segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Quando o Mar Salvou a Humanidade
Pouco após o aparecimento do Homo sapiens, duras condições climáticas quase extinguiram a nossa espécie. Descobertas recentes sugerem que a pequena população que deu origem a todos os seres humanos vivos hoje sobreviveu explorando uma combinação única de recursos ao longo do litoral sul da África
por CURTIS W. MAREAN
COM A POPULAÇÃO MUNDIAL em torno de 7 bilhões, é difícil imaginar que o Homo sapiens já foi uma espécie em extinção. Mas, estudos de DNA de uma amostragem da população atual indicam que, no passado, nossos ancestrais sofreram um drástico declínio populacional. Embora os cientistas não tenham um cronograma preciso da origem e da quase extinção de nossa espécie, a partir de registros fósseis podemos supor que os nossos antepassados surgiram em toda a África pouco antes de 195 mil anos atrás. Naquela época, com clima ameno e comida abundante, a vida era fácil. Mas pouco depois disso, a vida começou a mudar. Já por volta de 195 mil anos atrás, as condições se deterioraram. O planeta entrou em uma longa fase glacial conhecida como Estágio Isotópico Marinho 6, que se estendeu até cerca de 123 mil anos atrás.

Não existe um registro detalhado das condições ambientais na África durante o estágio glacial 6, mas com base nas fases glaciais mais recentes e mais conhecidas os climatologistas supõem que foram quase certamente frias e áridas, e seus desertos eram provavelmente muito mais extensos que os atuais. Grande parte da massa terrestre teria sido inabitável. Enquanto o planeta estava sob esse regime de gelo, o número de pessoas caiu perigosamente: de mais de 10 mil indivíduos reprodutores para apenas algumas centenas. Estimativas de exatamente quando ocorreu esse gargalo populacional e sobre o reduzido tamanho dessa população variam entre os estudos genéticos, mas todos indicam que os seres humanos vivos hoje são descendentes de uma pequena população que habitou uma região da África durante essa fase de resfriamento global.

Comecei minha carreira como arqueólogo trabalhando na África oriental, estudando a origem dos seres humanos modernos. Mas meu interesse começou a mudar quando soube do gargalo populacional que os geneticistas começaram a mencionar no início da década de 90. Hoje os seres humanos exibem baixa diversidade genética em relação a muitas outras espécies, com população mais reduzida e áreas geográficas menos variadas, fenômeno que seria mais bem explicado pela ocorrência de um acidente populacional no início da existência do H. sapiens. Eu me perguntava: onde os nossos antepassados teriam conseguido sobreviver durante a catástrofe climática? Apenas poucas regiões poderiam ter tido os recursos naturais para apoiar os caçadores-coletores. Os paleoantropólogos discutem, de forma acalorada, sobre qual dessas áreas teria sido ideal. A costa sul da África, rica em mariscos e plantas comestíveis durante o ano todo, pareceu-me ter sido um refúgio especialmente bom em tempos difíceis. Assim, em 1991 decidi ir para lá e buscar os sítios com vestígios datados do estágio glacial 6.

Minha pesquisa dentro dessa área costeira não foi ao acaso. Eu tinha de encontrar um abrigo perto o suficiente da antiga costa com fácil acesso aos mariscos e alto o suficiente para que os depósitos arqueológicos não tivessem sido levados pelo mar 123 mil anos atrás, quando o clima aqueceu, e os níveis do mar se elevaram. Em 1999, meu colega sul-africano Peter Nilssen e eu decidimos investigar algumas cavernas que ele havia localizado em um local denominado Pinnacle Point, promontório que se projeta para o oceano Índico, perto da cidade Mossel Bay. Descendo a face íngreme do penhasco, deparamos com uma caverna que parecia particularmente promissora – conhecida simplesmente como PP13B. A erosão dos depósitos sedimentares situados perto da entrada da caverna expôs camadas claras de restos arqueológicos, incluindo lareiras e ferramentas de pedra. Melhor ainda, uma duna de areia e uma camada de estalagmite encobriam esses vestígios de atividade humana, sugerindo serem bem antigos. Ao que tudo indica, tiramos a sorte grande. No ano seguinte, depois de um criador de avestruz local ter nos construído uma escada de madeira de 180 degraus para permitir acesso mais seguro ao sítio, começamos a escavar.

