Um enxame ordenado
Sequenciamento do DNA de abelhas ajuda a decifrar o desenvolvimento desses insetos
RAFAEL GARCIA |
ED. 233 | JULHO 2015
Alguém que se perder pelo campus da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto e se deixar atrair pela beleza de um prédio ladeado por quatro espelhos d’água e um arbusto de amor-agarradinho na entrada pode levar um susto. Junto a esse belo jardim há um gramado com uma centena de caixas de madeira apoiadas em pequenos pedestais, como se fossem altares. O curioso que se aproximar um pouco mais vai perceber que entrou no meio de um apiário a céu aberto. É ali, literalmente no meio de uma revoada de abelhas nativas sem ferrão, que os biólogos Zilá Simões, Klaus Hartfelder e Márcia Bitondi tentam entender como a estrutura social e o comportamento desses insetos estão codificados no DNA. As colônias de Apis mellifera (a abelha com ferrão comumente usada na produção de mel) ficam numa área separada, onde não há risco de algum desavisado entrar sozinho.
Os três pesquisadores são o núcleo central do Laboratório de Biologia do Desenvolvimento de Abelhas (LBDA), uma rede de pesquisadores presente em diversas instituições paulistas (ver Pesquisa FAPESP nº 130). O grupo participou dos consórcios que mapearam o genoma da Apis mellifera e mais recentemente o da abelha mandaçaia, a Melipona quadrifasciata, e prepara agora o sequenciamento de uma outra espécie brasileira, a marmelada-amarela (Frieseomelitta varia). Isso sem contar as dezenas de estudos sobre funções específicas de genes de desenvolvimento de abelhas.
Na década que se seguiu à publicação do primeiro genoma de abelhas, em um artigo na revista Nature, em 2006, o grupo passou a se beneficiar do mesmo conjunto de ferramentas que surgiu com o trabalho no genoma humano e que mudou o cenário de pesquisa biomédica. Além de obter a sequência completa do DNA dos insetos, os pesquisadores dispõem agora de ferramentas e know-how para gerar e analisar transcriptomas. O termo é uma referência à análise de genes que estão sendo transcritos – ou seja, ativos na produção de proteínas – em diferentes tecidos das abelhas.
Ao analisar os resultados, os pesquisadores conseguem enxergar a rede de interação entre os genes transcritos, vendo quais influenciam a expressão de outros genes e quais estão ligados a aspectos de interesse. Em um estudo recente, por exemplo, o grupo conseguiu identificar o papel de genes envolvidos no desenvolvimento de abelhas operárias. Essa casta possui nas pernas traseiras uma estrutura específica para transportar pólen, a corbícula, que é ausente em abelhas-rainhas. Como cada larva pode se desenvolver em rainha ou operária, conforme o alimento que recebe, só os transcriptomas revelam como elas se diferenciam. Com técnicas de genômica e bioinformática, os cientistas de Ribeirão Preto conseguiram identificar genes do tipo Hox – que controlam a parte principal do desenvolvimento do corpo –, importantes na formação das corbículas, e descreveram a descoberta em um artigo na revista PLoS One, em 2012. Um desses genes, o Ubx, tinha um nível de expressão 25 vezes maior durante a fase de pupa nas abelhas operárias, em comparação com as rainhas, e se revelou uma chave essencial para a diferenciação de castas.
Os Hox pertencem a uma grande família de genes muito visada por pesquisadores da biologia do desenvolvimento por determinar quais estruturas do corpo derivam de cada segmento de um embrião. Em alguns casos, porém, é preciso olhar partes mais sutis do genoma para entender como as funções são distribuídas em uma colônia. Em um estudo subsequente publicado no mesmo periódico, em 2013, Hartfelder e colaboradores descrevem algumas sequências reguladoras, chamadas RNAs não codificadores longos, que influenciam o tamanho dos ovários das abelhas. Essas moléculas, junto com microRNAs, são peças-chave no processo de diferenciação de castas, por exemplo por provocarem a destruição de muitas células dos ovários de operárias. Isso faz com que o sistema reprodutivo das rainhas seja muito maior, característica fundamental para a produção constante de ovos.
Transcriptomas
Com o objetivo de fazer esse tipo de estudo, o LBDA já conseguiu produzir com seus colaboradores mais de 100 transcriptomas de diferentes tecidos do inseto, em diferentes momentos da vida. O desafio é entender em detalhes como o desenvolvimento de castas está programado no DNA e é desencadeado pela dieta – notavelmente, as abelhas-rainhas são alimentadas com mais geleia real do que as operárias em momentos-chave de seu desenvolvimento.
E não é de hoje que a compreensão do desenvolvimento das abelhas é considerada um desafio. A organização desses insetos contraria um princípio da biologia segundo o qual a evolução não é capaz de criar animais longevos que tenham também alta taxa de reprodução. Seria preciso abrir mão de uma característica em prol da outra. A abelha-rainha, porém, vive tipicamente mais que um ano (muito para um inseto) e tem alta taxa de reprodução, chegando a botar até meio milhão de ovos ao longo da vida. Isso é possível graças à divisão de funções com as abelhas operárias, que vivem algo em torno de um mês sem se reproduzir.
