pouco incomodado com isso. Se o
H. naledi se revelasse tão antigo quanto apontava a morfologia, então tratava-se da própria raiz da árvore genealógica do
Homo.
Todavia, se fosse comprovado que a nova espécie era bem mais jovem, as
repercussões seriam igualmente importantes. Pois poderia significar que,
ao mesmo tempo que a nossa espécie evoluía, outro ramo separado do
Homo,
com cérebro menor e aparência mais primitiva, também estava solto pelo
mundo, até pouco tempo atrás. Há 100 mil anos? Cinquenta mil? Dez mil
anos? Como sempre, mesmo quando a febril maratona de estudo dos fósseis
foi encerrada, sem oferecer qualquer resposta a essa questão
fundamental, Berger continuou animado. “Não importa a idade, o impacto
vai ser tremendo”, concluiu ele, dando de ombros.
Novas discussões sobre a oreigem do gênero Homo
Algumas semanas depois, em agosto de 2014, ele voa para a África. Para celebrar o 50o aniversário da divulgação do
H. habilis
feita por Louis Leakey, Richard Leakey convidara os principais
especialistas em primórdios da evolução humana para um simpósio no
Instituto Turkana Basin, o centro de pesquisa que ele havia fundado
perto da margem ocidental do Lago Turkana, no Quênia.
A finalidade desse encontro é ver se os cientistas chegam a algum consenso sobre o confuso registro do
Homo em
seus primórdios, deixando assim de lado o exibicionismo e o rancor –
dois vícios endêmicos na paleoantropologia. Alguns dos críticos mais
virulentos de Lee Berger estão presentes, entre os quais gente que havia
publicado artigos mordazes sobre a interpretação que ele fizera dos
fósseis
A. sediba. Para esse grupo, Berger, na melhor das
hipóteses, é um leigo incompetente e, na pior, alguém norteado pela
busca de autopromoção. Há até quem ameace não comparecer caso ele esteja
lá. Contudo, em função do achado na Rising Star, Richard Leakey não
poderia deixar de convidá-lo. “Não tem ninguém mais no planeta
produzindo tantos fósseis quanto Lee”, comenta Leakey.
Durante quatro dias, os cientistas amontoam-se em um laboratório
espaçoso, as janelas abertas para deixar entrar a brisa, os moldes de
todos os indícios relevantes do
Homo primitivo distribuídos nas
mesas. Quando chega a sua vez de falar, Bill Kimbel, do Instituto da
Origem Humana, descreve um novo maxilar de
Homo, exumado na
Etiópia, de 2,8 milhões de anos atrás – o mais antigo membro conhecido
do gênero humano. A arqueóloga Sonia Harmand relata algo ainda mais
espetacular – a descoberta, perto do Lago Turkana, de dúzias de
artefatos de pedra que remontam a 3,3 milhões de anos. Se os utensílios
de pedra surgiram meio milhão de anos antes do aparecimento do nosso
gênero, é difícil seguir argumentando que a característica definidora do
Homo é a sua engenhosidade tecnológica.
Berger mantem-se calado, pouco contribuindo para a discussão, até que surge o tema da comparação entre o
A. sediba e o
H. habilis.
Havia chegado a sua hora. “Talvez a Caverna Rising Star tenha algo a
contribuir para esse debate”, começa. Nos 20 minutos seguintes, expõe
tudo o que havia ocorrido – a casual e feliz descoberta da caverna, a
maratona de estudos em junho e o resumo das suas constatações. Enquanto
fala, alguns moldes de crânios achados na Rising Star são passados de
mão em mão.
Depois, vêm as questões. Vocês fizeram uma análise crânio-dental? Fizemos. O crânio e os dentes do
H. naledi o colocam no mesmo grupo do
Homo erectus, dos neandertais e dos seres humanos modernos. Mais próximo do
H. erectus que o
H. habilis?
É, mais próximo. Tem marcas de dentes de carnívoros nos ossos? Não,
esses são os mortos mais saudáveis que alguém já viu. Conseguiram
avançar com a datação? Ainda não, mas sem dúvida vamos acabar chegando a
uma data. Não há por que se preocupar.
Então, ao cessarem as perguntas, os especialistas presentes fazem algo
inesperado, sobretudo para Lee Berger. Eles irrompem em aplausos.
Sempre que ocorre alguma nova descoberta importante sobre a evolução
humana – ou mesmo de relevância menor –, o mais comum é alegar que se
trata de uma revolução nas concepções anteriores sobre os nossos
antepassados. Mas Berger não afirma ter achado o
Homo mais
antigo, tampouco que os fósseis da gruta vão recuperar o título de
“berço da humanidade” (ainda hoje na África Oriental) para o sul do
continente. Os fósseis, porém, sugerem que ambas as regiões contêm as
pistas de uma história que é mais complexa que a simples metáfora de
“árvore genealógica da humanidade”.
“O que o
H. naledi me diz é que, por mais que se considere o
testemunho fóssil para se propor explicações, a realidade pode ser
diferente”, conta Fred Grine, da Universidade Stony Brook. Talvez uma
espécie anterior de
Homo tenha surgido na África do Sul e, depois, seguido para a África Oriental. “Ou talvez tenha ocorrido o inverso.”
Berger acha que a metáfora correta para a evolução humana, em vez dos
galhos de uma árvore que se bifurcam a partir de uma única raiz, seja um
rio com leitos paralelos, com correntes que se dividem e cujas águas
voltam a se unir mais adiante. Do mesmo modo, os vários tipos de
hominídeo que viviam nas paisagens africanas devem, em algum momento,
ter divergido de um antepassado comum. Depois, contudo, mais à frente no
rio do tempo, esses tipos voltaram a se mesclar, e com isso nós,
situados na foz dessa corrente, hoje somos feitos de um pouco da África
Oriental e de outro tanto da África do Sul, assim como de toda uma
história que coninua desconhecida. Pois uma coisa é certa: se ficamos
sabendo a respeito de um novo hominídeo apenas porque dois exploradores
calharam de ser magros o bastante para se esgueirar pela fenda de uma
caverna já explorada na África do Sul, então, na verdade, a gente não
tem nenhuma ideia do que ainda existe por aí no mundo.