A vida protegida por armaduras
Norte do Paraguai pode abrigar a maior diversidade de fósseis dos primeiros animais com esqueleto
RICARDO ZORZETTO |
Edição 199 - Setembro de 2012
Nos
arredores de Puerto Vallemí, um povoado com 9 mil moradores no norte do
Paraguai, está instalada a única empresa produtora de cimento do país.
Ali, a poucos quilômetros da cidade, a Indústria Nacional del Cemento
escava há décadas um paredão rochoso de 640 metros de altura do qual sai
boa parte do calcário usado na construção civil paraguaia e a poeira
branca que cobre a cidade nos dias de vento forte. Vasculhando as
escavações da mineradora e cavoucando barrancos nas estradas da região, o
geólogo brasileiro Lucas Warren encontrou recentemente o que chama de
“mina de ouro da paleontologia”.
As rochas que trouxe de lá e hoje ocupam uma grande mesa de sua sala
no Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (USP) estão
incrustadas com pequenas estruturas alongadas – elas têm, em média, 1
centímetro de comprimento – que lembram minhocas aprisionadas em um
bloco de lama endurecido pelo sol. Mas são algo muito mais raro,
encontrado em pouquíssimas regiões do mundo. São fósseis do que
provavelmente foram os primeiros seres vivos com esqueleto que surgiram
no planeta.
Especialista em sedimentologia e paleontologia, Lucas estima a idade
dos fósseis em 550 milhões de anos, a mesma das rochas de Puerto
Vallemí.
O geólogo Eric Tohver, pesquisador da University of Western
Australia que colabora com a equipe da USP, tenta atualmente datar as
rochas contendo os fósseis por técnicas mais precisas. Se a idade for
confirmada, esses fósseis estarão entre os mais antigos de animais com
esqueleto biomineralizado, ao lado dos achados na Namíbia, sudoeste da
África, que viveram há 549 milhões de anos – fósseis encontrados mais
recentemente na China sugerem que esse tipo de animal possa ter existido
até mesmo antes, mas a identificação deles ainda é incerta.
São poucas, cinco ou seis, as espécies conhecidas dos primeiros seres
visíveis a olho nu que produziam esqueleto. E, segundo os registros
fósseis, elas existiram por pouco tempo, de 550 milhões a 542 milhões de
anos de atrás. Em Puerto Vallemí, Lucas e o geólogo paraguaio Alberto
Cáceres encontraram exemplares de duas espécies já conhecidas e ao menos
mais uma ainda não descrita pela ciência. Também identificaram
vestígios de seres vivos de corpo mole que viveram na mesma época e
deixaram marcas semelhantes a rastros impressas nas rochas.
Pode parecer pouco, mas não é. Encontrar registros de duas ou mais
dessas espécies vivendo no mesmo período e na mesma região é muito
incomum. Antes de Vallemí, essa convivência havia sido observada na
Namíbia, no Canadá, no Brasil, na China, em Omã e na Rússia. “A qualidade
dos fósseis encontrados no Paraguai e a variedade de espécies tornam
essa coleção uma das mais completas e representativas da fauna daquele
período”, comenta o paleontólogo Thomas Fairchild, do Instituto de
Geociências (IGc) da USP, que, com Lucas, Mírian Pacheco, Claudio
Riccomini, Marcelo Simões e outros colaboradores, descreveu os fósseis
de Puerto Vallemí.
Lucas
encontrou esses fósseis em uma área delimitada a oeste pelo rio
Paraguai e a norte pelo rio Apa, na fronteira com Mato Grosso do Sul,
onde os geólogos Paulo Boggiani e Claudio Gaucher já haviam achado um
fóssil de um desses animais. Muitas das amostras coletadas por Lucas –
algumas ocupam duas mãos abertas – têm centenas de esqueletos
fossilizados, aprisionados em uma camada de quase 1 centímetro de
espessura.
Ele não buscava fósseis quando chegou à região.
Nas primeiras
expedições em 2006, no início do doutorado sob a orientação de Boggiani,
Lucas planejava mapear a evolução da bacia sedimentar da região que se
estende por Mato Grosso do Sul, Bolívia, norte da Argentina e parte do
Chile. As rochas de lá indicavam que essa região havia sido ocupada pelo
mar. Há 550 milhões de anos, os continentes tinham uma conformação bem
diferente da atual. O imenso bloco continental sobre o qual se assentam a
Amazônia e o Paraguai estava isolado do restante da América do Sul,
numa posição mais austral (
ver mapa). Esse trecho do continente sul-americano formava um mar raso, de águas límpidas e hipersalinas.
Foi nesse cenário que os seres com esqueleto de Puerto Vallemí
provavelmente viveram. A forma como estão preservados nas rochas indica
que viviam ancorados nos sedimentos do fundo, uma esteira esverdeada de
cianobactérias que, ao fazer fotossíntese, retiravam gás carbônico da
água e o transformavam em carbonato de cálcio.
A maior parte dos fósseis dessa região pertence a animais de dois gêneros:
Corumbella e
Cloudina.
