sábado, 4 de setembro de 2010

O coração ferido de Madagáscar

O isolamento geográfico criou uma terra de prodigiosa riqueza biológica. Pressões populacionais e instabilidade política, porém, aceleram a pilhagem de jacarandá, minérios e pedras preciosas.


Foto de Pascal Maitre O coração ferido de Madagáscar A avenida dos Baobás, uma área próxima a Morondava e protegida desde 2007, é tudo o que resta de uma densa floresta, queimada para dar lugar a plantações. Os baobás, que se elevam a 24 metros ou mais, são valorizados pelos frutos e pela casca.

Em pé, o rapaz de calção e camiseta sem manga impulsiona a piroga rio acima com uma longa vara de bambu. O rio Onive é raso e corre veloz na direção contrária. O céu carrancudo abre-se e despeja ondas de chuva, depois sol e então mais chuva. O moço, que se chama Remon, é tão indiferente ao clima quanto os crocodilos esparramados imóveis pelas margens.



A cada três minutos, ele cruza com outras pirogas que vêm descendo o rio. Remon grita uma saudação, os homens retribuem. São seus colegas de viagens ribeirinhas; cada um conduz um tronco escuro cortado de jacarandá rio abaixo, na floresta pluvial, e o leva às madeireiras a nordeste, na cidade de Antalaha, onde uma remuneração os aguarda. Assim que Remon nos deixar em nosso destino na orla da floresta, fará o mesmo.

Remon não gosta desse trabalho. O dono da madeireira que o emprega - cujo nome ignora - quer que ele reme o dia todo sem pausa, pois os guardas-florestais são subornados para fazer vista grossa por um período limitado, após o qual exigem nova caixinha. Apesar disso, transportar as árvores é melhor do que cortá-las, o trabalho anterior de Remon. Ele demitiu-se após concluir que os riscos eram grandes demais. A extração ilegal já era coisa de muitos anos, mas o ritmo aumentara: a floresta, sem policiamento, encheu-se de gangues organizadas. O desmatamento desenfreado foi estimulado pela queda do governo de Madagáscar, em março de 2009, e pelo insaciável apetite de compradores chineses, que em poucos meses importaram mais de 200 milhões de dólares de jacarandá, extraído das matas do nordeste do país. Um lenhador conhecido de Remon teve seu lote de jacarandá roubado por bandidos da floresta, que lhe disseram: "Nós somos 30; você é um". E há pouco lhe contaram que dias antes dois homens foram decapitados a golpes de facão durante uma disputa por madeira.

O rio aquieta-se, e Remon acende um cigarro de tabaco e maconha. Fala sobre os fady, os tabus que protegeram a floresta por séculos. E diz que até os ladrões de toras comentam preocupados toda a vez que uma árvore desgovernada esmaga um crânio de um lenhador ou uma corredeira fratura uma perna de um remador: "Enfurecemos nossos ancestrais. Eles estão nos castigando". Os mais velhos advertem Remon sobre roubo em uma terra sagrada. "Tudo bem", retruca ele. "Quero ver alguém alimentar a família com árvores."

Antes disso, remon alimentava sua família trabalhando em plantações de baunilha nos arredores de Antahala, uma cidade costeira que, como a própria ilha, é pobre em tudo, mas rica em recursos naturais. Há duas décadas, o então presidente de Madagáscar, Didier Ratsiraka, sentia tanto orgulho com a reputação de Antalaha de capital mundial da baunilha que mandou um emissário até lá para homenagear a cidade. "Ele pensou que tínhamos muitos edifícios e ruas pavimentadas", diz Michel Lomone, veterano exportador de baunilha. "O presidente ficou decepcionado com o relatório de seu assessor."

Desde então, uma série de ciclones e quedas de preço conspirou para arrancar a coroa da rainha da baunilha. Hoje Antalaha é decadente e letárgica, embora sua via principal, a rua de Tananarive, finalmente tenha sido asfaltada, em 2005, com recursos da União Europeia. O trânsito ali consiste de táxis decrépitos, bicicletas enferrujadas, galinhas, cabras e, sobretudo, pedestres, que andam descalços na chuva, de guarda-chuva improvisado de uma enorme folha da árvore conhecida como "palmeira do viajante".

