Nasce um continente
Laboratório pioneiro ajuda a reconstruir a história geológica da América do Sul, determinando a idade das rochas
IGOR ZOLNERKEVIC |
50 Anos de FAPESP | MAIO 2012
É difícil imaginar que as fundações rochosas sustentando os
continentes não sejam eternas e estáticas. Ao longo da segunda metade do
século XX, porém, ficou claro para os geólogos que os continentes se
movem lentamente, abrindo e fechando oceanos à sua volta, e que sua
estrutura interna é fruto de uma complexa colagem de imensos blocos de
rocha que foram crescendo e sendo embaralhados na superfície do planeta
ao longo de mais de 4 bilhões de anos.
Impulsionados pelo calor do interior da Terra, esses blocos às vezes
se fragmentaram em unidades menores, às vezes se fundiram em
supercontinentes, constantemente modificando as feições do mapa-múndi.
Essa conturbada dinâmica, explicada pela chamada teoria da tectônica de
placas, ergueu várias cordilheiras de montanhas, hoje completamente
erodidas, mas que já foram tão altas quanto os atuais Andes e Himalaia.
Também criou e destruiu inúmeros oceanos ancestrais, até esculpir o
contorno atual dos continentes.
Destrinchar cada passo dessa história é literalmente um quebra-cabeça
de proporções globais, cujas peças ainda estão para serem totalmente
compreendidas. Funcionando há quase 50 anos, o Centro de Pesquisas
Geocronológicas (CPGeo), do Instituto de Geociências (IGc) da
Universidade de São Paulo (USP), foi o pioneiro na América Latina em
dominar a arte da geocronologia – a determinação precisa da idade de
eventos geológicos gravados nas rochas –, essencial para se reconstruir a
evolução dos continentes.
“O que se conhece de geocronologia sobre a América do Sul começou
conosco”, lembra Umberto Cordani, um dos fundadores do CPGeo e até hoje
um de seus pesquisadores principais. Por meio de suas datações de
rochas, os pesquisadores do CPGeo contribuíram para a consolidação da
teoria da tectônica de placas, bem como ajudaram a esclarecer a história
dos blocos rochosos que se amalgamaram para formar a América do Sul.
O centro nasceu de uma iniciativa do geólogo Viktor Leinz, então
professor catedrático da Universidade de São Paulo (USP), em conjunto
com o físico John Reynolds, da Universidade da Califórnia, em Berkeley,
Estados Unidos. Reynolds foi um dos pioneiros em desenvolver métodos de
geocronologia e responsável pela implantação de laboratórios em vários
países. Com apoio da National Science Foundation, o físico
norte-americano adquiriu os equipamentos necessários, enquanto Leinz
obteve junto à FAPESP e o CNPq os recursos para a instalação e
manutenção do laboratório na USP.
Inaugurado em 1964, o laboratório foi operado inicialmente por
Reynolds, pelo físico Koji Kawashita e pelos então recém-formados
geólogos Gilberto Amaral e Cordani. Já na primeira datação realizada
pelo laboratório, os pesquisadores fizeram uma descoberta importante,
publicada em 1966 na revista
Geochimica et Cosmochimica Acta:
de acordo com suas medidas, as rochas vulcânicas da Formação Serra
Geral, na bacia do Paraná, deveriam ter se formado no período Cretáceo
Inferior (entre 100 milhões e 150 milhões de anos atrás) – muito tempo
depois do que supunham os geólogos da época. A pesquisa desencadeou
discussões sobre a evolução da bacia do Paraná, um tema que, segundo
Cordani, continua sendo um dos problemas em aberto da geologia
brasileira.
Em 1967, a revista
Science publicou o artigo científico que
Cordani considera a principal contribuição do CPGeo à ciência. Embora a
deriva dos continentes já tivesse sido proposta em 1912, pelo
geocientista alemão Alfred Wegener, até o início dos anos 1960
predominava entre os geólogos a teoria verticalista – a ideia de que os
continentes sempre permaneceram no mesmo lugar, sendo que a estrutura
das rochas, suas dobras e falhas podiam ser explicadas exclusivamente
pelo afundamento e soerguimento dos blocos rochosos. Entre 1964 e 1968,
porém, uma série de artigos científicos foi publicada, exibindo as
principais evidências e propondo pela primeira vez quais seriam os
mecanismos por trás da teoria da tectônica de placas.
O artigo na
Science foi resultado de uma colaboração entre
uma equipe do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), liderada
pelo geólogo Patrick Hurley, e os pesquisadores da USP Fernando de
Almeida, Geraldo Melcher, Paul Vandoros, Kawashita e Cordani. No
trabalho, os pesquisadores compararam as idades de várias formações
rochosas do Nordeste brasileiro com formações semelhantes na África
Ocidental, contribuindo para demonstrar que os dois continentes formavam
um só, antes de o nascimento do oceano Atlântico começar a separá-los,
há pouco mais que 100 milhões de anos. “Contribuímos para a mudança de
paradigma das geociências”, diz Cordani.
