O último litoral de Minas
Fósseis de cloudinas e corumbellas encontrados no norte do estado
indicam que um mar raso cobria partes da América do Sul e da África há
cerca de 550 milhões de anos
MARCOS PIVETTA |
Edição 220 - Junho de 2014
Uma equipe de geólogos e paleontólogos da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp) encontrou ali um tipo de fóssil especial: diminutos fragmentos de animais marinhos do gênero Cloudina, seres de formato tubular compostos por uma sucessão de cones calcários encaixados uns sobre os outros. Os restos dos animais, que viveram na Terra por volta de 550 milhões de anos atrás, estavam incrustados em um paredão e em outros afloramentos constituídos de rochas da Formação Sete Lagoas, que faz parte do Grupo Bambuí. Unidade sedimentar da bacia sanfranciscana, o Bambuí se espalha por aproximadamente 300 mil quilômetros quadrados e abarca vastas porções de Minas Gerais e da Bahia, além de se estender para os estados de Goiás, Tocantins e Distrito Federal.
Os fósseis são uma prova praticamente irrefutável de que, pouco mais de meio bilhão de anos atrás, um braço de mar, raso, com no máximo 10 metros de profundidade, cobria essa parte do Brasil. “Essa deve ter sido a última praia que Minas Gerais teve”, comenta, com bom humor, o geólogo Lucas Warren, hoje professor do Instituto de Geociências e Ciências Exatas (IGCE) de Rio Claro, da Unesp, mas que fazia pós-doutorado na USP, com bolsa da FAPESP, quando a descoberta foi feita, no ano passado.
O pesquisador é o autor principal de um artigo na edição de maio da revista científica Geology sobre a descoberta dos fósseis em Januária. “Até agora ninguém havia seguramente encontrado fósseis de animais no Grupo Bambuí”, afirma Warren, que contou com a colaboração de Fernanda Quaglio, especialista em paleobiogeografia, para identificar os fósseis. “Além das cloudinas, também achamos ao menos três fragmentos atribuídos ao gênero Corumbella e rastros em rocha deixados provavelmente por um animal de corpo mole.” Também dotadas possivelmente de um esqueleto, as corumbellas dividiam o mesmo ambiente marinho com as cloudinas. A equipe que coletou os fósseis de Januária incluiu ainda o geólogo Nicolás Strikis, doutorando da USP, também autor do artigo, e um biólogo da cidade mineira, Hamilton dos Reis Salles. Em 2012, o próprio Warren e colegas da América do Sul já tinham encontrado cloudinas e corumbellas em Puerto Vallemí, localidade do norte do Paraguai (ver Pesquisa FAPESP nº 199).
No novo estudo, os pesquisadores defendem a hipótese de que esse braço de mar pouco profundo cobria não apenas a parte do território nacional com rochas do Grupo Bambuí, mas vastas porções do leste da América do Sul, do oeste da África e do sul da Antártida ( ver mapa). “Esse mar conectava os três continentes e se ligava ao oceano”, afirma o biólogo Pedro Strikis, do Instituto de Geociências (IGc) da USP, outro autor do trabalho. Há pouco mais de meio bilhão de anos, a conformação dos blocos rochosos razoavelmente estáveis que constituem a crosta continental, denominados crátons pelos geólogos, era diferente da atual. A América do Sul, a África e a Antártida estavam ligadas entre si. Eram parte do Gondwana, o supercontinente austral, que reunia a maior porção das terras hoje situadas no hemisfério Sul. Apesar de ainda ocorrerem debates intensos entre os pesquisadores brasileiros sobre como e quando exatamente todas as peças do Gondwana se juntaram (se há 520 milhões ou 620 milhões de anos), é consensual a visão de que a maior parte da América do Sul já estava ligada à África e à Antártida por volta de 550 milhões de anos atrás.