Desde então, o trabalho da minha equipe na área PP13B e em outros locais das proximidades recuperou um registro notável de ações empreendidas pelos povos que habitaram essa região entre aproximadamente 164 mil e 35 mil anos atrás; portanto, durante o gargalo e após a população começar a se recuperar. Os depósitos nessas cavernas, combinados com análises do ambiente antigo de lá, permitiram chegar a uma explicação plausível de como os moradores préhistóricos de Pinnacle Point conseguiram sobreviver durante uma crise climática sombria. Os restos também desmistificam a ideia estável de que a modernidade cognitiva evoluiu muito depois da anatômica: evidências de sofisticação de comportamento são abundantes até mesmo nos níveis arqueológicos mais antigos na PP13B. Sem dúvida, esse intelecto avançado contribuiu significativamente para a sobrevivência da espécie, permitindo que os nossos ancestrais tirassem proveito dos recursos disponíveis na costa.
por CURTIS W. MAREAN
PER-ANDERS PETTERSO
ALTO E SECOPara encontrar sítios arqueológicos que datam do estágio glacial 6 foi necessário procurar abrigos que estivessem bastante próximos do mar para permitir o acesso relativamente fácil aos mariscos; embora elevados o suficiente para que seus restos antigos não tivessem sido levados pelas águas quando o nível do mar subiu há 123 mil anos. A PP13B e outras cavernas esculpidas na falésia de um promontório denominado Pinnacle Point atendem a essas exigências e produziram uma grande quantidade de vestígios que datam desse momento crítico da pré-história humana.




[continuação]

Enquanto em outras partes do continente as populações de H. sapiens pereceram porque o frio e a seca dizimaram animais e plantas que caçavam e colhiam, os sortudos habitantes de Pinnacle Point saboreavam frutos do mar e plantas ricas em carboidratos
que lá proliferavam, apesar do clima hostil. Conforme o estágio glacial 6 se modificava para fases relativamente mais quentes e mais frias, o mar subia e descia, e a antiga linha da costa avançava e recuava. Porém, desde que as pessoas ficassem próximas ao litoral, teriam acesso a uma recompensa invejável.

Do ponto de vista da sobrevivência, o que torna o extremo sul da África atraente é a sua combinação única de plantas e animais. Há uma estreita faixa de terra que contém a maior diversidade de flora do mundo para uma área de seu tamanho, distribuída pela linha costeira. Conhecida como a Região Floral do Cabo, esses 90 mil km2 contêm a surpreendente quantidade de 9 mil espécies de plantas, das quais cerca de 64% existem apenas lá. Na verdade, a famosa montanha da Mesa, que se eleva acima da Cidade do Cabo, no coração da Região Floral do Cabo, exibe mais espécies de plantas que todo o Reino Unido. Dos grupos de vegetação que ocorrem nesse domínio, as duas áreas mais extensas são as de fynbos e renosterveld, que consistem principalmente em arbustos e vegetação rasteira. Para um predador humano equipado com uma cavadeira, elas oferecem um bem valioso: as plantas que compõem esses grupos produzem a maior diversidade mundial de geófitos – órgãos subterrâneos de armazenamento de energia, como tubérculos, bulbos e rizomas.

