Mangue não é tudo igual!
Há um abismo genético entre os manguezais do Brasil
Pesquisadores paulistas investigam a variabilidade genética do mangue brasileiro e identificam diferenças "dramáticas" entre os manguezais que crescem ao longo do litoral do País
PETER MOON
petermoon@yahoo.com
Agência Brasileira de Divulgação Científica - ABDC
Salvem
a Amazônia! SOS Mata Atlântica! O Cerrado está sendo destruído!
Protejam o Pantanal! E os manguezais, onde ficam nesta história? Metade
da área original de mangue do litoral brasileiro já desapareceu. Você
sabia disto?
Os
manguezais estão entre os ecossistemas mais negligenciados em todo o
mundo. "Entre 1983 e 1997, praticamente metade (46%) da área original
ocupada pelos manguezais no litoral brasileiro desapareceu, aterrada
pelas atividades humanas, como a especulação imobiliária”, afirma o
biólogo Gustavo Maruyama Mori, do Instituto de Biociências da
Universidade Estadual Paulista (Unesp), Campus do Litoral Paulista, em
São Vicente-SP.
A
despeito da perda de metade dos nossos manguezais originais, ainda
assim o Brasil possui a segunda maior área de manguezal do mundo. Em
2014, estima-se que havia 81,5 mil km2 de manguezais nas regiões tropicais e subtropicais ao redor do planeta. Deste total, 9,5% (ou 7,6 mil km2) ficam no Brasil. Ficamos atrás apenas da Indonésia (23,1 mil km2), e bem à frente do terceiro colocado, a Malásia, com 4,7 mil km2.
“Apesar
da grande perda de área de mangue registrada nas duas últimas décadas
do século 20, desde 2000 ocorreu uma redução significativa na taxa de
desflorestamento de manguezais,” diz Mori. "Em 2000, havia 7,7 mil km²
de mangue no Brasil. Em 2014, a área caiu para 7,6 mil km², uma perda de
menos de 1%.”
Os
manguezais brasileiros se espalham por muitas centenas de quilômetros
ao longo do nosso litoral, desde o Amapá até Santa Catarina. Os
manguezais são ecossistemas que funcionam como uma interface entre o mar
e os rios que neles deságuam. Regados diariamente pelos nutrientes
trazidos pela água doce, os manguezais são ambientes de extrema
importância como berçário de peixes marinhos de valor comercial, como o
robalo, e de crustáceos como camarões e caranguejos.
"A
destruição dos manguezais é uma perda irreparável, com sérias
consequências para a atividade pesqueira e para as populações caiçaras
que dependem do mangue para o seu sustento,” afirma Mori.
No
Laboratório de Ecologia Molecular do Instituto de Biociências da Unesp,
em São Vicente, Mori e seus alunos estão realizando um grande estudo
para entender a diversidade genética do mangue brasileiro. As pesquisas
de Mori iniciaram há mais de 10 anos, quando ele ainda era aluno de
doutorado da Profa. Anete Pereira de Souza, a chefe do
Laboratório de Análise Genética Molecular, do Instituto de Biologia da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Geneticista especializada
em plantas, Souza lidera diversos grupos de pesquisa que investigam a
diversidade genética de plantas de grande valor comercial e ecológico,
como por exemplo a seringueira, cana-de-açúcar, capim para pastagens,
mangue, entre outros.
"De
meu laboratório saiu uma nova geração de pesquisadores. Foram 50
doutores nos últimos 20 anos," diz Souza. "Eles puderam treinar e
aprender as mais modernas técnicas genéticas utilizando equipamentos e
material sofisticado. Tudo isto só foi possível graças ao apoio
praticamente ininterrupto que tenho recebido das grandes agências de
financiamento à pesquisas no Brasil: Fapesp, CNPq, Capes e Finep."
Gustavo Mori coletando espécimes no mangue da Baixada Santista (crédito Mariana Vargas Cruz) |
“O
Gustavo é apaixonado pelo mangue. Seu trabalho vem aos poucos revelando
aspectos da história evolutiva dos manguezais brasileiros, algo sobre o
que não se conhecia praticamente nada até ele se interessar pelo
assunto e começar a investigá-lo,” afirma Souza.