Isso durou até a primavera de 2009, quando as ruas de Antahala foram invadidas pelo ronco de motocicletas. O estoque na única loja de motos da rua de Tananarive se esgotou. Em resposta à demanda, foi aberta na mesma via uma segunda loja, que também começou a faturar. Os compradores eram moços corpulentos, e todos em Antalaha sabiam de onde vinha seu fugaz capital. Não era das plantações de baunilha. Esses mesmos moços podiam ser vistos chegando à cidade na carroceria de caminhonetes, montados em grandes cargas de madeira extraída ilegalmente - e com os bolsos cada vez mais cheios graças ao corte seletivo de jacarandás da floresta.


Madagáscar é uma ilha - a quarta maior do mundo, com mais de 585 mil quilômetros quadrados. Toda ilha tem o privilégio de possuir uma biosfera exclusiva, mas Madagáscar (que se despregou do continente africano há 165 milhões de anos) é um caso especial: cerca de 90% de sua flora e fauna não existem em nenhuma outra parte do planeta. O espetáculo de seus baobás com formato de cenoura, seus lêmures com cara de assombração e suas "florestas" de espigões de pedra é de fazer o mais calejado turista arregalar os olhos de surpresa e encantamento.

Sua beleza rara e impressionante coexiste com um desalento que define o cotidiano dos habitantes. Os malgaxes, principal grupo étnico da ilha, têm uma expressão fatalista mas elegante: "Aleo maty rahampitso toy izay maty androany" ("É melhor morrer amanhã do que hoje"). O madagascarense médio vive com 1 dólar por dia.

Como a população de Madagáscar, mais de 20 milhões de pessoas, cresce 3% ao ano, uma das taxas mais altas da África, a tensão entre a terra rica e os habitantes pobres em torno de uma paisagem finita aumenta dia a dia. Por isso, preocupados ecologistas designaram Madagáscar como um hotspot de biodiversidade. Eles condenam em especial a prática madagascarense de agricultura de queimada, que destrói vastas faixas de floresta para dar lugar a arrozais. A comunidade ambientalista global, que em 2002 exultara quando Marc Ravalomanana assumira a Presidência com um programa de governo verde, ficou desolada em 2009, quando os militares derrubaram Ravalomana do poder e puseram em seu lugar um ex-DJ de rádio, constitucionalmente sem idade para governar. Como diz um veterano de uma ONG servindo em Madagáscar: "Sinto que os últimos 25 anos de trabalho foram desfeitos".

Em setembro de 2009, depois de meses de extração ilegal que rendia em média 460 000 dólares de jacarandá por dia, o novo governo, carente de dinheiro, suspendeu a proibição à exportação, decretada em 2000, e emitiu um decreto legalizando a venda de toras estocadas. Pressionadas pela alarmada comunidade internacional, as autoridades reeditaram a proibição em abril. Mas o desmatamento continua.

O resto do mundo não tem moral para protestar, considerando seu voraz apetite pelos espetaculares recursos de Madagáscar. O saque da floresta ilustra a facilidade com que se pode perturbar o frágil equilíbrio entre os imperativos humanos e ecológicos. Em Madagáscar, esse equilíbrio sempre foi precário. Vários grupos empresariais estrangeiros detêm a maioria dos direitos de prospecção e exploração de ouro, níquel, cobalto, ilmenita e safira no país. A ExxonMobil iniciou, quatro anos atrás, a exploração petrolífera na costa madagascarense. Alguns dos melhores fabricantes americanos de violões há muito tempo constroem o braço de seus instrumentos com o raro ébano de Madagáscar.

Recentemente, o governo da ilha tentou arrendar terras cultiváveis a sul-coreanos e vender água a sauditas. Nesse clima de "estejam servidos", muito é extraído, mas pouco reverte em benefício dos cidadãos. Por isso, não é de admirar que mineiros locais saqueiem as pedras preciosas do interior da ilha para vendê-las em mercados asiáticos. Ou que animais, como a lagartixa gigante Uroplatus henkeli e o ameaçado jabuti Astrochelys yniphora, sejam vendidos para colecionadores de fora da ilha por pequenos contrabandistas. Ou que os moços corpulentos de Antalaha decidam que é melhor morrer amanhã e aceitem hoje o dinheiro dos compradores chineses de jacarandá.

