Como era o Brasil há 100 milhões de anos
Estudo estabelece a
cronologia de eventos tectônicos e climáticos nas bacias sedimentares
Bauru, Sanfranciscana e dos Parecis, na região Centro-Sul do país (imagem: Wikimedia Commons)
Como era o Brasil há 100 milhões de anos
Novembro de 2022
O mais recente trabalho que procura atar três peças basilares desse
quebra-cabeça colossal, as três bacias geológicas que sustentam a porção
Centro-Sul do território brasileiro, acaba de ser publicado no Journal of South American Sciences.
Um de seus autores é o geólogo Alessandro Batezelli, do Instituto de
Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O projeto
teve o apoio da Fapesp.
O foco do estudo de Batezelli são as bacias sedimentares do
Centro-Sul do Brasil, com destaque para as bacias Bauru, Sanfranciscana e
dos Parecis. Entender o modo como os eventos tectônicos e climáticos
interagiram em cada uma delas no tempo e no espaço ajuda a estabelecer
uma sequência cronológica.
A descoberta daqueles eventos não foi obra de Batezelli e do geógrafo
Francisco Sergio Bernardes Ladeira, o coautor do trabalho. Mas é a sua
pesquisa, assim como a de outros profissionais, que nos permite tecer um
esboço do drama geológico que se desenrolou no Centro-Sul brasileiro
entre 135 e 60 milhões de anos atrás.
A ruptura de Gondwana
No período Jurássico, entre 201 e 145 milhões de anos atrás, a
América do Sul e a África encontravam-se unidas. Ficavam bem no meio do
antigo megacontinente Gondwana. As correntes de ar saturadas de umidade
do antigo oceano Pantalássico não tinham força para atingir o distante
centro de Gondwana. Daí a formação de um imenso deserto, o deserto
Botucatu. É o mesmo processo que se vê hoje na Ásia Central, cujo clima
desértico se deve à sua grande distância dos oceanos.
Quase não há fósseis preservados do Jurássico no Brasil. Explicações,
para tanto, seriam o clima inóspito do deserto e também a difícil
preservação de fósseis num ambiente de dunas. No entanto, o deserto
Botucatu não era desabitado. Até agora, foram achadas apenas algumas
pegadas fossilizadas de mamíferos e de répteis.
Há 140 milhões de anos, a América do Sul e a África começaram a se
separar para dar início à abertura do Atlântico Sul. “O fenômeno que
provocou a ruptura de Gondwana foi o surgimento de fraturas profundas na
crosta terrestre”, diz Batezelli. Por essas fraturas começou a
extravasar magma do interior do planeta em quantidades descomunais. À
medida que as fendas iam se alargando, e os continentes se afastando,
mais lava extravasava, num processo contínuo e muito prolongado, que
perdurou de 137,4 a 128,7 milhões de anos atrás.
O epicentro desta megaerupção vulcânica, “ou mais apropriadamente um
megaextravasamento basáltico, conhecido como Província Vulcânica
Paraná-Etendeka,” como observa o geólogo, foi o Sudeste e o Sul do
Brasil, que se encontravam ligados às terras da atual Namíbia, na
África.
A Província Vulcânica Paraná-Etendeka foi formada a partir de
diversas fendas, ou megavulcões, os maiores de que se têm notícia. Não
eram vulcões explosivos, como os que estamos acostumados a ver. “Não
havia erupções explosivas. As fendas jorravam continuamente”, diz
Batezelli. “Daqui até a África havia fendas através das quais a lava
extravasou sobre uma área gigantesca e por um período muito prolongado.”
Através daquelas fendas transbordaram 2,3 milhões de km3 de lava, que cobriram totalmente 1,5 milhão de km2 – equivalente a cobrir o Estado do Amazonas, o maior do país, com uma camada de lava de 1,5 km de altura.
A origem do aquífero Guarani
Toda essa lava enterrou as antigas dunas do deserto Botucatu e foi-se
acumulando em camadas sucessivas até erigir a Serra Geral, que cobre os
Estados do Paraná, Santa Catarina e o norte do Rio Grande do Sul – além
do leste paraguaio e o norte da Argentina. Sua areia foi cozinhada a
uma temperatura de 1.200 graus centígrados e prensada pelo peso do
magma. A areia acabou virando arenito, uma rocha bastante porosa que tem
a propriedade de armazenar a água da chuva que é absorvida pelo solo.
No caso das dunas do deserto Botucatu, elas deram origem ao aquífero
Guarani, um dos maiores reservatórios subterrâneos de água doce do
planeta, enterrado sob o chão do Centro-Sudoeste do Brasil. O aquífero
Guarani comporta 37 mil km3 de água, equivalente a 1,6 vez o volume do
maior lago do planeta, o Baikal, na Sibéria.
“Nas regiões onde as dunas entraram em contato direto com a lava,
houve um aumento de temperatura tão grande que os sedimentos foram
literalmente cozidos, formando um arenito mais duro e impermeável, que é
usado hoje nas calçadas de mosaico português”, diz Batezelli. Já a lava
resfriada formou basalto, e este, desgastado por cem milhões de anos de
erosão, deu origem à terra roxa, o solo fértil que alavancou no século
XIX as lavouras de café em São Paulo e no Paraná.
Um novo deserto
Há 128,7 milhões de anos, quando os extravasamentos de magma
findaram, aquele gigantesco acúmulo de rocha vulcânica fez com que parte
do Sudeste brasileiro sofresse um abatimento sob seu próprio peso, o
que criou na superfície uma nova bacia sedimentar, a Bacia Bauru. E
sobre esta bacia formou-se um novo deserto de dunas, porém menor que o
anterior.