“O
mangue é formado por plantas muito particulares,” diz Mori. “O fato
delas dispersarem suas sementes pela água não é uma coisa que costumamos
ver. Outra coisa que me chamava atenção era ver que a maioria das
plantas não sobrevive no ambiente de mangue.”
O
grupo liderado por Mori e Souza, com a participação de Patrícia Mara
Francisco e seu trabalho de Doutorado sobre a variação genética de 3
espécies de mangue ao longo da costa do Brasil, já descobriu duas coisas
notáveis. A primeira delas tem a ver com a diversidade dos manguezais
brasileiros. Apesar de compostos pelas mesmas espécies, os mangues da
região Norte são geneticamente diferentes dos manguezais das regiões
Sudeste e Sul do Brasil. Isto acontece porque as espécies que crescem no
manguezal dispersam suas sementes na água, que as transporta ao oceano,
onde são levadas pelas correntes marinha que ali circulam. Deste modo,
as sementes dos manguezais do Norte flutuam apenas na direção noroeste,
enquanto que as sementes dos manguezais do Sudeste e Sul flutuam rumo ao
Sul.
Funciona
assim: a Corrente Sul Equatorial é uma corrente marinha que atravessa o
oceano Atlântico desde a costa africana até o litoral do Nordeste, onde
suas águas bifurcam formando duas novas correntes. Ao Norte, a Corrente
do Norte do Brasil banha os litorais do Rio Grande do Norte, Ceará,
Maranhão, Pará e Amapá. Já a Corrente do Brasil desce pelo litoral do
Nordeste, lambendo as costas das regiões Sudeste e Sul do País.
É
a direção oposta destas duas correntes que faz com que as populações de
árvores de mangue que crescem no Norte e no Sul do Brasil não troquem
genes entre si. Decorre daí que, ao longo de milhões de anos de
evolução, as espécies do mangue foram tendo características selecionadas
de maneira que as duas populações se adaptassem às condições das
diferentes regiões do litoral brasileiro. A minuciosa investigação
genética levada a cabo pelos pesquisadores pôde verificar que os
manguezais do norte do Brasil são, por exemplo, adaptados à maior
insolação equatorial, enquanto que os manguezais do sul podem crescer
num regime de menos dias de sol ao longo do ano.
“A
gente verificou que a diferença entre as mesmas espécies de mangue que
ocorrem no Norte e no Sul é, em termos genéticos, gritante!” afirma
Souza.
Cabe
aqui um parênteses para explicar exatamente o que vem a ser o mangue.
Manguezal é como se chama a floresta composta por espécies de mangue,
que é um tipo específico de plantas (são árvores) adaptadas a crescer em
ambientes litorâneos inundados diariamente pela maré alta. Em outras
palavras, trata-se de um ambiente que quase nenhuma planta terrestre
toleraria… à exceção do mangue.
Raízes aéreas de Rizophora (crédito Mariana Vargas Cruz) |
Existem
dois gêneros que ocorrem nos manguezais de todo o mundo, Avicennia e
Rhizophora. Apesar de pertencerem a famílias e ordens completamente
diferentes, ou seja, são evolutivamente muito distantes, não possuindo
ancestrais comuns próximos, Avicennia e Rhizophora se adaptaram às
condições específicas dos manguezais.
As
condições daqueles locais à beira mar que sofrem a influência da maré
exigiram que Avicennia e Rhizophora desenvolvessem soluções adaptativas
engenhosas e semelhantes. Avicennia e Rhizophora suportam viver em
ambientes alagados tanto pela água doce dos rios quanto pela água
salgada das marés. Avicennia e Rhizophora germinam e crescem fincando
suas raízes no lodo do manguezal, um substrato movediço que, embora rico
em nutrientes trazidos pelos rios e pela maré, é quase completamente
anaeróbico, ou seja, desprovido de oxigênio. Como adaptação à pobreza de
oxigênio do lodo instável, Avicennia e Rhizophora desenvolveram raízes
aéreas, que permitem lidar com a falta de oxigênio e sustentar a árvore
mesmo quando a maré sobe e o solo encharca. “Avicennia possui raízes
aéreas pequenas, de até uns 15 centímetros e que conseguem respirar. Já
as raízes de Rhizophora podem se estender em arcos que chegam a vários
metros de comprimento,” explica Mori.
