Biologia das Substâncias: história e ciência
Portais de todo prazer
O fascínio da humanidade por substâncias psicoativas vem dos rituais xamânicos da Antiguidade e chega à indústria farmacêutica atual
Henrique Carneiro
1/11/2014
Na Antiguidade, quando o que chamamos de medicina não se separava do que denominamos de religião, eram xamãs os responsáveis pelo controle dos recursos vegetais de cura e consolo. Ao longo da época clássica da Grécia e de Roma – cerca de 500 anos antes de Cristo – a medicina tornou-se uma disciplina autônoma, e o uso das drogas um dos seus recursos mais importantes. Autores como Hipócrates e Galeno contribuíram para a teoria que ficou conhecida como medicina humoral, baseada na correspondência entre quatro elementos da natureza – água, terra, ar e fogo – e quatro humores do corpo – fleuma, bílis negra, sangue e bílis amarela. As drogas eram classificadas de acordo com seu potencial de influência sobre esses humores, corrigindo excessos ou compensando carências. Assim foi compilado um saber botânico voltado para a medicina, em livros chamados de “matéria médica” – como a farmacopeia de Dioscórides, que ficou popular na Europa ao ser publicada, no século XV, após a invenção da imprensa.O contato com outros continentes ao final da Idade Média fez chegar à Europa grande quantidade de plantas desconhecidas, que eram usadas como produtos de luxo, chamadas de especiarias e vistas como possuidoras de virtudes quentes, por virem de regiões banhadas por muito sol. Consideradas estimulantes e até afrodisíacas, serviriam para corrigir os “males de origem fria” existentes no continente europeu. Em 1498, o português Vasco da Gama rodeou o Cabo da Boa Esperança, no sul da África, em busca de especiarias orientais, como a pimenta da Índia, a canela do Ceilão e o cravo das Ilhas Molucas. Essas substâncias foram chamadas de “drogas”, uma derivação do termo holandês para produtos secos. Em 1813, o Dicionário da Língua Portuguesa Recopilada, do fluminense Antonio de Moraes Silva, definia droga como “todo o gênero de especiarias aromáticas; tintas, óleos, raízes oficiais de tinturaria, e botica. Mercadorias ligeiras de lã, ou seda”. Essa utilização ampla do termo “droga” deu origem a palavras como droguete, um tipo de tecido.A riqueza do Brasil se devia às suas “drogas e minas”, segundo o jesuíta André João Antonil, em 1711. Aguardente, tabaco e depois o café tiveram papel central na história econômica do Brasil e de vários outros países, assim como o açúcar. O comércio triangular entre Europa, África e América articulava o tráfico de escravos com a mercantilização das drogas coloniais. Mas também havia a quina, a ipecacuanha, a copaíba, o guaraná... nos interiores do Brasil e na Amazônia, as drogas do sertão e da selva eram produtos de grande valor mercantil. Na bacia do rio da Prata, a erva guarani (conhecida como mate naquela região e como congonha no sudeste) articulou as Missões, o Paraguai e o Paraná numa rede de produção e comércio do “ouro verde” do chimarrão. Café e tabaco tiveram sua importância consagrada ao serem escolhidos como adornos para o brasão imperial brasileiro. As duas drogas foram mantidas como símbolos nacionais no brasão da República e estão lá até hoje: o ramo florido do tabaco, o ramo frutificado do café.Enquanto isso, a milenar papoula tornava-se o mais importante medicamento do mundo, utilizada na forma de ópio como analgésico, tranquilizante e sonífero, contra tosse e disenteria, além dos usos recreativos e até afrodisíacos. Com a Revolução Industrial, a partir do século XVIII, o chá e o café, por suas propriedades excitantes, passaram a ser associados ao aumento do desempenho dos operários, e o tabaco foi incorporado à vida cotidiana como droga de sociabilidade essencialmente masculina até o século XX, quando as mulheres também passaram a fumar. O álcool destilado, usado antes apenas como remédio, após o século XVII tornou-se a principal droga de uso recreativo no mundo.A era da indústria farmacêutica teve início no século XIX, quando as plantas tiveram seus princípios ativos extraídos em laboratório. Fármacos puros como morfina, cocaína, cafeína e mescalina foram isolados e começaram a ser produzidos por empresas alemãs, norte-americanas e suíças, entre as mais importantes. A medicina tradicional e o uso de plantas se viram deslocados por um mercado