A proposta de que houve um mar raso que inundou grandes trechos do Gondwana se baseia fundamentalmente na distribuição geográfica das cloudinas encontradas em várias partes do mundo. Exemplares do fóssil foram obtidos em lugares como a Namíbia, Omã, Argentina, Paraguai, Espanha e China. No Brasil, antes da descoberta dos espécimes no norte de Minas, restos desses seres marinhos tinham sido resgatados em Corumbá, no Mato Grosso do Sul. Com até três centímetros de comprimento, as cloudinas são um dos primeiros animais macroscópicos a apresentar exoesqueleto, concha ou carapaça à base de carbonato de cálcio. De difícil classificação, foram inicialmente incluídas como membros dos anelídeos, que incluem as minhocas, mas atualmente costumam ser classificadas, a exemplo das corumbellas, como parte dos cnidários, grupo que inclui os corais. Seu hábitat era o assoalho de mares pouco profundos, ricos em gás carbônico, numa faixa em que a luz consegue atravessar a água. As cloudinas viviam presas no fundo do mar a esteiras ou tapetes microbianos, finas camadas de cianobactérias que retiram sua energia da fotossíntese. Em alguns casos, essas esteiras estão associadas à formação de rochas calcárias que, quando fossilizadas, podem originar os chamados estromatólitos (se suas camadas forem perceptíveis) ou trombólitos (quando as camadas tiverem aparência grumosa).
Os resquícios de exemplares de cloudina são considerados fósseis-guia. No jargão dos paleontólogos, isso significa que são um tipo de registro encontrado em várias partes do globo terreste, mas cuja ocorrência se restringe a um período de tempo bem definido. Essas peculiaridades fazem com que fósseis-guia sejam internacionalmente usados para correlacionar e datar camadas geológicas e, por extensão, o ambiente de deposição a elas associado. As cloudinas só ocorrem em rochas sedimentares de origem marinha que foram depositadas sobre a crosta terrestre entre 550 milhões e 542 milhões de anos atrás, no final do período geológico denominado Ediacarano. Esse período é imediatamente anterior ao início do Cambriano, quando, em curto espaço de tempo, os invertebrados marinhos providos de carapaças biomineralizadas se diversificaram.
As carapaças das cloudinas são frágeis, possuem quantidade pequena de carbonato de cálcio. “As conchas não eram mecanicamente resistentes e não poderiam ‘sobreviver’ a um intenso transporte ou à ação continuada da água corrente”, diz o paleontólogo Marcello Guimarães Simões, do Instituto de Biociências (IB) da Unesp de Botucatu, que também assina o paper na Geology. “Em outras palavras, elas eram autóctones ou parautóctones.” Por isso, os fósseis desses animais são considerados como originários dos locais em que foram encontrados ou de lugares muito próximos. Tal particularidade reforça a ideia de que um mar raso cobria de fato os locais de ocorrência desses fósseis. Como os sítios com cloudinas faziam parte de crátons mais ou menos contíguos ao que seria o Gondwana há cerca de 550 milhões de anos, é razoável supor que esse antigo mar raso juntasse a América do Sul à África.
A idade do Bambuí
Além de ser uma evidência de que águas oceânicas inundaram partes do supercontinente austral em seus primórdios, os exemplares de cloudinas ajudam os geólogos nacionais a estabelecer uma cronologia mais precisa para os sedimentos que estão na base do Grupo Bambuí. A idade dessa unidade geológica tem sido alvo de controvérsias nas últimas décadas. As estimativas para o período em que suas rochas se formaram variam enormemente, de 740 milhões a 550 milhões de anos atrás. Em 2012, o geólogo Márcio Pimentel, então na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e hoje na Universidade de Brasília (UnB), determinou a idade de 25 amostras de zircão detrítico coletadas em áreas do Grupo Bambuí no norte de Minas e no centro da Bahia. Os zircões são minerais cristalizados em granitos ou em rochas vulcânicas que, posteriormente, são erodidos, transportados com os sedimentos e depositados em bacias. Contêm quantidades significativas de urânio e sua idade pode ser calculada por meio do decaimento radioativo. A idade obtida por Pimentel para os cristais encontrados no Bambuí foi entre 600 milhões e 550 milhões de anos, mais jovem do que normalmente se associava ao grupo (ver Pesquisa FAPESP nº 195). “Encontrar fósseis de animais em Januária foi uma grata surpresa e praticamente encerra a polêmica em torno da idade do Grupo Bambuí”, afirma Pimentel.
O geólogo Claudio Riccomini, do IGc-USP, vai na mesma linha, embora faça uma ressalva. “A descoberta de cloudinas e também de fragmentos de corumbellas responde de forma conclusiva à questão da idade do Grupo Bambuí, pelo menos no plano do conhecimento atualmente estabelecido”, diz Riccomini, que, aliás, é também um dos coautores do artigo sobre os novos fósseis marinhos. “Mas esse debate não se encerra por completo. Entre outros temas, é importante verificar se o Grupo Bambuí apresenta a mesma idade em diferentes partes de sua bacia e averiguar as relações que as rochas da Formação Sete Lagoas apresentam com os depósitos glaciais que estão situados abaixo delas.”
