Evolução divergente
3/9/2010
Por Fábio de Castro
Agência FAPESP – Uma pesquisa internacional com participação brasileira mostrou que bactérias idênticas cultivadas em um mesmo ambiente adotam diferentes estratégias de adaptação.
No estudo, uma população da bactéria Escherichia coli evoluiu de forma divergente para se adaptar às condições do mesmo meio. Depois de 37 dias de crescimento contínuo, os cientistas isolaram diversos mutantes com diferenças importantes em genes regulatórios.
Os resultados do experimento foram publicados na revista Genome Biology and Evolution. Coordenado por cientistas da Universidade de Sydney (Austrália) e da Universidade de São Paulo (USP), o estudo teve também participação de pesquisadores da Universidade Nankai (China).
O brasileiro Beny Spira, professor do Departamento de Microbiologia do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, realizou seu pós-doutorado, com Bolsa da FAPESP, no laboratório de Thomas Ferenci, da Universidade de Sydney. Ambos são coautores do artigo.
Spira coordena atualmente o projeto “O fator sigma S da RNA polimerase em linhagens de Escherichia coli diarreiogênicas”, apoiado pela FAPESP na modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular.
Segundo ele, no experimento de evolução realizado com a Escherichia coli foi observado um processo de divergência simpática – isto é, em um mesmo ambiente, a partir de um inóculo inicial geneticamente homogêneo, uma população de bactérias idênticas evoluiu de forma divergente para melhor se adaptar às condições do meio.
“A grande novidade é que a evolução ocorreu de forma divergente. Em um ambiente constante, sem barreiras físicas, observamos estratégias distintas de adaptação que resultaram em mutações em diferentes genes regulatórios”, disse à Agência FAPESP.
Para o experimento, os autores utilizaram um quimiostato – uma espécie de biorreator que mantém as condições da cultura constantes. No equipamento, o meio fresco é introduzido continuamente, enquanto o excesso de bactérias é eliminado também de forma contínua por meio de um exaustor.
“Normalmente, as bactérias em cultura se multiplicam até saturar o ambiente, mas no quimiostato isso não ocorre, pois a disponibilidade de nutrientes é constante e outras características físicas, como o pH, também. No equipamento, as bactérias permanecem sempre em crescimento exponencial e não entram na fase estacionária”, disse Spira.
Durante todo o experimento, a taxa de crescimento das bactérias era de 0,1 por hora – isto é, a população de bactérias levava cerca de sete horas para dobrar de tamanho, mas se mantinha constante, já que parte dela era continuamente eliminada”, explicou.
Para impedir a saturação da cultura de bactérias no quimiostato, é preciso limitar a quantidade de algum nutriente. No caso, a quantidade de fosfato – elemento crucial para o crescimento das bactérias – foi limitada.
“Conduzimos o experimento do quimiostato durante 44 dias e, ao longo desse tempo, retiramos amostras a cada dois ou três dias. No 37º dia retiramos uma amostra a partir da qual cinco colônias foram isoladas – sendo que cada colônia representa um clone de uma única bactéria. Essas colônias foram analisadas e testadas em relação a vários fenótipos, como morfologia da colônia, sensibilidade a detergentes e fosfatase alcalina – uma enzima diretamente induzida quando a bactéria tem acesso limitado ao fosfato”, disse.
A maior parte das bactérias tem um complexo de mais de 40 genes que respondem ao estímulo externo de limitação de fosfato. “Quando há pouco fosfato no meio, esses genes codificam proteínas que vão auxiliá-las a obter fosfato”, apontou.
Algumas dessas proteínas, situadas na membrana da bactéria, captam fosfato para o organismo, mesmo que o nutriente esteja em baixa concentração no ambiente.
“Esperávamos que a bactéria, evoluindo em um ambiente limitado em fosfato por mais de 100 gerações, acumulasse mutações que resultariam em um aumento na expressão de genes relacionados à captação de fosfato. Mas não esperávamos que as bactérias adotassem diferentes estratégias, promovendo mutações em diversos genes regulatórios”, afirmou.