Cronômetros geológicos
A geocronologia se baseia na medida de quantidades ínfimas de certos
elementos químicos aprisionados dentro de minerais nas rochas. Chamados
de isótopos radioativos, esses elementos se transformam em outros, ao
longo de bilhões de anos. No primeiro método desenvolvido no CPGeo,
chamado de potássio-argônio, por exemplo, os pesquisadores sabem
exatamente quanto tempo demora para uma quantidade do isótopo radioativo
potássio-40 se transformar no isótopo argônio-40. Assim, a proporção
entre as quantidades de potássio-40 e argônio-40 funciona como uma
espécie de cronômetro, marcando o tempo desde que o argônio foi formado e
aprisionado no mineral contendo potássio.
Para tanto, os geocronólogos usam instrumentos chamados de
espectrômetros de massa, capazes de separar e medir as abundâncias de
diferentes isótopos de elementos químicos. Dentro dos espectrômetros de
massa, as amostras são aquecidas a altas temperaturas, liberando seus
elementos, cujos átomos perdem seus elétrons, se tornando ionizados.
Campos magnéticos então separam esses núcleos ionizados de acordo com
suas massas e cargas elétricas, os conduzindo até sensores que os
contabilizam.
Além do método potássio-argônio, atual-mente os laboratórios do
centro realizam quase todas as técnicas de datação de rochas, que foram
sendo desenvolvidas ao longo dos anos, à medida que seus pesquisadores
realizavam estudos no exterior para aprendê-las ou recebiam
pesquisadores visitantes estrangeiros que ajudavam a implantá-las –
intercâmbios possíveis graças a bolsas da FAPESP. “Hoje somos um dos
centros de geocronologia mais completos do mundo”, afirma Benjamin Bley
de Brito Neves, pesquisador do CPGeo. “Cada método tem suas qualidades,
defeitos e finalidades”, ele explica.
O método potássio-argônio data dos episódios em que as rochas
passaram por mudanças de temperaturas, desde a sua formação. Implantado
no começo dos anos 1970, o método rubídio-estrôncio, fornece a idade de
movimentações que deformaram as rochas. Já nos anos 1990, com a compra
de mais equipamentos, financiada pela FAPESP, foram implantados mais
métodos, tais como o samário-neodímio, que determina o momento em que o
magma que deu origem à rocha subiu até a crosta terrestre, e o método
urânio-chumbo, que diz quando o magma se resfriou e cristalizou em
rocha. Há ainda muitos outros métodos (argônio-argônio, chumbo-chumbo,
rênio-ósmio, etc.), cada um ideal para determinar a data de certo evento
geológico registrado em um certo tipo de rocha.
Cordani explica que os primeiros 30 anos do CPGeo foram dedicados a
um extensivo mapeamento das idades das rochas dos principais blocos que
formam a crosta continental da América do Sul: os antigos, imensos e
estáveis blocos de rochas conhecidos como crátons, formados em sua
maioria entre 500 milhões e 4 bilhões de anos atrás, sendo o maior deles
o cráton amazônico, contendo 52% do território brasileiro, seguido dos
crátons do São Francisco e do rio de La Plata, e fragmentos continentais
menores, além do recente cinturão da cordilheira dos Andes, ainda em
constante crescimento devido ao embate entre a placa tectônica oceânica
de Nazca e a placa continental sul-americana.
Esse esforço de décadas, que contou sempre com apoio da FAPESP,
principalmente em sua etapa final, por meio de dois projetos temáticos,
coordenados por Cordani – “Evolução Tectônica da América do Sul”, de
1993 a 1996, e “Evolução Crustal da América do Sul”, de 1996 a 2000 –,
culminou com a publicação do livro
Evolução Tectônica da América do Sul,
durante o 31º Congresso Geológico Internacional, na cidade do Rio de
Janeiro, em 2000. Escrito em colaboração com dezenas de pesquisadores de
várias universidades do Brasil e do exterior, o volume apresentou a
síntese mais completa até aquele momento da evolução de cada núcleo
rochoso do continente, delineando a história de como cresceram e se
juntaram.
© CPGEO/USP
Cristais de zircão, usados para determinar a idade de rochas
Um novo patamar
Embora as linhas gerais da história da formação da América do Sul já
sejam bem compreendidas, ainda há muitos detalhes importantes a serem
desvendados. “A geologia vive de interpretar as informações disponíveis
no momento”, explica Miguel Basei, do CPGeo, que coordenou o mais
recente projeto temático do centro, “A América do Sul no Contexto dos
Supercontinentes”, iniciado em 2005 e concluído em 2011.