Em linhas gerais, os especialistas concordam a respeito da importância dos fósseis de Januária para o estabelecimento de uma cronologia mais precisa do Grupo Bambuí e para a formulação da hipótese de que partes significativas da América do Sul, da África e da Antártida estavam cobertas por um mar raso cerca de 550 milhões de anos atrás. No entanto, a descoberta das cloudinas no norte de Minas intensifica a discórdia em torno de uma questão de fundo: há pouco mais de meio bilhão de anos, o supercontinente austral Gondwana já estava totalmente formado ou não? Esse tema divide os estudiosos, que nos últimos anos se alinharam em torno de dois grupos com visões distintas. Cada corrente de pensamento se baseia em diferentes tipos de dados, como datações de rochas e informações sobre paleomagnetismo, que ajudam a determinar onde estariam os crátons do Gondwana num determinado período e como poderia ter sido sua movimentação e interação dentro do globo terrestre ao longo do tempo.
Os autores do trabalho com os fósseis de Januária defendem a hipótese de que o Gondwana, sobretudo sua porção oeste (que hoje inclui a América do Sul), ainda não estava totalmente formado no período em que cloudinas e corumbellas viveram. De acordo com essa teoria, a maioria dos grandes blocos continentais, os tais crátons, constituintes do supercontinente já estavam juntos, mas um deles, o grande cráton da Amazônia, ainda se encontrava apartado dos demais há cerca de 550 milhões. Um antigo oceano, batizado de Clymene em 2006 pelo geólogo Ricardo Trindade, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, separaria a maior parte do Gondwana do cráton da Amazônia. Por esse cenário, o Clymene seria a fonte das águas salgadas que teriam criado o mar raso sobre uma parte significativa das terras do nascente Gondwana no tempo das cloudinas. Apenas por volta de 520 milhões de anos atrás esse oceano teria se fechado e o quebra-cabeça da montagem do supercontinente austral teria terminado. “A formação da parte ocidental do Gondwana é mais complexa e se deu mais tarde do que se acreditava”, diz Trindade.
Para o geólogo Umberto Cordani, do IGc da USP, as águas do mar raso que provavelmente cobriram uma parte da América do Sul e da África no final do período Ediacarano não podem ter vindo do Clymene. O motivo de tal impossibilidade é, segundo ele, simples: esse oceano nunca existiu. Cordani, Márcio Pimentel, da UnB, e outros pesquisadores defendem a visão mais clássica a respeito do estabelecimento do Gondwana. Segundo essa hipótese, a parte ocidental desse supercontinente, formada pela África e pela América do Sul, juntou-se por volta de 620 milhões de anos atrás, por meio do fechamento de um grande oceano, o Goiás-Pharusian, que separava os crátons do Congo e do Saara dos blocos continentais da Amazônia e do oeste africano. No período das cloudinas, portanto, a América do Sul e a África não possuiriam oceanos internos, de acordo com essa visão. Os pequenos animais marinhos agora encontrados em Minas Gerais e em outros sítios do Gondwana povoariam um extenso mar interior, raso, apoiado sobre litosfera (crosta) de tipo continental. “Não há nenhuma evidência geológica no Brasil Central de uma litosfera de tipo oceânica no período Ediacarano ou Cambriano que possa estar associada à possível existência do Clymene”, afirma Cordani.
De forma cordial, os dois grupos com visões distintas sobre o processo de formação do Gondwana têm publicado artigos e comentários questionando dados e interpretações feitas pelos colegas que não compartilham de sua posição. A descoberta dos fósseis marinhos no norte de Minas – para uns, prova de que o oceano Clymene transbordou sobre a América do Sul e África – é mais um ingrediente adicionado à polêmica.
Projeto
Tectônica e sedimentação do Grupo Itapucumi no contexto das plataformas carbonáticas ediacaranas: abordagem geoquímica, geocronológica, paleomagnética e bioestratigráfica (nº 2010/19584-4);
Modalidade Bolsa no país – Regular – Pós-doutorado; Pesquisador responsável Claudio Riccomini (IGc-USP); Bolsista Lucas Verissimo Warren – IGc/USP; Investimento R$ 150.870,57 (FAPESP).
Artigo científico
WARREN, L.V et al. The puzzle assembled: Ediacaran guide fossil Cloudina reveals an old proto-Gondwana seaway. Geology. v. 42, n. 5, p. 391-94. mai. 2014.
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