"É bom para a economia; ruim para a ecologia", observa sorrindo um homem envolvido no comércio de jacarandá. Mas o breve surto de prosperidade de Atalaha se revelou enganoso. Além das devastadoras consequências de longo prazo da pilhagem da floresta - o desaparecimento de mais de 10 mil hectares de preciosas árvores dos 4,5 milhões de hectares de áreas protegidas do país, a extinção de lêmures e outras espécies endêmicas, o avanço da erosão do solo, que enche os rios de lodo e arrasa as terras cultiváveis do entorno, a perda de receitas de turismo, entre outros -, os perversos efeitos colaterais do roubo de jacarandá já são sentidos. Os moradores de Antalaha, que agora precisam se desviar das motocicletas no trânsito, também começaram a notar que o preço do peixe, do arroz e de outros gêneros de primeira necessidade começou a subir. A razão é simples: há menos homens no mar e nas plantações. "Todos estão na floresta", diz Michel Lomone, o exportador de baunilha."
r de Antalaha para a floresta - ou seja, para o Parque Nacional Masoala, o maior de Madagáscar - requer uma jornada que ninguém vai querer fazer sem precisar. Ela começa com uma viagem de três horas de carro, partindo da cidade para o sudoeste, por estradas de terra tão arruinadas pelos pesados caminhões de madeira que os veículos atolam nas valas lamacentas. Depois vem um estirão de quatro horas numa piroga subindo o rio Onive, seguido de outras quatro estafantes horas de caminhada em esponjosos solos de arrozais e mais duas em uma trilha sinuosa e escorregadia no espinhaço da floresta primária - tudo sob chuvaradas esporádicas. É assim que se chega à orla do parque Masoala. Mas, para encontrar jacarandá não cortado, é preciso penetrar na mata ainda por muitas horas.

A fronteira sudoeste do parque é a baía Antongil, onde, entre julho e setembro, ocorrem os partos barulhentos das baleias-corcundas. No interior do selvagem útero verde de 235 mil hectares de mata tropical, a obstinação do visitante pode ser recompensada com a visão de destaques da natureza madagascarense: orquídeas, plantas carnívoras, águias-serpentes, o deslumbrante camaleão-de-parson e uma infinidade de lêmures. Masoala oferece uma variedade enorme de ervas medicinais, frutas silvestres e lenha aos moradores das povoações próximas, que todo dia entram e saem descalças da floresta, cantando e conversando. Em contraste, os moços que vêm da cidade a trabalho parecem perdidos no matagal úmido e misterioso.

Durante semanas eles acampam em pequenos grupos ao lado das árvores que escolheram para cortar, subsistindo de arroz e café até o patrão aparecer. Ele chega, inspeciona os jacarandás e dá a ordem. Os machados entram em ação. Dali a horas, uma árvore que deitou suas raízes há talvez 500 anos desaba. Os lenhadores desbastam seu tronco branco até restar apenas o distintivo coração cor de violeta. O jacarandá é cortado em toras de aproximadamente 2 metros de comprimento. Outro grupo de homens amarra cada tora com cordas e a arrasta para fora da floresta até a beira do rio - uma proeza que lhes toma dois dias e rende de 10 a 20 dólares por tora, dependendo da distância. Andando pela floresta, de tempos em tempos, deparo com a chocante aparição de duas figuras estoicas puxando uma tora de 180 quilos por um aclive íngreme, descendo com ela por uma cachoeira ou atravessando atoleiros que sugam como areia movediça. Um esforço de escala bíblica, com a diferença de que eles fazem por dinheiro. Como faz também o homem que os dois encontrarão no rio esperando para amarrar a tora a um radeau, jangada feita a mão que ajuda a tora a flutuar nas correderias (a 25 dólares cada tora). Como faz o condutor de piroga que aguarda o radeau onde as águas se acalmam (a 12 dólares cada tora). Como faz o guarda do parque, a quem os madeireiros subornam para fazer vista grossa (a 200 dólares por semana). Como fazem os policiais nas barreiras da estrada para Antalaha (a 20 dólares por policial). O dano à floresta é bem maior que a perda da madeira de lei: a cada tora de jacarandá, quatro ou cinco árvores mais leves são cortadas e transformadas em jangada para transportá-la rio abaixo.

Numa curva do rio, as pirogas atracam. Um homem de bigode, acocorado em uma tenda, fuma um cigarro enrolado a mão. Seu nome é Dieudonne. Ele trabalha para o intermediário incumbido pelo barão madeireiro de selecionar as árvores para corte e supervisionar as toras no caminho entre a margem do rio e os caminhões de transporte. Foram 18 caminhões naquela manhã. Trinta e poucas toras de jacarandá jazem espalhadas sob a tenda de Dieudonne. A parte dele é 12 dólares por tora. Pergunto o que fará com o dinheiro. Ele reflete por um momento. "Gostaria de comprar uma motocicleta", decide.