Os geófitos são uma importante fonte de alimento para os modernos caçadores- coletores por diversos motivos. Contêm grande quantidade de carboidratos; com certeza atingem o pico de conteúdo de carboidratos em determinadas épocas do ano e, ao contrário de frutos aéreos, como nozes e sementes, têm poucos predadores. Além disso, bulbos e rizomas que dominam a Região Floral do Cabo são interessantes porque, ao contrário de muitos geófitos altamente fibrosos, são pobres em fibras em relação à quantidade de carboidratos altamente energéticos, tornando-os mais fáceis de ser digeridos pelas crianças. (O cozimento reforça ainda mais a sua digeribilidade.) E como os geófitos são adaptações para as condições secas, estavam prontamente disponíveis durante as fases glaciais áridas.

O litoral sul também propicia excelente fonte de proteínas, apesar de não ser um terreno privilegiado em termos de caça de grandes mamíferos. Perto da costa, o encontro das águas frias ricas em nutrientes da ressurgência de Benguela com a corrente quente das Agulhas cria uma mistura de redemoinhos quentes e frios ao longo da costa sul. Esse ambiente oceânico diversificado nutre camadas variadas e densas de mariscos em zonas rochosas banhadas pelas marés e em praias arenosas. Os mariscos são uma fonte de proteínas de alta qualidade e de ácidos graxos ômega 3. E, assim como os geófi tos, o resfriamento glacial não diminuiu o seu número; pelo contrário, as temperaturas mais baixas do oceano resultam em maior abundância de mariscos.

CAPACIDADE DE SOBREVIVER
COM A COMBINAÇÃO de proteína de alta densidade calórica, rica em nutrientes, a partir dos mariscos, e carboidratos com poucas fibras, repletas de energia, a partir dos geófitos, a costa sul teria fornecido uma dieta ideal para os primeiros homens modernos
durante o estágio glacial 6. Além disso, as mulheres poderiam obter esses dois recursos por conta própria, livrando-se da dependência de homens para o fornecimento de alimentos de alta qualidade. Ainda temos de descobrir evidências de que os ocupantes da PP13B consumiam geófitos – os sítios dessa idade raramente preservam vestígios orgânicos – embora sítios mais jovens da área contenham amplas evidências desse tipo de consumo. De qualquer modo, encontramos evidências claras dos mariscos como alimentação. Estudos conduzidos por Antonieta Jerardino, da Universidade de Barcelona, em conchas encontradas no sítio mostram que essas pessoas coletavam mexilhões e caracóis marinhos chamados turbos, da beira-mar. De vez em quando, também consumiam mamíferos marinhos, como focas e baleias.

Antes, os exemplos mais antigos conhecidos de seres humanos que usavam os recursos marinhos sistematicamente datavam de menos de 120 mil anos atrás. Porém, as análises de datação realizadas por Miryam Bar-Matthews, da Geological Survey de Israel, e por Zenobia Jacobs, da University of Wollongong, na Austrália, revelaram que os homens da PP13B viviam do mar muito antes que isso: como se relatou na revista Nature em 2007, a alimentação marinha na área remonta a impressionantes 164 mil anos. Há 110 mil anos, o cardápio se expandiu, incluindo outras espécies, como lapas e mariscos.

Esse tipo de alimentação é mais difícil de obter que parece. Os mexilhões, lapas e caracóis marinhos vivem sobre as rochas na zona traiçoeira banhada pelo mar, onde uma onda gigante poderia facilmente derrubar um coletor infeliz. Ao longo da costa sul, a colheita segura com bom retorno só é possível durante as marés baixas, quando o Sol e a Lua se alinham, exercendo sua força gravitacional máxima sobre o fluxo e refluxo da água. Como as marés estão ligadas com as fases da lua, avançando 50 minutos por dia, suponho que as pessoas que viviam na PP13B – que há 164 mil anos se localizava muito mais longe no interior, a 2 ou até 5 km da água, devido ao nível mais baixo do mar – organizavam suas viagens à praia usando uma espécie de calendário lunar, como as pessoas do litoral fazem há anos.