Por
causa das marés, o lodo dos manguezais é extremamente salino. E a
presença de sal no solo é fator inibidor para a germinação de quase
todas as plantas terrestres - menos as árvores de mangue. Elas possuem
adaptações que permitem às suas raízes absorver a água salgada e dela
extrair o sal marinho, que é então expelido, por exemplo, através da
superfície de suas folhas. Aí o vento e a água da chuva executam o resto
do serviço, ao soprar ou lavar a superfície das folhas, varrendo todo o
sal acumulado.
Para
dispersar suas sementes, as plantas em geral fazem uso de diversas
estratégias. As sementes podem simplesmente cair no chão e germinar ali
mesmo, elas podem ser levadas pelo vento, ou podem ainda ser dispersadas
nas fezes dos animais que se alimentam dos frutos que abrigam as
sementes. Com o mangue não acontece nada disto. As sementes são
dispersas na água da maré vazante. São sementes bastante resistentes à
ação corrosiva da água do mar, e que, uma vez no oceano, podem flutuar
por várias semanas e até meses conservando o seu poder germinativo até
ir dar numa área onde poderão, então, germinar e crescer. É por causa
desta estratégia de dispersão que os mangues do Norte do Brasil são
diferentes geneticamente dos mangues do Sudeste e do Sul.
Há
dezenas de espécies de Avicennia e Rhizophora crescendo nos mangues de
todos o mundo. No Brasil, só existem cinco. São duas espécies de
Avicennia e três de Rhizophora (R. mangle, R. racemosa e uma espécie
híbrida entre elas, R. harrisonii), sendo este último gênero
popularmente conhecido como mangue-vermelho. “Rhizophora é o gênero
símbolo do mangue. Por ser a mais resistente à influência da maré,
muitas vezes cresce à beira d’água, formando o cartão-postal mais
visível do mangue para os banhistas e para os turistas que seguem ao
litoral e, para chegar nas praias, precisam cruzar áreas de mangue,”
explica Mori.
Já
Avicennia, gênero comumente chamado de mangue-preto, sereíba ou
siriúba, tem duas espécies que ocorrem no Brasil, Avicennia schaueriana e
A. germinans. Ambas crescem em terrenos um pouco mais distanciados da
beira d’água, onde domina Rhizophora.
“As
ferramentas genéticas de que dispomos nos dão condições de fazer um
diagnóstico genético bastante acurado da devastação sofrida pelo mangue.
A técnica de análise por marcadores moleculares, chamados
microssatélites, permite identificar o quanto de uma região de floresta
foi degradada,” explica Souza.
Espécimes de mangue selecionados para estudo em laboratório, na Unesp, campus de São Vicente (Mariana Vargas Cruz) |
O
grau de degradação se revela a partir da comparação dos microssatélites
do genoma nuclear (o DNA) das árvores que compõem uma mesma área de
mangue. “O trabalho é feito por amostragem e comparação do genoma das
plantas. Desta forma, a gente consegue saber quão diferentes ou
semelhantes são os indivíduos de uma mesma população,” explica Souza.
Quando
o DNA das árvores é muito parecido, muito próximo, isto sugere que elas
descendem de um mesmo pequeno grupo de plantas ancestrais,
provavelmente aquelas que sobreviveram ao desmatamento, podendo assim
repovoar a área. “Quando encontramos num manguezal muitas plantas com as
mesmas variações genéticas, significa que ali não existe mais uma
diversidade genética expressiva,” diz Souza.
De
modo inverso, se o DNA das árvores do mangue é diverso, revelando
grande variedade genética dentro de uma mesma população, isto sugere que
houve tempo para se acumular diversidade genética, via mutações, dentro
da mesma população, logo trata-se de uma floresta antiga, formada por
vegetação primária.
“Quando
as plantas de uma população perdem diversidade, isso é um problema.
Elas podem definhar, podem apresentar problemas de crescimento ou de
adaptação. As plantas que não possuírem mais os genes que conferem, por
exemplo, resistência à falta de água, podem morrer quando vier uma
estiagem,” explica Souza. “Neste sentido, as populações de mangue com
baixa diversidade genética podem vir a sofrer mais com os efeitos das
mudanças climáticas.”
