Evo-devo: sobre genes homeóticos e "kit de ferramentas"
A
morfologia orientou durante um bom tempo os trabalhos de reconstrução
das relações de parentesco entre as espécies a partir do reconhecimento
de suas semelhanças. Neste interim, acreditava-se que quanto maior fosse
a semelhança morfológica entre dois táxons terminais, maior seria a
semelhança genética entre eles, e vice e versa. Porém, como podemos ver
em ensaios anteriores, podem existir semelhanças genéticas entre
espécies muito distintas morfologicamente. Isso porque existem alguns
genes compartilhados por vários grupos – não proximamente aparentados
segundo as filogenias – que são responsáveis por ativar partes do DNA
que irão diferenciar partes do corpo desses animais, portanto uma
espécie pode conter um gene que está desativado e desta forma não é
expresso nela, mas em uma outra espécie ele está ativado. Isso as deixa
morfologicamente diferentes.
Se
olharmos as diferenciações que ocorrem desde o estágio de zigoto,
podemos observar que de uma única célula é originado um conjunto de
sistemas extremamente complexo, através de processos de especializações
das células de acordo com a função que ela desempenhará no indivíduo
adulto, sendo esta determinada através de ativações nos genes que farão
com que haja a produção seletiva de proteínas.
As
informações necessárias para entender como acontece esse mecanismo
detalhadamente foram obtidas em um primeiro momento através de estudos
em bactérias Escherichia coli (que possui apenas um par de cromossomos),
e deram um importante embasamento nas análises do desenvolvimento e da
evolução de tanto desse organismo quanto de drosófilas e até mesmo
vertebrados. Um exemplo são os dados provenientes de um experimento
realizado pelos cientistas François Jacob e Jacques Monod (ver Carroll,
2006, p. 61–62). A E. coli degrada principalmente glicose como fonte de
energia, porém, na ausência de glicose e presença de lactose (um outro
carboidrato), a bactéria libera a enzima beta-galactosidade, que quebra a
lactose em glicose e galactose, que podem ser absorvidas pela bactéria.
Os dois cientistas, juntamente com André Lwoff, ao pesquisarem qual
mecanismo faz com que a E. coli, na ausência de glicose, começa a
produzir altas quantidades de beta-galactosidade, descobriram que a
indução enzimatica acontece da seguinte forma: quando não há lactose no
meio, um interruptor, que seria uma proteína repressora, reconhece uma
sequência gênica que se localiza próxima do gene que traduz a
beta-galactosidade e liga-se a essa sequência inativando o gene. Porém,
quando há lactose no meio, essa proteína inibidora solta-se da sequência
de DNA deixando o gene de beta-galactosidade ativo, pronto para ser
transcrito (Figura 1).
Figura 1. Esquematização do mecanismo de produção de beta-galactose em E. coli.
O
uso controlado do gene através de uma proteína repressora e o fato dela
reconhecer no DNA uma sequência específica próxima ao gene de
trancrição são dois apectos da lógica genética que veremos se repetir
inúmeras vezes. Esse processo é chamado de regulação gênica.
Uma
vez entendido o funcionamento da regulação gênica, podemos passar para o
próximo passo que é o descobrimento dos genes mestres, que se repetem
nas diferentes espécies de animais (como citado por Carroll (2006), "da
E. coli aos elefantes"), e que codificam estruturas importantes como
olhos, apêndices e o próprio coração.
A
descoberta destes genes começou com estudos em drosófilas no
laboratório de Walter Gehring, na Universidade da Basiléia (Suíça), em
que foi isolado o gene eyeless que, quando mutado, é responsável pela
perda dos olhos em moscas. Gehring e sua equipe descobriram que o
eyeless corresponde ao gene Aniridia, presente nos seres humanos, e ao
small eye, nos camundosgos. A partir daí, concluiu-se que a maquinaria
genética que expressa os olhos não surgiu 40 vezes de forma independente
durante a evolução animal, como se pensava, mas apenas uma vez sendo
acionado várias vezes nas diferentes espécies. Esse complexo gênico
ficou conhecido como Pax 6. Depois dele, muitos outros genes homeóticos
foram descobertos, tal como o Distal less, responsável pela formação de
apêndices (ou de qualquer coisa que se projete para fora do corpo de um
animal), e o gene Tinman, responsável pelo aparecimento de bombas
circulatórias como o coração.
Os
genes mestres, assim chamados por Carroll (2006), sozinhos ainda não
são capazes de conseguir organizar e "construir" um animal, afinal
apesar deles serem responsáveis por grande parte das estruturas vitais
nos animais, não são responsáveis por sua organização. Ainda no
laboratório de Gehring, foi descoberto através de estudos na drosófila
que, para cada um dos genes mestres existe um homeobox (ou gene hox)
responsável pelo local de surgimento da estrutura expressa. Por exemplo,
o gene Tinman possui um homeobox que sinalizará o local de surgimento
do coração em um camundongo, por exemplo. Além disso, foi descoberto que
a disposição desses homeobox no DNA corresponde ao local de
aparecimento dessas estruturas no corpo do animal adulto (Figura 2).
Figura 2. Representação dos genes Hox em drosófila com seu posicionamento no DNA e seus respectivos locais de expressão.
Desta
forma, podemos dizer que cada animal possui um "Kit de ferramentas"
que, quando unidos, são capazes de construir um animal. Não importa seu
tamanho nem sua complexidade, todos animais são definidos a partir de um
pool gênico compartilhado, com pequenas alterações, cuja expressão
diferencia-se por sua ativação ou desativação em determinadas espécies, e
por pequenas mutações que podem ocorrer durante a história evolutiva.
Bibliografia:
Carroll,
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grande quantidade de criaturas que habitam nosso planeta. 1ª. ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 09 –81.
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