O Atlântico Sul mal começara a abrir. Ainda nem era um braço de mar,
no máximo uma depressão alagada para onde convergiam os rios, os
sedimentos e a erosão de dois continentes. Ou seja, as águas de
Pantalassa – o oceano que rodeava a Pangeia – ainda estavam longínquas,
assim como sua brisa úmida. Para acabar com as condições de secura do
Centro-Sul do Brasil, seria preciso aguardar outros 60 milhões de anos,
quando o Atlântico Sul, embora com menos da metade da abertura atual,
pôde amenizar o clima.
De qualquer forma, aquela depressão que lentamente se alargava um par
de centímetros por ano já ia se fazendo sentir no clima. O novo deserto
de dunas, agora denominado Grupo Caiuá, não era tão grande como o
antigo deserto Botucatu, afirma Batezelli. Era árido, mas pontilhado
aqui e ali por oásis infestados de várias espécies de crocodilos
terrestres, parentes extintos dos crocodilianos atuais.
Aqueles crocodilos viviam em terra firme, tinham patas longas e
andavam como lobos. Os paleontólogos já descreveram mais de uma dúzia de
espécies. A mais famosa é o famigerado baurusuchus, uma fera predadora.
Mas havia também formas bizarras, com chifres ou com uma carapaça
semelhante à dos tatus, como a do armadillosuchus, e até um crocodilo
herbívoro, o esfagessauro.
As dunas do Caiuá existiram entre 125 e 100 milhões de anos atrás,
quando cederam lugar a uma nova paisagem formada por rios e lagos. “O
clima se tornou muito mais ameno, similar ao semiárido da Caatinga
nordestina”, diz Batezelli. Essa nova depressão recebeu sedimentos que
hoje pertencem ao Grupo Bauru, que existiu entre 80 e 60 milhões de anos
atrás.
Aí sim os titanossauros proliferaram. A maioria das espécies
brasileiras é dessa fase. Seus fósseis homenageiam o nome das cidades
mineiras e paulistas próximas das quais foram encontrados, como
uberabatitan e baurutitan.
A Bacia Sanfranciscana
Concomitante a estes 60 milhões de anos de transformações na Bacia
Bauru, “mais para o norte, na Bacia Sanfranciscana, ocorreram fenômenos
muito parecidos, embora sem serem os mesmo”, salienta Batezelli. A Bacia
Sanfranciscana engloba o oeste de Minas Gerais, Goiás, Tocantins e o
oeste da Bahia, estendendo-se até o sul do Piauí.
Durante o Cretáceo inferior, na Bacia Sanfranciscana se desenvolveram
campos de dunas eólicas. Dezenas de milhões de anos depois, já no
Cretáceo superior, também aconteceu vulcanismo. “Bem no limite entre as
bacias Bauru e Sanfranciscana se formaram diversos vulcões”, revela
Batezelli pautado em sua pesquisa. “Eles apresentaram um extravasamento
bem menor do que o vulcanismo que deu origem à Serra Geral, porém foram
responsáveis por formar uma região mais elevada entre as Bacias Bauru e
Sanfranciscana. Foi como se a crosta inchasse por causa do calor das
intrusões magmáticas.”
Seu relevo é perceptível até hoje, nas crateras no interior das quais
estão as cidades de Araxá, Tapira e Poços de Caldas. “As grandes
jazidas de nióbio assim como outras riquezas minerais do sudeste de
Minas Gerais estão relacionadas a este vulcanismo.”
O vulcanismo na Bacia Sanfranciscana ocorreu há menos de 100 milhões
de anos atrás. A maior parte da lava que extravasou desses vulcões
avançou sobre as dunas.
A evolução da Bacia dos Parecis é semelhante ao ocorrido nas bacias
Bauru e Sanfranciscana. Ainda no período Jurássico superior, ocorreu um
vulcanismo modesto nos Parecis. Há 145 milhões de anos atrás, já no
Cretáceo superior, formaram-se rios e lagos na região compreendida entre
o norte do Mato Grosso e o oeste de Rondônia. Com o passar do tempo o
clima foi se tornando mais árido e o cenário paisagístico se transformou
num campo de dunas.
Em resumo, e comparando os cenários das três bacias sedimentares,
conclui-se que do Cretáceo inferior ao Cretáceo superior, um período de
mais de 60 milhões de anos, houve um deslocamento dos desertos de dunas
no território brasileiro das direções sudeste para noroeste.
Das dunas eólicas aos rios e lagos
Durante o Cretáceo inferior, a região Sudeste era dominada por uma
paisagem desértica formada por dunas eólicas. Já no Cretáceo superior, a
maior parte da região Sudeste passou a ter uma paisagem constituída por
rios e lagos, enquanto que desertos de dunas surgiram no norte de
Minas, em Goiás, Tocantins, Matogrosso e Rondônia. “Isso demonstra que,
com o passar do tempo, houve uma diminuição nas condições de umidade de
sul/sudeste para o centro-oeste/norte do Brasil”, revela Batezelli.
Todo o drama geológico descrito acima se desenrolou em paralelo ao
alargamento do Atlântico Sul. Suas brisas que cresciam em volume e
intensidade semeavam cada vez mais umidade na porção sudeste do
continente.
Esse era o cenário dominante quando da extinção em massa do fim do
Cretáceo, há 65 milhões, que deu fim aos dinossauros. Esse legado
geológico, geográfico e climático formou o novo meio ambiente no qual os
mamíferos da era Cenozoica puderam se adaptar. Mas esta é uma outra
história.
O artigo Stratigraphic framework and evolution of the Cretaceous
continental sequences of the Bauru, Sanfranciscana, and Parecis basins,
Brazil, de Betezelli e Ladeira, publicado no Journal of South American Earth Sciences, pode ser lido em http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0895981115300857.