Os primeiros foram descritos em 1982 pela equipe do geólogo alemão
Detlef Walde, da Universidade de Brasília. Rochas coletadas na região de
Corumbá, Mato Grosso do Sul, continham fósseis de esqueletos com a
forma de uma pirâmide invertida. Os maiores exemplares dessa espécie,
denominada
Corumbella werneri, alcançavam 10 centímetros de
comprimento – no Paraguai eles chegam a 5. Apesar de a espécie ter sido
identificada há três décadas, a composição do seu esqueleto ainda não é
bem conhecida. Analisando exemplares de
Corumbella, a
paleobióloga Mírian Pacheco e Juliana Basso, do IGc, constataram
recentemente que o esqueleto desses fósseis tem uma concentração
importante de material orgânico – possivelmente à base de quitina, o
polissacarídeo do esqueleto dos insetos.
Lucas, Mírian e Fairchild também encontraram poros e papilas
microscópicas no esqueleto desses animais. Descritas em artigo publicado
em agosto deste ano na
Geology, essas características indicam
que o esqueleto foi produzido por um
cnidário, o grupo ao qual pertencem
medusas, anêmonas e águas-vivas. São animais com corpo mole bastante
simples – basicamente uma cavidade digestiva e uma oral, em alguns
casos rodeada por tentáculos com células urticantes.
© LUCAS WARREN/IGC-USP
Trombólito coletado em Vallemí
Até onde se sabe, a distribuição de
Corumbella é restrita.
Além de Corumbá e de Puerto Vallemí, exemplares desse gênero só foram
encontrados na Califórnia. Já os animais do gênero
Cloudina eram
mais cosmopolitas. Os primeiros exemplares, que teriam vivido há 549
milhões de anos, foram identificados em 1972 na Namíbia. Posteriormente
sua presença foi confirmada em quase uma dúzia de países, e agora no
Paraguai.
Menores, os fósseis de
Cloudina não passam de 3 centímetros.
Seu esqueleto lembra casquinhas de sorvete ou copos de café empilhados.
É composto por camadas de carbonato de cálcio, depositadas à medida que
o animal que habitava seu interior crescia. Mais rígido e de origem
exclusivamente mineral, o que facilita a fossilização, esse esqueleto
parece ter garantido mobilidade o suficiente para o animal – de corpo
mais complexo, provavelmente um anelídeo, grupo a que pertencem as
minhocas e os poliquetas (vermes marinhos) atuais – serpentear ao sabor
das ondas.]
Não se sabe ao certo por que a capacidade de produzir esqueleto
surgiu no reino animal, provavelmente mais de uma vez, mas três
hipóteses tentam explicar. Uma delas sugere que a capacidade de produzir
esqueleto mineral seria uma forma de eliminar do organismo níveis
elevados do carbonato de cálcio extraído da água do mar. Ou seja, seria
um mecanismo de desintoxicação. Há também quem pense que o esqueleto,
uma vez surgido ao acaso, teria representado uma vantagem adaptativa por
dar a sustentação necessária para esses animais alcançarem alimentos
disponíveis acima da camada de sedimentos. “Estar 1 centímetro acima do
fundo pode ter permitido explorar uma região sem competidores”, diz
Lucas.
Mas ele, Fairchild e os outros pesquisadores do IGc apostam numa
terceira possibilidade: o esqueleto, surgido ao acaso, funcionaria como
uma armadura que aumenta a chance de sobreviver ao ataque de predadores.
A razão que os leva a acreditar nessa hipótese é a coexistência de
seres com estratégias distintas de produção de esqueleto – os exemplares
de
Cloudina, que extraem a matéria-prima da água, e os de
Corumbella, que sintetizam em grande parte a partir de compostos orgânicos.
A predação, aliás, era uma forma de interação completamente nova. A
vida surgiu na Terra há 3,5 bilhões de anos. Os primeiros seres vivos,
as bactérias, tinham apenas uma célula, uma espécie de bolsa minúscula
contendo material genético e proteínas. E pelos 3 bilhões de anos
seguintes pouca coisa mudou. Alguns seres unicelulares passaram a viver
em colônias, em que cada grupo de células executava funções diferentes.
Mas, juntas, não formavam um organismo. Só entre 580 milhões e 560
milhões de anos atrás é que começaram a aparecer os primeiros organismos
multicelulares, de corpo gelatinoso organizado em tecidos e formas
incomuns (disco ou pena), conhecidos como biota de Ediacara.
Foi nessa época que apareceram os primeiros seres vivos capazes de se
deslocar sobre os sedimentos no fundo dos mares”, conta Fairchild. Até
então eles viviam fixos e fabricavam o próprio alimento usando a luz
solar e os nutrientes disponíveis no ambiente. “Antes do surgimento do
esqueleto, a vida era paz e amor”, brinca.
Seja qual for a razão da origem do esqueleto, o fato é que essa
estrutura parece ter influenciado radicalmente a vida no planeta. Assim
que os primeiros seres com armadura desapareceram, há 542 milhões de
anos, floresceu uma imensa variedade de seres vivos com corpos cada vez
mais complexos, precursores de todos os organismos que vivem hoje. Essa
mudança é a chamada explosão de vida do Cambriano. “Quem quiser entender
melhor o que aconteceu nessa fase de transformação da vida no planeta”,
diz Lucas, “não vai poder ignorar os fósseis de Vallemí”.
Artigos científicos
WARREN, L.V.
et al.
The dawn of animal skeletogenesis: Ultrastructural analysis of the Ediacaran metazoan Corumbella werneri.
Geology. v. 40. p. 691-94. ago. 2012.
WARREN, L.V.
et al.
Corumbella and in situ Cloudina in association with thrombolites in the Ediacaran Itapucumi Group, Paraguay.
Terra Nova. v. 23 (6), p. 382-89. dec. 2011.