PER-ANDERS PETTERSO
CATADOR DE CONCHASAcredita-se que os mariscos, ricos em proteínas, ajudaram na sobrevivência da população de Pinnacle Point, pois são abundantes durante o ano todo na zona rochosa banhada pelo mar ao longo da costa sul da África (em cima, à esquerda). Os mexilhões (embaixo, à esquerda) apareceram até mesmo nos primeiros níveis da PP13B, datados de 164 mil anos atrás, revelando que os homens começaram a explorar os recursos marinhos mais cedo que se supunha anteriormente. Além de mexilhões, os ocupantes dos sítios de Pinnacle Point coletaram para a sua alimentação diversos tipos de mariscos, além de caracóis denominados turbos, e recolheram conchas vazias de caracóis devido ao seu apelo estético (à direita).


A coleta de conchas não é o único comportamento avançado em evidência em Pinnacle Point há 164 mil anos. Entre as ferramentas de pedra há um número significativo de “pequenas lâminas”, minúsculas lascas com o comprimento duas vezes maior que a largura, pequenas demais para ser empunhadas com a mão. Portanto, devem ter sido ligadas a hastes de madeira e usadas como projéteis. O ferramental composto é indicativo de considerável conhecimento tecnológico, e as laminículas da PP13B estão entre os exemplos mais antigos. Mas logo soubemos que esses instrumentos minúsculos
eram ainda mais complexos que pensávamos.

A maioria das ferramentas de pedra encontrada nos sítios arqueológicos do litoral da África do Sul é feita de um tipo de pedra denominado quartzito. Essa rocha de granulação grossa é ótima para fazer lascas grandes, mas é difícil de ser moldada em pequenas ferramentas refinadas. Para fabricar essas lâminas, as pessoas usavam uma rocha chamada silcrete, de grãos bem finos. No entanto, havia algo de estranho em relação ao silcrete arqueológico, conforme foi observado por Kyle S. Brown, do Institute of Human Origins da University of Arizona, especialista em ferramentas de lascar pedra da minha equipe. Após anos de coleta de silcrete por todo o litoral, Brown determinou que em sua forma bruta a rocha nunca exibe a cor vermelha viva e cinza observada no silcrete dos objetos de Pinnacle Point e em outros lugares. Além disso, o silcrete bruto é praticamente impossível de ser moldado em lâminas pequenas. Então nos perguntamos, onde os ferramenteiros encontraram aquele silcrete superior?

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CORTESIA DE J. C. DE VYNCK
ESCAVAR O JANTAREm determinadas épocas do ano, os geófi tos, órgãos de armazenamento de energia de certos tipos de plantas (à esquerda), incham com carboidratos comestíveis. A vegetação típica que cobre o litoral sul da África, especialmente as plantas dos fynbos (acima), produz geófi tos especialmente nutritivos e de fácil digestão, que provavelmente serviram de alimento básico para os primeiros seres humanos modernos que viveram na região durante o estágio glacial 6.




[continuação]

Uma possível resposta a essa pergunta veio da caverna 5-6 de Pinnacle Point, quando, em 2008, encontramos um pedaço grande de silcrete incorporado nas cinzas. Tinha a mesma cor e brilho observados nos silcretes encontrados em outros depósitos arqueológicos da região. Devido à associação da pedra com as cinzas, nos perguntamos se os antigos ferramenteiros poderiam ter exposto o silcrete ao fogo para torná-lo mais fácil de manusear, estratégia que tem sido documentada em relatos etnográficos dos nativos americanos e australianos. Para comprová-lo, Brown “assou” alguns silcretes brutos e, em seguida, tentou quebrá-los. Eles se transformaram em lascas, de uma forma maravilhosa, e a sua superfície brilhou com o mesmo tom visto nos artefatos de nossos sítios. Assim, concluímos que o silcrete da Idade da Pedra também fora tratado termicamente.