Marc ravalomanana, um ex-vendedor de iogurte que chegou a prefeito da capital madagascarense, Antananarivo, magnetizou o Ocidente com promessas de introduzir uma era de consciência ecológica, derrubou o presidente socialista Ratsikara e fundou, em 2002, o partido político Tiako I Madagasikara ("Eu Amo Madagáscar"). O presidente construiu estradas e hospitais, distribuiu uniformes escolares e cortou simbolicamente o cordão umbilical dos colonialistas franceses trocando a moeda do país, do franco para o ariary malgaxe. Ele também intensificou a proibição à agricultura de queimada (sem êxito visível), anunciou o Plano de Ação de Madagáscar em prol da biodiversidade do país e assumiu o compromisso de triplicar as áreas protegidas. Declarações como "nossa riqueza mais importante é o nossa natureza" soaram como música nos ouvidos da comunidade verde. Um ambientalista chegou a comentar: "Senti que tínhamos um lugar à mesa".

Lamentavelmente, outros tipos de "plano de ação" estavam em andamento sob a mesa do presidente: alegou-se que ele confiscava as toras de jacarandá extraídas pelos barões madeireiros e as vendia para seu lucro pessoal. Na presença de repórteres, ele exigiu 10% dos custos de exploração de uma empresa petrolífera. Enquanto os bolsos do presidente se enchiam, o poder aquisitivo de seus compatriotas despencava. Milhares de manifestantes invadiram o palácio presidencial em 7 de fevereiro de 2009. Foram recebidos a bala, com um saldo de pelo menos 30 mortos. Um mês depois, foi a vez de os militares se voltarem contra Ravalomanana, que fugiu para a Suazilândia. No exílio, foi julgado e considerado culpado de confiscar terras municipais para beneficiar negócios de sua família e usar dinheiro público para comprar um avião de 60 milhões de dólares de um sobrinho de Walt Disney.

A comunidade mundial recusou reconhecimento ao novo governo, chefiado por um ex-prefeito de Antananarivo, Andry Rajoelina, de 34 anos. O Banco Mundial, a ONU, a Usaid e outros doadores suspenderam o envio de fundos, e Madagáscar alcançou a dúbia distinção de ser o primeiro país a receber uma verba de 110 milhões de dólares da conta Millennium Challenge (um programa de ajuda financeira do governo americano para o desenvolvimento de países pobres) e, quatro anos depois, ser removido do projeto. Países ocidentais desaconselharam seus cidadãos a visitar Madagáscar. A mão verde de Ravalomanana levou uma palmada. O novo governo ficou sem dinheiro para bancar a aplicação da regulamentação dos parques.

Um grupo exultou o rumo dos acontecimentos. Em 17 de março de 2009, dia em que Marc Ravalomanana assinou sua renúncia, nada menos que 20 mil pessoas lotaram o estádio de futebol de Antalaha. Doze zebus foram assados e, regada a muita cerveja, a multidão dançou, com música ao vivo, a noite inteira. A conta foi paga pelos 13 barões madeireiros da região. A floresta estava desprotegida. Era deles.

O barão madeireiro senta-se à mesa de ébano, numa cadeira de palissandra, rodeado por paredes e teto dessa mesma madeira, que é parente próxima do jacarandá, cuja cor lembra mais a de beterraba. Embora seus pais tenham vindo da China nos anos 1930, e, como ele observa, "os chineses são loucos por jacarandá", o homem nasceu perto de Antalaha e tem uma queda pelos tons castanho-avermelhados da palissandra. Seu escritório exala baunilha, vinda de seu armazém contíguo abarrotado de pacotes prontos para exportação. Um ronco vem de sua serraria, onde pilhas de jacarandá estão expostas para quem quiser ver. Moços magros e musculosos estão sentados em bancos à porta do escritório, em que há um aviso: "Para receber pagamento, é necessário apresentar a carteira de identidade".