florescente de pílulas e elixires industrializados, muitos deles com “fórmulas secretas”, como as bebidas tônicas – que levavam, por exemplo, folha de coca e noz de cola, duas drogas excitantes – ou os vinhos com cocaína, usado por elites políticas, religiosas e militares. Seguiu-se uma disputa pela legalização e o controle desse mercado, com mecanismos de monitoramento, inspeção de qualidade e tributação.Dois marcos na repressão às drogas foram o controle sobre o ópio na China, realizado a partir de 1729 pela dinastia Qing, de origem manchu, e a campanha pela abstinência e proibição do álcool nos Estados Unidos do século XIX e início do XX. Esses países adotaram leis que se tornariam exemplos para políticas internacionais. Já no século XX, foi criada a distinção entre as drogas de uso médico controlado, as proibidas e aquelas consideradas lícitas, de livre acesso a homens adultos. Esses três percursos de circulação de drogas se tornaram ramos florescentes da economia contemporânea. Tanto a indústria farmacêutica e o comércio de drogas lícitas quanto o tráfico de drogas ilícitas viraram grandes impérios. A diferença é que o mercado de substâncias proibidas se faz por meios clandestinos, aumentando sua renda potencial, privando o Estado de tributos e instaurando um regime de violência e corrupção entre grupos criminosos e aparatos policiais-militares.
Na China, a proibição do ópio na primeira metade do século XIX foi a motivação imediata para duas guerras (1839-42 e 1856-60), através das quais as potências ocidentais exportadoras, especialmente a Inglaterra, impuseram o seu comércio de venda de ópio e de compra de chá. O ópio foi mantido à força no comércio, mas continuou formalmente proibido. Nos Estados Unidos, a proibição do álcool começou em 1851, em estados como o Maine. Em 1920, a regra já valia para todo o país, incluída na 18ª emenda à Constituição. A medida criou um mercado paralelo dominado por violentas máfias, como a de Chicago. A grave crise econômica de 1929 pressionou o Estado a voltar atrás para recuperar os impostos desse enorme comércio. No lugar do álcool, a repressão voltou-se contra substâncias ligadas a populações imigrantes – como a maconha consumida pelos mexicanos, o ópio dos chineses e a cocaína, associada aos negros.No nível internacional, a primeira tentativa de controle das drogas ilícitas veio em 1912, pelo acordo de Haia. Depois da Segunda Guerra Mundial, foi colocada de pé a Convenção Única de 1961, cuja ratificação foi ampliada em 1971 e 1988. O tratado tornou-se o arcabouço jurídico-institucional mundial para a “guerra contra as drogas”, que pressupõe a erradicação de todos os cultivos de cannabis, coca e papoula dormideira. Mais de meio século depois, não é difícil concluir que a finalidade da Convenção continua distante de ser alcançada. O fracasso sucessivo das medidas proibitivas vem abrindo espaço para novas propostas de regulação legal das drogas por parte de diversos setores da política global. Por outro lado, cresce o mercado de antidepressivos, ansiolíticos, soníferos, estimulantes, moduladores e focalizadores psíquicos – que ampliam sua influência cultural em relação à infância, à maturidade e à velhice, consumidoras de drogas psicotrópicas específicas no imenso cardápio hoje disponível e em ampliação na pesquisa científica.A compulsão, ligada não só às drogas como aos alimentos, às bebidas e outros consumos, é um fenômeno que tem enorme incidência na sociedade contemporânea. A maior parte das drogas é consumida de forma integrada à vida social cotidiana. A ciência psicofarmacológica está em expansão e integra o acervo da civilização humana. Seu uso é uma lição central sobre o aprendizado de nossa autodeterminação e autorregulação.Henrique Carneiro é professor da Universidade de São Paulo e autor de Bebida, abstinência e temperança na história antiga e moderna (Senac-SP, 2010).Saiba mais:ARAÚJO, Tarso. Almanaque das Drogas. São Paulo: Leya Livros, 2012.CAMARGO, Maria Thereza Lemos de Arruda. As plantas medicinais e o sagrado. A etnofarmacobotânica em uma revisão historiográfica da medicina popular no Brasil. São Paulo: Ícone Editora, 2014.LABATE, Beatriz C. et al. (orgs). Drogas e Cultura: novas perspectivas. Salvador: Edufba, 2008. Disponível em: http://www.neip.info/index.php/content/view/91.html.
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