Enfrentamos, no entanto, uma árdua batalha para convencer nossos colegas dessa notável descoberta. De acordo com a tradição arqueológica dizia se que o povo solutrense na França inventara o tratamento térmico cerca de 20 mil anos atrás, usando- o para fazer suas lindas ferramentas. Para assentar o nosso caso, usamos três técnicas independentes. Chantal Tribolo, da Universidade de Bordeaux, realizou o que se chama análise de termoluminescênciapara determinar se as ferramentas de silcrete de Pinnacle Point foram aquecidas intencionalmente. Em seguida, Andy Herries, da University of New South Wales, na Austrália, empregou a suscetibilidade magnética, que busca alterações na capacidade de a rocha ser magnetizada, outro indicador de exposição ao calor entre as rochas ricas em ferro. Finalmente, Brown usou um medidor de brilho para mensurar o brilho que se desenvolve após o aquecimento e a formação de lascas, comparando-o com o brilho dos instrumentos feitos por ele. Nossos resultados detalhados na revista Science do ano passado mostraram que o tratamento térmico intencional foi uma tecnologia dominante em Pinnacle Point há 72 mil anos, e as pessoas de lá o utilizavam de forma intermitente desde 164 mil anos atrás.











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TECNOLOGIA DE PONTA As ferramentas de pedra encontradas na PP13B incluem instrumentos sofi sticados como as pequenas lascas (duas últimas fi leiras) que teriam sido unidas a um eixo de madeira para fazer armas. Os ferramenteiros também parecem ter tratado a pedra termicamente, para ajudar a manuseá-la – técnica que se acreditava ter se originado muito mais tarde na França.
[continuação]

O processo de tratamento térmico atesta duas aptidões cognitivas exclusivamente humanas e modernas. Primeiro, as pessoas sabiam tratar uma matéria prima para torná-la útil, nesse caso, as propriedades de engenharia de pedra por aquecimento, transformando uma rocha de má qualidade em matéria-prima de primeira. Em segundo lugar, conseguiam inventar e executar uma longa cadeia de processos. A confecção das lâminas de silcrete requer uma série complexa de passos cuidadosamente projetados: a construção de um poço de areia para isolar o silcrete, a elevação do calor lentamente até 350 graus Celsius, mantendo a temperatura constante e, depois, baixando- a lentamente. A criação e a realização da seqüência tecnológica e a sua transmissão de geração a geração provavelmente exigia o uso de linguagem. Uma vez estabelecidas, sem dúvida, essas aptidões ajudaram os nossos ancestrais a competir contra as espécies humanas primitivas que encontraram assim que se dispersaram da África, e a sobreviver. Em particular, a complexa tecnologia do fogo detectada em Pinnacle Point teria dado a esses seres humanos modernos arcaicos uma vantagem distinta quando entraram nas terras frias do homem de Neandertal, a quem parece ter faltado esta técnica.

ESPERTO DESDE O COMEÇO
ALÉM DE SEREM tecnologicamente mais experientes, os habitantes pré-históricos de Pinnacle Point tinham um pendor artístico. Nas camadas mais antigas da sequência PP13B, minha equipe desenterrou dezenas de pedaços de ocre vermelho (óxido de ferro), que foram esculpidos de formas diversas e moídos para criar um pó fino provavelmente misturado com um aglutinante como gordura animal, para fazer a tinta que poderia ser aplicada no corpo ou em outras superfícies. Essas decorações normalmente codificam informações sobre a identidade social ou outros aspectos importantes da cultura, ou seja, são simbólicas. Muitos colegas meus e eu acreditamos que esse ocre constitui o primeiro exemplo inequívoco de comportamento simbólico registrado e empurra a origem dessas práticas para dezenas de milhares de anos atrás. Evidências de atividades simbólicas também aparecem mais tarde na sequência da escavação. Depósitos datados de cerca de 110 mil anos atrás incluem tanto o ocre vermelho quanto conchas que foram obviamente coletadas por seu apelo estético, pois no momento em que apareceram na praia, oriundas de sua morada em águas profundas, já não havia vestígio de carne havia muito tempo. Acredito que essas conchas decorativas, juntamente com as provas de alimentação de animais marinhos, sinalizam que essas pessoas, pela primeira vez, começaram a incorporar em sua visão de mundo e nos rituais, uma ligação direta com o mar.