Seu nome é Roger Thunam, e muita gente o considera um dos maiores negociantes de jacarandá de Madagáscar. Forte, de óculos, miúdo e de traços asiáticos, ele exibe a calma e a autoconfiança dos que têm muito poder. A pequena população de imigrantes chineses no país está assimilada à comunidade. Thunam é prova disso: figura muito sociável em Antalaha, é mão-aberta quando algum camponês precisa de ajuda para pagar um funeral e, não menos importante, um nome a ser lembrado por quem procura trabalho bem remunerado. E, apesar de tantas gratificações feitas ao longo da cadeia madeireira - aos lenhadores, aos que arrastam as toras até o rio, aos jangadeiros, aos condutores de piroga, aos intermediários, aos caminhoneiros e aos policiais na estrada que leva aos portos de Ihara¨na e Toamasina -, a parte do leão vai a homens como ele, que confessa: "Não me lembro quando foi a última vez em que pisei na floresta".

"Thunam não é empresário; é traficante", diz uma autoridade local. "Extrai o que não lhe pertence. E agora outros acham aceitável pegar o que é proibido." Como se poderia esperar, Thunam alega outra coisa. Nascido no ramo da baunilha, há 30 anos expandiu seus negócios com o comércio de madeira. Desde então, diz ele, o governo já lhe concedeu várias licenças de exploração.

O governo suspende a proibição à exportação de jacarandá quando ciclones devastam a floresta na costa leste de Madagáscar. Nesses períodos, as árvores danificadas pelas tempestades podem ser cortadas e vendidas. Essa política flutuante permite que os barões da madeira estoquem toras cortadas ilegalmente quando a proibição está em vigor e depois as vendam como madeira "recuperada" assim que a proibição à exportação é temporariamente suspensa. A brecha na legislação acaba encorajando mais cortes ilegais nos parques nacionais, onde a maior parte dos jacarandás ainda pode ser encontrada.

Thunam garante que só corta árvores dentro da lei - é verdade que sua serraria está abarrotada de toras de jacarandá, mas ele sabe explicar: "Você não imagina como são os homens que estão lá cortando as árvores. São os mesmos que antes faziam queimadas para plantar. Nunca foram à escola. Não se importam com a próxima geração. São eles os destruidores… Mas esta madeira aqui já está cortada. Se não comprarmos deles, alguém comprará". Ele admite que os chineses loucos por jacarandá são "os compradores mais importantes". (Uma sala de jantar de jacarandá produzida na China é vendida no varejo por mais de 5000 dólares.)

A mulher do barão madeireiro, uma volumosa senhora de meia-idade, entra no escritório e ouve a conversa. Quando o marido sai, ela confessa: "Não gosto de destruir as florestas. Preferiria parar de cortar e só exportar o que já está cortado. Algumas semanas atrás viajei num avião que sobrevoou a selva. Pude ver a destruição. Foi quando concluí que isso deve ser impedido".
Como fazer isso? É a pergunta que faço ao prefeito de Antalaha, Risy Aimé. "Impedir é fácil", responde ele. "É só prender 13 pessoas" - ou seja, Roger Thunam e os outros barões madeireiros.

De vez em quando, o governo fez isso, processando os barões por comércio ilegal. Eles, porém, têm poder colossal e se aproveitam da caótica situação legal da exploração de madeira. Segundo um relatório das ONGs Global Witness e Environmental Investigation Agency, Thunam foi um dos dois barões (em seis casos conhecidos) considerados culpados de exportar jacarandá. Porém, foi solto em 2008, em troca de pagamento num acordo extrajudicial. Novamente acusado em 2009, foi absolvido. Hoje, o barão madeireiro pode ser visto sentado à mesa de ébano, no comando de sua movimentada serraria.

Meu guia em Masoala, um ex-funcionário de parques chamado Rabe, esteve na floresta mais de 100 vezes na última década. Descalço, percorre ligeiro o matagal emaranhado e claustrofóbico que ele vê com familiaridade. Para sua surpresa, algo mudou desde sua última visita, meses atrás. "Não há lêmures", estranha ele. "Desapareceram."

Os ladrões de jacarandá estão por trás disso. Enjoados da dieta de arroz, eles começaram a usar armadilhas. Ficamos sabendo que um grupo capturou 16 lêmures num mesmo dia. Nem todos são comidos ali. Na cidade de Sambava, logo ao norte de Antalaha, três restaurantes têm lêmure no cardápio, desobedecendo às leis federais.