Graças à reforma e ampliação do CP-Geo realizados durante o projeto,
seus pesquisadores obtiveram um número recorde de dados sobre a idade e a
composição química de rochas. Foram milhares de datações realizadas
todo ano que permitiram confirmar ou refutar uma série de hipóteses
sobre a evolução dos blocos que se fundiram para formar a América do
Sul, bem como suas antigas conexões com blocos em outros continentes,
especialmente na África.
“O patamar do nosso conhecimento mudou”, afirma Colombo Tassinari, do
CPGeo. As novas visões da história geológica foram publicadas em
capítulos de livros e duas centenas de artigos científicos. Entre as
publicações se destacam as edições especiais de 2011 do
International Journal of Earth Science e do
Journal of South American Earth Sciences, inteiramente dedicadas às conclusões do projeto.
A maior revolução veio com a instalação do Shrimp – sigla em inglês
para Microssonda Iônica de Alta Resolução –, um tipo de espectrômetro de
massa projetado para realizar principalmente o método de urânio-chumbo
com extremo detalhe. Só existem 16 desses instrumentos em operação no
mundo, sendo o da USP o único da América Latina. Fabricado pela
Australia Scientific Instruments, foi adquirido em 2005, com
financiamento da FAPESP (1,5 milhão de dólares) e da Petrobras (1,5
milhão de dólares). Em 2010 foi inaugurado um novo prédio ao lado do
IGc, construído especialmente para abrigar o Shrimp e seus equipamentos
periféricos.
Um deles é um microscópio de catodoluminescência, que obtém imagens
de cristais de zircão (o mineral que contém o Urânio), cujo tamanho
varia de 30 a 300 micrômetros (milésimos de milímetro). As imagens
revelam a estrutura interna do zircão, que guarda o registro dos vários
crescimentos e modificações a que foi sujeito desde a sua primeira
cristalização. Como as várias camadas de uma cebola, cada camada externa
do grão corresponde a um episódio que fundiu e depois recristalizou o
mineral. “Um único grão de zircão pode às vezes contar a história
completa de uma região”, explica Tassinari.
O Shrimp funciona disparando um feixe de íons de oxigênio, capaz de
acertar um ponto específico escolhido pelos pesquisadores no grão de
zircão, com uma precisão de até cinco micrômetros. O feixe libera os
átomos de urânio e chumbo aprisionados no ponto do grão para serem
analisados no espectrômetro de massa. Assim, é possível descobrir a
idade de cada evento de recristalização.
O interesse da Petrobras em financiar a compra do Shrimp é sua
utilidade na busca por petróleo. Por meio das datações detalhadas feitas
pelo instrumento, os geólogos descobrem como se formaram as rochas
sedimentares de uma certa região e quais foram as mudanças de
temperatura que elas sofreram ao longo de sua história – dados
importantes para se determinar a possibilidade de elas conterem reservas
petrolíferas.
Enquanto cada análise isotópica do Shrimp demora em torno de 15
minutos, os pesquisadores muitas vezes optam por realizar essas medidas
com um pouco menos de precisão, mas em 50 segundos e com um custo de
operação um terço mais barato, usando o Neptune – um espectrômetro de
massa de ablação por laser adquirido em 2009 com verba da Finep e
instalado com apoio da FAPESP.
É um dos quatro instrumentos desse tipo funcionando no país. Em vez
de um feixe de oxigênio, o Neptune usa um feixe de luz laser para
arrancar dos zircões pedaços de 20 a 30 micrômetros a serem analisados
pelo espectrômetro. Além disso, os nove coletores de isótopos do Neptune
permitem medir a quantidade de vários elementos químicos diferentes ao
mesmo tempo. A velocidade do Neptune permite aos geólogos datarem mais
de 60 zircões em um dia, um ritmo ideal para estudos preliminares de
reconhecimento e para datar rochas sedimentares, formadas dos detritos
de outras rochas.
Dentro do projeto temático, o CPGeo adquiriu ainda um terceiro
espectrômetro de massa convencional, o Triton. Um aparelho mais simples,
mas de última geração, o Triton analisa amostras de minerais
dissolvidos após um demorado tratamento químico. O passo lento de sete
análises por dia, entretanto, compensa pela alta precisão da medida.
Passado supercontinental
Os pesquisadores do GPGeo estudam todas as eras da Terra. No último
projeto temático, entretanto, suas pesquisas se concentraram em um
período crítico da história da crosta continental sul-americana, quando
muitos de seus pedaços fizeram parte de dois supercontinentes.
No começo, por volta de 4,5 bilhões de anos, a superfície do planeta
era coberta por um mar de lava. “A Terra é uma bomba térmica e é o seu
resfriamento que produz as rochas”, explica Bley. Há 4 bilhões de anos, o
planeta esfriou o suficiente para que surgissem as primeiras massas de
terra firme (as rochas mais antigas conhecidas foram descobertas em
2008, na província de Quebec, no Canadá, com 4,28 bilhões de anos).