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PER-ANDERS PETTERSO
SONDAGEM DO PASSADOA contínua escavação da PP13B (acima) e de outras cavernas ao longo do litoral sul da África deve revelar mais dados sobre a população ancestral dos seres humanos que sobreviveram à restrição populacional e colonizaram o globo.
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As manifestações precoces tanto dos simbolismos quanto da tecnologia sofisticada em Pinnacle Point têm implicações relevantes para a compreensão da origem de nossa espécie. Fósseis da Etiópia revelam que anatomicamente o homem moderno evoluiu há pelo menos 195 mil anos. Porém, o aparecimento do espírito moderno é mais difícil de ser estabelecido. Os paleoantropólogos usam referenciais diferentes no registro arqueológico para tentar identificar a presença e o objetivo da modernidade cognitiva. Os artefatos feitos com tecnologias que requerem conexões não convencionais de fenômenos aparentemente independentes entre si e longas cadeias de produção, como o tratamento térmico de rochas para a produção de ferramentas, são um referencial. Evidências de arte ou outras atividades simbólicas são outros, assim como o monitoramento do tempo por meio de referências como as fases lunares. Durante anos, os primeiros exemplos desses comportamentos foram todos encontrados na Europa e datados de 40 mil anos atrás. Com base nesse registro, os pesquisadores concluíram que houve um longa defasagem entre a origem de nossa espécie e o aparecimento de nossa inigualável criatividade.

Mas no decorrer dos últimos dez anos arqueólogos trabalhando em vários sítios na África do Sul encontraram exemplos de comportamentos sofisticados que antecedem por um longo tempo os seus semelhantes na Europa. O arqueólogo Ian Watts, por exemplo, que trabalha na África do Sul, descreveu centenas de milhares de pedaços de ocre bruto ou trabalhado, em sítios que datam de até 120 mil anos atrás. Curiosamente, esse ocre, bem como as peças em Pinnacle Point, tende a ser vermelho, embora as fontes locais do mineral exibam grande variedade de tons, sugerindo que os seres humanos preferiam o vermelho, talvez associando-o à cor da menstruação e à fertilidade. Jocelyn A. Bernatchez, estudante de doutorado na Arizona State University, acredita que muitas dessas peças de ocre possam ter sido amarelas inicialmente e depois tratadas termicamente para ficarem vermelhas. E na caverna de Blombos, localizada cerca de 100 km a oeste de Pinnacle Point, Christopher S. Henshilwood, da Universidade de Bergen, na Noruega, descobriu blocos de ocre com gravações regulares, contas feitas de conchas de caracol e ferramentas aperfeiçoadas de osso, que datam de cerca de 71 mil anos atrás (ver “O despertar da mente moderna”, por Kate Wong, SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL,julho de 2005). Esses sítios, juntamente com os que estão em Pinnacle Point, desmentem a afirmação de que a cognição moderna evoluiu tarde em nossa linhagem e, em vez disso, sugerem que a nossa espécie tinha essa faculdade desde seu início. Suspeito que a força motriz para a evolução dessa cognição complexa foi a forte seleção a longo prazo agindo para melhorar a capacidade de nossos antepassados de mentalmente mapear a localização e a variação sazonal de muitas espécies de plantas em ambientes áridos e para transmitir esse conhecimento acumulado para a prole e outros membros do grupo. Essa capacidade está na base de muitos outros avanços, como a capacidade de compreender a ligação entre as fases da Lua e as marés e de aprender a programar suas viagens até a costa para a coleta de mariscos, de acordo com esses conhecimentos. Juntos, os mariscos prontamente disponíveis e os geófi tos forneceram uma dieta de alta qualidade que permitiu às pessoas se tornar menos nômades, aumentando as taxas de natalidade e reduzindo a mortalidade infantil. O maior tamanho dos grupos que resultaram dessas mudanças teria promovido o comportamento simbólico e a complexidade tecnológica conforme as pessoas se esforçaram para expressar sua identidade social e criaram novas tecnologias a partir das antigas, explicandopor que vemos essas práticas sofisticadas na PP13B.