"Não queremos conservar uma floresta vazia, onde a única coisa a ser vista são árvores", diz o primatologista Jonah Ratsimbazafy, da ONG Durrell Wildlife Conservation Trust. Apesar de toda a riqueza ecológica de Madagáscar, o mais importante ao turismo que traz dólares é o seu mascote, o lêmure - como atestam os milhares de visitantes da Reserva Especial Analamazaotra. Esses primatas arborícolas de olhos esbugalhados fascinam não só porque existem apenas ali mas também por causa de sua grande diversidade dentro de uma mesma ilha. Embora praticamente todas as 50 espécies de lêmure sejam polígamas, tenham cauda luxuriante e gostem de grunhir como porco, há também o indri preto e branco, que é monógamo, não tem cauda e embala a floresta com uivos espectrais. Por incrível que pareça, cientistas continuam a descobrir espécies de lêmure na ilha. Mas cada casta é pouco numerosa. Em contrapartida, cinco espécies de lêmure figuram na lista dos 25 primatas mais ameaçados no mundo.

Apesar disso, não se ouve nenhum clamor nacional de preocupação pela sorte desses animais. Os cidadãos "deviam sentir orgulho dos lêmures, pois Madagáscar é o único lugar que os tem", diz Ratsimbazafy. "Mas há pessoas aqui que não sabem ou não se importam. Os madagascarenses que não vivem próximo às áreas turísticas pensam que os lêmures são apenas para os vahaza [brancos]. Eles não veem os benefícios." De fato, embora algumas tribos considerem sagradas certas espécies de lêmure, tribos setentrionais acreditam que o horrendo aiai, um bicho de olhos e orelhas enormes, seja um mau presságio. Por isso, ele é morto sem contemplação.

Tabus desse tipo, os chamados fady, governam a conduta do povo há séculos. São advertências dos ancestrais, que, segundo a crença, permanecem na Terra como intermediários do além, e, portanto, devem ser acatados e apaziguados - às vezes, como eu mesmo vi, por meio de famadihana, uma cerimônia na qual os ossos dos ancestrais são exumados, cerimoniosamente envoltos em nova mortalha branca e conduzidos numa dança ao redor da sepultura, antes de ser devolvidos à terra. Em diferentes tribos, é fady tocar num camaleão ou falar sobre crocodilos, comer carne de porco, trabalhar na quinta-feira. Numerosos fady proíbem a profanação de uma montanha, um penedo, um bosque ou mesmo uma floresta inteira - tudo isso é prova de forte, ainda que complicada, ligação com a terra e de interesse espiritual pela boa saúde da natureza. No entanto, os fady que tendem a ser mais observados são os que não contrariam o ditado malgaxe de que é melhor morrer amanhã.

"Vê aquele trecho sem vegetação?", pergunta Olivier Behra, apontando para uma faixa derrubada em meio a hectares de árvores. "Tem um sujeito desmatando por lá. Vou tentar impedi-lo." "E como pretende conseguir isso?", pergunto. "Dando emprego a ele", responde Behra e sorri.

Essa iniciativa de Behra é uma solução bem perspicaz, ainda que de alcance restrito, para o dilema dos recursos madagascarenses: promover os benefícios imediatos de uma floresta vital para a população local. Esse francês chegou à ilha em 1987, como participante de um projeto da ONU para salvar a mal-amada, mas gravemente reduzida, população de crocodilos. Percebendo que, "quando você dá valor aos crocodilos, o povo se interessa", começou a pagar aos moradores para que lhe trouxessem ovos do réptil. Desde 2000, Behra aplica essa mesma fórmula às ameaçadas florestas de Madagáscar por intermédio de sua ONG, Man and the Environment. Nas matas de Vohimana, 160 quilômetros a leste da capital, Behra encontrou uma floresta que, nas quatro décadas anteriores, fora reduzida à metade. Usando os conhecimentos do povo local, ele catalogou 90 plantas medicinais e elaborou projetos para comercializá-las no exterior. A perfumaria francesa Chanel interessou-se por extratos de folhas como o marungi. Em 2007, o desmatamento cessou em Vohimana. Em vez de centenas de moradores queimarem a floresta para plantar, hoje eles colhem e vendem folhas que nunca imaginaram ter valor econômico.
"Construí uma casa aqui", diz Behra. "Assim o povo vê que não irei embora amanhã, e pode confiar em mim." Ele é engenhoso, mas não dominador. Reconhecendo que "não dá para pegar um sujeito que a vida toda cortou madeira e querer lhe ensinar agricultura", Behra persuadiu o governo a permitir que a gente local continue a usar parte da floresta para extrair madeira destinada à produção de carvão de uso doméstico. Quando soube que havia um caçador de lêmures no povoado, Behra contratou o homem como guia de turistas obcecados por esses animais. Outro homem que ganhava a vida colhendo orquídeas raras hoje é encarregado de um orquidário. Quando pensou em criar um projeto para domesticar os porcos selvagens que andavam destruindo uma plantação de mandioca que ele implementara, membros da tribo Betsimisaraka informaram a Behra que os porcos eram fady - e coisas assim, diz, "é preciso respeitar". Ele persuadiu a Chanel a doar dinheiro para custear agentes de saúde e a merenda escolar em Vohimana.