Motor evolutivo
As bactérias foram então enviadas para os colaboradores chineses, que fizeram o sequenciamento completo do genoma de todas elas e realizaram um estudo de proteômica, a fim de avaliar como a expressão de proteínas se diferenciava entre elas.
“O estudo de proteômica mostrou que havia, no total, mais de 30 proteínas cuja expressão diferia, em cada clone, em relação à bactéria ancestral. O resultado do sequenciamento foi ainda mais interessante: as colônias de bactérias sofreram ao todo 12 mutações diferentes, sendo que três delas se deram em genes regulatórios importantes”, disse.
Depois dos 37 dias no quimiostato, as colônias de bactérias tiveram mutações nos genes rpoS, hfq e spoT. O gene rpoS codifica para uma proteína conhecida como fator sigma S. Os fatores sigma – há sete deles na Escherichia coli – são responsáveis pelo reconhecimento dos sítios promotores dos genes, iniciando o processo de transcrição. Eles associam-se à enzima RNA polimerase para exercer essa função. A RNA polimerase é a principal enzima do complexo responsável pela transcrição do DNA em RNA.
“A ligação do fator sigma ao cerne da RNA polimerase é transitória. Quando a bactéria precisa de fosfato, usa o fator sigma 70 para iniciar o processo de transcrição do gene que codifica a fosfatase alcalina”, explicou.
Segundo o professor do ICB-USP, quase todas as proteínas são reconhecidas pelo fator sigma 70. Mas um outro fator sigma – o sigma S ou rpoS – ganha importância quando a bactéria está em estado de estresse, ou limitação nutricional. O sigma S reconhece o promotor de genes ligados à proteção da bactéria.
“Por um lado, a bactéria busca o crescimento e precisa do fator sigma 70. Mas, quando ela começa a sofrer uma limitação nutricional, acumula o sigma S. A bactéria sofre um dilema, pois os dois fatores competem entre si. Quando um deles é ligado à RNA polimerase, o outro é desligado e a bactéria precisa equilibrar as necessidades de crescimento e proteção”, disse.
Dos cinco isolados obtidos no experimento, três possuíam mutações em rpoS. “Como o ambiente tinha limitação de fosfato, o melhor para a bactéria era eliminar o rpoS, pois ao competir com o sigma 70 ele impede que a bactéria consiga mais nutrientes”, explicou Spira.
Esse modelo, segundo Spira, é conhecido como Autopreservação e Competência Nutricional (Spanc, na sigla em inglês). “Trata-se de um motor da evolução, já que ele permite acumular mutações de acordo com a necessidade imposta pelo ambiente. Quando há muito estresse, o organismo acumula mutações que aumentam a atividade de rpoS; quando há poucos nutrientes, ele perde rpoS”, disse.
Além das três mutações no gene rpoS nas cinco colônias isoladas, os pesquisadores constataram também mutações nos genes hfq e spoT, ambas resultando em uma diminuição da expressão de rpoS.
“Todas essas mutações em genes reguladores tiveram a finalidade de melhorar a capacidade nutricional da bactéria, diminuindo a concentração de sigma S. Esse desvio no equilíbrio Spanc, no entanto, não é gratuito. A bactéria teve ganho nutricional, mas teve também perda de capacidade de preservação, ou seja, de proteção contra estresses ambientais”, disse.
A grande novidade revelada pelo experimento, segundo Spira, é que as três estratégias distintas de mutação em genes regulatórios ocorreram em um ambiente constante sem barreiras físicas.
“Com mutações em genes regulatórios, temos uma modificação profunda na fisiologia da bactéria. Muito possivelmente isso resultaria, a longo prazo, em um processo de divergência evolutiva que poderia, eventualmente, levar ao aparecimento de novas espécies”, disse.
O artigo Divergence Involving Global Regulatory Gene Mutations in an Escherichia coli Population Evolving under Phosphate Limitation, de Beny Spira e outros, pode ser lido por assinantes da Genome Biology and Evolutionem http://gbe.oxfordjournals.org/cgi/content/abstract/2/0/478.
Fonte: Fapesp
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