SIGA O MAR
A CAVERNA PP13B preserva um longo histórico de ocupações com mudanças que, ao lado dos registros detalhados do clima local e das alterações ambientais que a minha equipe obteve, revela como nossos antepassados usaram a caverna e a costa durante milênios. Na modelagem da linha paleolitorânea no decorrer do tempo, Erich C. Fisher, da University of Florida, mostrou que as condições mudaram drástica e rapidamente graças a uma plataforma continental comprida e larga, levemente inclinada, ao largo da costa da África do Sul denominada banco das Agulhas. Durante períodos glaciais, quando o nível do mar baixou, uma boa porção dessa plataforma teria sido exposta, aumentando bastante a distância, de até 95 km, entre Pinnacle Point e o oceano. Quando as temperaturas subiram, elevando o nível do mar, a água avançou sobre o banco das Agulhas novamente, e as cavernas mais uma vez ficaram à beira-mar.


A julgar pelos padrões de chuvas e de vegetação evidentes nos registros de estalagmites que medem o tempo entre 350 mil e 50 mil anos atrás, vemos que os fynbos provavelmente seguiram o recuo da costa na plataforma continental agora submersa, e vice-versa, mantendo os geófitos e os mariscos nas proximidades. Durante esses períodos de baixa densidade populacional, a população era livre para procurar a melhor área da região, o ponto de interseção dos geófitos com os mariscos – assim suspeito que eles tenham seguido o mar. A busca de recursos explicaria por que a PP13B parece ter sido ocupada de forma intermitente.

Nossas escavações na PP13B interceptaram a população que pode muito bem ter sido o ancestral de todos no planeta conforme se abrigaram no litoral em constante mutação. Se eu estiver correto em relação a essas pessoas e sua ligação com a costa, no entanto, o registro mais rico da população progenitora está submerso no banco das Agulhas. Lá ele permanecerá pelo futuro próximo, guardado por grandes tubarões- brancos e correntes perigosas.

Os registros genéticos, fósseis e arqueológicos convergem, de forma razoável, na sugestão de que a primeira onda significativa e prolongada de migração de homens modernos a partir da África ocorreu há aproximadamente 50 mil anos. Mas as perguntas sobre os acontecimentos que levaram ao êxodo permanecem sem resposta. Ainda não sabemos, por exemplo, se no fim do estágio glacial 6, havia restado apenas uma população de H. sapiens na África, ou se houve várias, com apenas uma, em última instância, dando origem a todos que vivem hoje. Essas incógnitas propiciam à minha equipe e às outras uma direção de pesquisa muito clara e estimulante para o futuro próximo: nosso trabalho de campo tem como alvo as outras zonas progenitoras em potencial na África durante esse período glacial e a expansão do nosso conhecimento sobre as condições climáticas pouco antes desse estágio. Precisamos aprofundar o conhecimento da história dessa população que acabou espalhando- se para fora de seu refúgio. Eles ocuparam o continente africano e daí conquistaram o mundo.

CURTIS W. MAREAN é professor da School of Human Evolution and Social Change da Arizona State University e associado do Institute of Human Origins. Estuda as origens do homem moderno, a pré-história da África, paleoclimas, paleoambientes e ossos de animais em sítios arqueológicos. Está especialmente interessado na ocupação humana dos ecossistemas costeiros. Ele é o pesquisador-chefe do projeto South African Coast Paleoclimate, Paleoenvironment, Paleoecology, Paleoanthropology (SACP4), fi nanciado pela National Science Foundation.

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