"Trabalhar em pequena escala, como faz Behra, talvez seja mais eficaz que esses sonhos de salvar florestas inteiras", diz Jean-Aimé Rakotoarisoa, há 30 anos diretor do Museu de Arte e Arqueologia da Universidade de Antananarivo. "A maioria dos programas ambientais alerta: não queimem a floresta, pois nela está seu futuro. Só que essas pessoas não podem esperar pelo futuro. Elas têm fome agora. É preciso mostrar os benefícios imediatos à comunidade."

É essa a mensagem transmitida a um punhado de empresas que exploram recursos em grande escala. Rakotoarisoa hoje é consultor do projeto Ambatovy, uma companhia de mineração de níquel e cobalto de 4,5 milhões de dólares, dirigida por um consórcio estrangeiro próximo à floresta de Olivier Behra. O projeto, embora polêmico porque ainda não cumpriu todas as promessas, tem o cuidado de evitar locais considerados fady, indenizar (e, se necessário, realocar) moradores afetados e interagir continuamente com a comunidade. Não são esforços altruístas, admite Rakotoarisoa: "No interesse da imagem da companhia, ela tem de atentar às preocupações ambientais e sociais. Não conseguirão trabalhar aqui se houver protestos da sociedade".

No extremo sudeste da ilha, próximo à cidade de Tôla¨naro, a mineradora anglo-australiana Rio Tinto está praticando política de boa vizinhança para compensar seu projeto de 940 milhões de dólares na costa do oceano Índico: extração de ilmenita, um minério rico em titânio, ingrediente comum em pinturas, papéis e plásticos. A exploração envolve a destruição de florestas litorâneas excepcionais, as quais abrigam 19 espécies endêmicas, além de plantas medicinais e junco, usado na fabricação de cestos. Ainda assim, em contraste com os barões madeireiros centenas de quilômetros costa acima, a Rio Tinto está tentando preservar cada uma das espécies. A companhia separou áreas de floresta para conservação, criou um programa de ensino agrícola, comprou um porto marítimo público e planeja começar a recuperação das terras em 2011.

"Nosso trabalho é muito criterioso, e esperamos influenciar outras mineradoras a ter os mesmos padrões elevados", diz Manon Vincelette, engenheiro florestal contratado, em 1996, para dirigir o programa ambiental da empresa. Embora a população de Tôla¨naro tenha uma boa estrada, escolas novas e, em alguns casos, empregos recém-criados na mina, continua em dúvida quanto a qual interesse a companhia estrangeira está procurando atender: ao dos residentes ou ao próprio. "A Rio Tinto está fazendo coisas boas", diz o etnólogo Rakotoarisoa. "Mas ouvi tais rumores na comunidade e, da perspectiva social, rumores são mais importantes que os fatos. Não estamos lidando apenas com engenheiros e especialistas. Não há outro modo: é preciso saber o que se passa na cabeça das pessoas."

O aeroporto de Antalaha é pequeno e despojado. Cães e galinhas fuçam à procura de restos de comida. Dezenas de pessoas estão à espera do voo que virá de Antananarivo. Roger Thunam passa pela porta acompanhado de seu assistente. O barão madeireiro percorre o prédio de ponta a ponta distribuindo apertos de mão, abraçando mulheres, trocando palavras simpáticas.

Depois vai lá para fora e, enquanto aguarda o avião, toma água de coco recostado num quiosque de frutas com os outros moradores iguais a ele. Um homem do povo que sabe o que eles pensam… E que lhes dá os meios para atender a suas necessidades. Pelo menos por hoje.

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