Tomemos
o exemplo de Avicennia. As árvores que crescem nos manguezais do delta
do rio Amazonas são mais adaptadas à maior insolação e ao clima mais
quente. Por outro lado, Avicennia que cresce nos manguezais na região de
Florianópolis sobrevive bem em ambientes não tão quentes, com menor
luminosidade, e baixas temperaturas durante o inverno. “Isto significa
que projetos de reflorestamento de manguezais na região Norte não podem
ser feitos com mudas trazidas do Sul, e vice-versa. As mudas irão
morrer,” diz Souza.
Mori
e Patrícia desenvolveram um sistema de marcadores para poder
identificar semelhanças e diferenças entre as mesmas espécies de mangue
que crescem em regiões diferentes. Foram usados mais de 40
microssatélites para estudar as espécies.
Uma
das descobertas mais surpreendentes foi a ocorrência de hibridização
entre espécies diferentes de Avicennia. "Hibridização é um processo
evolutivo que permite o fluxo gênico, ou a troca de genes entre espécies
diferentes. A gente não só identificou híbridos em Avicennia, como
verificou que indivíduos desta primeira geração de híbridos também
conseguiram cruzar. Agora queremos descobrir qual é o processo que está
por trás do aparecimento destes híbridos.”
Os
próximos passos da pesquisa, já em andamento, envolvem a identificação e
análise de um outro tipo de marcadores moleculares, os chamados SNPs
(pronuncia-se “snips", que quer dizer polimorfismo de nucleotídeo
único). “Se, no caso dos microssatélites, conseguimos desenvolver
algumas dezenas de marcadores, no caso dos SNPs a ordem de marcadores
será na casa dos milhares,” diz Mori. “Assim, poderemos realizar uma
análise genética muito mais refinada da variabilidade genética que
existe nas espécies do mangue.”
Com
isto, diz Mori, pretende-se obter respostas para as seguintes
perguntas: “Como será que as espécies responderão às novas condições
climáticas? Elas vão se adaptar? Se sim, de que forma? Quais são os
genes que permitem fazer com que duas populações de uma mesma espécie
ocupem ambientes tão diversos?”
Gustavo Mori coletando espécimes no mangue da Baixada Santista (crédito Mariana Vargas Cruz) |
Coleta de espécimes no mangue da Baixada Santista (crédito Mariana Vargas Cruz) |
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Anete Pereira de Souza
Prof Titular Genética Vegetal
Laboratório de Análise Genética Molecular
Instituto de Biologia (IB)
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
Campinas-SP
Telefone: (19) 3521-1132
e-mail: anete@unicamp.br
REFERÊNCIAS CIENTÍFICAS:
Patrícia M. Francisco, Gustavo M. Mori, Fábio M. Alves, Evandro V. Tambarussi, Anete P. de Souza. 2018. Population genetic structure, introgression, and hybridization in the genus Rhizophora along the Brazilian coast. Ecology and Evolution 8(6):3491-3504.
DOI: 10.1002/ece3.3900
Gustavo M Mori, Maria I Zucchi, Iracilda Sampaio and Anete P Souza. 2015. Species
distribution and introgressive hybridization of two Avicennia species
from the Western Hemisphere unveiled by phylogeographic patterns. BMC Evolutionary Biology 15:61.
DOI: 10.1186/s12862-015-0343-z
Mori GM, Zucchi MI, Souza AP (2015) Multiple-Geographic-Scale
Genetic Structure of Two Mangrove Tree Species: The Roles of Mating
System, Hybridization, Limited Dispersal and Extrinsic Factors. PLoS ONE 10(2): e0118710. DOI: 10.1371/journal.pone.0118710
APOIOS RECEBIDOS DAS AGÊNCIAS DE FOMENTO À PESQUISA:
Coordination
for the Improvement of Higher Education Personnel (CAPES) - Program:
Computational Biology (88882.160095/2013-01) (APS);
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and fellowships from FAPESP- Grant/Award Number (APS): 2008/52045-0,
2008/52197-4, 2010/50178-2 ; Fellowship/Award Number: 2007/57021-9,
2008/56404-4, 2010/50033-4, 2013/08086-1 and 2014/22821-9
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Grant/Award Number (GM): 448286/2014-9
Research fellowship from CNPq to APS fellowship/Award Number (APS): 309661/2014-5
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