Entretanto foi só há 2,5 bilhões de anos que as massas continentais
atingiram tamanhos consideráveis, embora ainda fossem menores que os
continentes atuais, separadas por enormes oceanos.
“Pelo menos seis vezes na história da Terra, essas massas
continentais se reuniram supercontinentes e depois se fragmentaram”, diz
Bley. O projeto temático focalizou principalmente um período
aproximadamente entre 1,3 bilhão e 500 milhões de anos atrás, quando
todas as massas do planeta, incluindo terrenos que hoje constituem
grande parte do Brasil, se amalgamaram em um supercontinente conhecido
como Rodínia. Bley, junto com Reinhardt Fuck, da Universidade de
Brasília (UnB), e Carlos Schobbenhaus, do Serviço Geológico Brasileiro,
participaram de uma colaboração internacional que publicou, em 2008, na
revista
Precambrian Research, a reconstituição mais detalhada até agora da formação e desmembramento de Rodínia.
Os principais continentes formados pela fragmentação de Rodínia foram
quatro: Báltica, Laurentia, Sibéria e Gond-wana. Este último incluiria o
que hoje é boa parte da América do Sul, África, Índia, Austrália e
Antártida. Os quatro continentes ancestrais teriam ainda se fundido mais
uma vez, formando o famoso Pangea, há 230 milhões de anos, que então se
desmembrou dando origem aos continentes atuais.
A reconstituição desse passado remoto é mais que uma curiosidade
intelec-tual. A descoberta de jazidas minerais em uma certa região do
globo pode sugerir que outras áreas hoje distantes, mas que estavam
próximas há milhões de anos, também contenham as mesmas riquezas.
Igualmente, a determinação precisa da idade das rochas auxilia a
exploração desses minérios. Tassinari cita como exemplo a datação de
rochas de uma mina de ouro da região do Quadrilátero Ferrífero, em Minas
Gerais, que revelaram ter 2 bilhões de anos. As companhias de mineração
devem agora buscar rochas dessa mesma idade para prospectar possíveis
novas jazidas.
Outra conquista importante do projeto foi a descoberta por Bley, Fuck
e Elton Dantas, da UnB, das rochas mais antigas da América do Sul, com
3,6 bilhões de anos, encontradas na cidade de Petrolina, em Pernambuco.
Com o que ainda falta para ser explorado no Brasil, entretanto, Bley
suspeita que o recorde deve ser quebrado em breve. “Como a Terra é muito
dinâmica, essas rochas velhas estão muito ocultas, precisa de sorte
para encontrá-las”, afirma o geólogo. “Mas acredito que ainda vamos
chegar nos 4 bilhões de anos.”
Os projetos
1. Evolução tectônica da América do Sul (
nº 1992/03467-9) (1993-1995);
Modalidade Projeto Temático;
Coordenador Umberto Giuseppe Cordani – IGC/USP;
Investimento R$ 200.000,00 (FAPESP)
2. Evolução crustal da América do Sul (
nº 1995/04652-2) (1996-2000);
Modalidade Projeto Temático;
Coordenador Umberto Giuseppe Cordani – IGC/USP;
Investimento R$ 800.000,00 (FAPESP)
3. A América do Sul no contexto dos supercontinentes (
nº 2005/58688-1) (2006-2011);
Modalidade Projeto Temático;
Coordenador Miguel Ângelo Stipp Basei – IGC/USP;
Investimento R$ 3.611.085,27 (FAPESP)
4. Laboratório de geocronologia com microssonda iônica
de alta resolução: suporte para o desenvolvimento de Projetos de Alta
Tecnologia em Exploração de Petróleo (
nº 2003/09695-0) (2005-2008)
Modalidade Parceria para Inovação Tecnológica (Pite);
Coordenador Colombo Celso Gaeta Tassinari – IGC/USP;
Investimento US$ 1.500.000,00 (FAPESP) e US$ 1.500.000,00 (Petrobras)
Artigos científicos
AMARAL, G.
et al.
Potassium-Argon dates of basaltic rocks from Southern Brazil.
Geochimica et Cosmochimica Acta. v. 30, p. 159-89, 1966.
HURLEY, P. M.
et al.
Test of continental drift by means of radiometric ages.
Science. v. 144, p. 495-500, 1967.
FUCK, R. A.
et al.
Rodinia descendants in South America.
Precambrian Research. v. 160, p. 108-26, 2008.
De nosso arquivo
…E a América do Sul se fez – Edição nº 188 – outubro de 2011
As idades da Terra – Edição nº 108 – fevereiro de 2005
A História do planeta contada pelas rochas – Edição nº 30 – abril de 1998