Um achado sem precedente
Divulgada a descoberta de vários fósseis de pterossauros,
com ovos em três dimensões, em depósitos do Cretáceo na China. Novas
informações sobre esses répteis alados são apresentadas por Alexander
Kellner em sua coluna de junho.
Publicado em 13/06/2014
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Atualizado em 13/06/2014
Reconstrução de um casal de ‘Hamipterus’, em vida,
acompanhado de um filhote. Pela primeira vez, como mostra estudo que
acaba de ser publicado, foram encontrados vários fósseis de pterossauros
em um mesmo local. (arte: Maurílio Oliveira.
Não foi à toa que a pesquisa – fruto de uma colaboração sino-brasileira – ganhou destaque na capa de uma das mais importantes revistas de biologia do mundo, a Current Biology. Além da importância do trabalho em si, o tema possibilita apresentar algumas informações de bastidores desse extraordinário achado científico.
Há mais de uma década trabalho com pesquisadores do Instituto de Paleontologia de Vertebrados e Paleoantropologia (IVPP, na sigla em inglês), de Pequim, China, particularmente com o colega Xiaolin Wang, recentemente empossado como membro correspondente da Academia Brasileira de Ciências. Nesse período, fizemos vários trabalhos em colaboração. Mas o principal deles é, sem dúvida, a descoberta de Hamipterus tianshanensis, como foi denominado o novo pterossauro.
O que vi me deixou pasmo: um bloco de rocha com nada mais, nada menos que três crânios de pterossauros, além de vários ossos
Tudo começou em 2006, quando Xiaolin encontrou restos de ossos de
pterossauros na província de Xinjiang. Situada na parte noroeste da
China, essa região é autônoma, e a maioria de sua população, os uigures,
é muçulmana. Lembro-me bem de quando vi o material pela primeira vez:
os ossos brancos estavam muito bem preservados e representavam vários
indivíduos.Sabia que nos anos seguintes Xiaolin continuou realizando expedições naquela região, mas não tinha mais detalhes. Até que, em maio de 2008, pelo quinto ano consecutivo, eu estava novamente no IVPP, em Pequim. Fui ao escritório de Xiaolin para discutir aspectos de um trabalho que estávamos fazendo juntos, mas ele não se encontrava.
Como a porta estava aberta, entrei e vi no canto direito da sala o que parecia ser um bloco de rocha coberto por um tecido de seda verde. Xiaolin sempre guarda novidades de suas coletas em sua sala. Nem é preciso dizer que fiquei curioso ao ver aquele material e tive que me conter para não levantar o pano e dar uma espiada no que ele escondia.
Minutos depois, Xiaolin entrou. Conversamos sobre o trabalho e, quando eu estava de saída, ele me chamou para mostrar o que estava debaixo do tecido de seda verde. O que vi me deixou pasmo: um bloco de rocha com nada mais, nada menos que três crânios de pterossauros, além de vários ossos.
Sabem quando três crânios desses répteis voadores foram encontrados juntos em um mesmo bloco de rocha sedimentar? Nunca! Após rápida conversa, Xiaolin cobriu novamente o material e sentenciou: “Para o ano que vem”. Não é preciso mencionar minha ansiedade; queria estudar logo o material, que sem dúvida era uma grande descoberta. O “ano que vem” demorou mais que o previsto, mas a espera valeu a pena.
Ovos em 3D
Logo de início, quando Xiaolin mostrou os primeiros ossos de pterossauros, informando que haviam sido coletados em uma mesma camada, levantei a hipótese de que se trataria de uma região que talvez fosse uma espécie de berçário daquele réptil voador.
Antes dessa descoberta havia apenas quatro ovos de pterossauros, todos muito comprimidos e com a superfície mal preservada.
Sugeri então que ele ficasse atento a ovos e ninhos. Dito e feito. Alguns anos depois, Xiaolin me trouxe uma daquelas luxuosas caixas chinesas. E, dentro dela, guardado como um verdadeiro tesouro, um ovo de pterossauro preservado em 3D. Não posso deixar de enfatizar a grande emoção que senti quando vi aquele exemplar.
Desde então foram descobertos alguns novos ovos, mas nenhum ninho ainda. A importância daquele material está em sua preservação. Para que o leitor tenha uma ideia, antes dessa descoberta havia apenas quatro ovos de pterossauros, todos muito comprimidos e com a superfície mal preservada.
A análise dos ovos do Hamipterus revelou que eles tinham uma casca externa formada por uma fina camada de calcário, seguida de uma membrana. Essa configuração lhe dava maleabilidade, com grande semelhança aos ovos de alguns lagartos e cobras.
Com base em três dos quatro achados de ovos anteriores, ficou estabelecido que a casca externa era mole, sem a presença de uma camada exterior rígida. O quarto ovo conhecido pertence a Pterodaustro e nele é possível identificar uma casca externa calcária, mas muito mais fina que a do Hamipterus.
Machos e fêmeas
Pudemos contabilizar a evidência de mais de 40 indivíduos. Infelizmente, não estavam todos completos, mas a conta é feita com base nos restos de suas arcadas superiores. Um fato chamou bastante a atenção: havia animais com tamanho similar, mas com formato e projeção da crista craniana um tanto diferentes. Esse padrão se repetiu em vários exemplares.Tal fato fez surgir a hipótese de que talvez se tratasse de machos e fêmeas, sendo que os primeiros teriam uma crista maior e mais robusta. Com a presença de ovos, fêmeas teriam que estar presentes. E seria estranho que, com tantos indivíduos, não houvesse nenhum macho.
Não é possível ter certeza de que os animais com cristas maiores eram realmente machos, já que, em tese, poderiam também ser fêmeas. Seja como for, o novo depósito fossilífero de Xinjiang é a melhor evidência que se tem de que ao menos algumas espécies de pterossauros apresentavam dimorfismo sexual. Notem que não é a presença ou ausência da crista, mas sim sua expressão. Isso contraria a percepção dos pesquisadores que defendiam que machos possuíam cristas cranianas, ao passo que fêmeas não.
O futuro
Parece desnecessário dizer que esse é o primeiro de muitos trabalhos que se seguirão sobre esse material. Claramente, com tantos indivíduos à disposição, teremos oportunidade de fazer novos estudos, como os paleohistológicos, em que será possível caracterizar as mudanças ocorridas nos ossos desde animais mais jovens até adultos.Também vamos procurar mais ovos e, quem sabe, encontrar alguns com embriões. Enfim, muita coisa nova poderá surgir do estudo de Hamipterus, o que coloca mais viagens à China no meu horizonte. Não só no meu, mas também no de outros pesquisadores brasileiros, como Taissa Rodrigues, da Universidade Federal do Espírito Santo, coautora do trabalho.
Alexander Kellner
Museu Nacional/UFRJ
Academia Brasileira de Ciências
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