Esse tipo marcante de divisão de trabalho na colônia foi o alvo de um estudo internacional do qual o LBDA fez parte – principal motivo pelo qual o laboratório de Ribeirão Preto analisou o DNA da mandaçaia. Existe um espectro de socialização quando se analisam todas as espécies de abelhas, algumas com divisão de castas mais acentuada (eussociais), enquanto na maioria as fêmeas vivem solitárias. O grupo comparou os genomas de 10 tipos diferentes de abelhas e descobriu que quanto mais eussocial e hierarquizada é uma espécie, mais sequências reguladoras de genes existem no DNA, conforme mostra artigo publicado no mês passado na Science. No caso de Apis mellifera, quando a rainha morre, as operárias produzem outra rainha, alimentando uma larva com geleia real. Em espécies menos eussociais, operárias chegam a competir com a rainha pela reprodução, enquanto nas espécies não sociais todas as fêmeas se reproduzem. Na mandaçaia, uma abelha nativa altamente social, a divisão de funções é muito clara, mas as operárias participam da reprodução da colônia produzindo machos.
A rede de interação entre esses trechos de DNA – que não contêm propriamente receitas de proteínas, mas influenciam a atividade de outros trechos – é tão abundante que Zilá já aposta na criação de um novo termo para defini-la: reguloma. “Essa palavra ainda não é usada, mas o estudo disso na prática já começou a ser feito”, diz a cientista.
Bioinformática
Dominadas as ferramentas de genômica, a quantidade de informações geradas pelos pesquisadores do LBDA é tão grande que não é mais possível trabalhar da mesma forma que antes. O que laboratórios de ponta de biologia de abelhas estão fazendo hoje é essencialmente aquilo que o geneticista americano Eric Lander (um dos pais do Projeto Genoma Humano) chamou de “fazer ciência sem partir de hipóteses”, deixando muitos biólogos contrariados. Com a genômica, os cientistas podem olhar para o funcionamento molecular de um organismo sem precisar de concepção inicial sobre qual gene faz o quê, escolhendo os genes a serem estudados por meio de algoritmos que analisam as redes de interação entre eles.
Não está claro se a metodologia da genômica é fundamentalmente diferente de outras áreas da ciência, mas certamente a maneira de trabalhar dos geneticistas mudou muito. “Uma das peças fundamentais hoje é ter bons bioinformatas, não vivemos mais sem eles”, diz Márcia. “E um laboratório sozinho não consegue fazer isso. É preciso congregar a expertise de vários laboratórios.”
Na USP de Ribeirão Preto, a demanda por esse tipo de pesquisador foi suprida por projetos de pós-graduação com parte do treinamento dada no próprio Departamento de Genética, mas o conhecimento de ciência da computação teve de ser buscado fora. Assim foi a trajetória de Daniel Guariz Pinheiro, graduado no Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP, que fez um estágio de pós-doutorado no Departamento de Genética de Ribeirão. Hoje ele é professor na Unesp de Jaboticabal e o principal bioinformata na rede de colaboração do LBDA.
Além de trabalhar nos transcriptomas, uma das funções do bioinformata é organizar os genomas que são usados como base dos estudos, porque as máquinas de sequenciamento obtêm fragmentos de DNA que precisam ser enfileirados de maneira correta. “A bioinformática entra então para montar esse quebra-cabeça, ligando as partes para que se obtenha a sequência genômica completa”, diz Guariz, que atuou no trabalho publicado na Science. “Já estamos em mais de 99%, especialmente no caso da Apis mellifera.”
Um dos trabalhos de destaque com participação dos cientistas do LBDA foi uma colaboração internacional liderada pela Universidade de Uppsala, na Suécia, para o qual foram sequenciados genomas de 140 abelhas melíferas ao redor do mundo, pertencentes a diferentes populações. O mapa da diversidade genética da Apis mellifera, publicado em 2014 na revista Nature Genetics, sugere uma origem diferente para a espécie. Acreditava-se que ela teria surgido na África, mas o estudo aponta para uma dispersão a partir da Ásia, local onde também vivem hoje as outras abelhas do gênero Apis.
Intervenção
Nem só de trabalho no computador vivem os biólogos de Ribeirão Preto, porém. Uma de suas atividades essenciais é fazer experimentos para comprovar hipóteses levantadas pela genômica. Usando uma técnica chamada de interferência de RNA, os pesquisadores do LBDA conseguem desligar a expressão de genes específicos em abelhas para estudar sua funcionalidade.
Esse tipo de pesquisa básica também tem implicações práticas, com as reduções acentuadas das populações de diversas espécies de abelhas nas quais viroses e pesticidas são apontados como os principais culpados. Além do impacto ecológico desses fatores que ainda vêm sendo estudados, é preciso considerar os prejuízos para a agricultura de frutas, grãos e outras plantas que dependem de abelhas para polinização (ver texto ao lado). Duas espécies cujos genomas foram recentemente sequenciados e analisados com participação do LBDA são abelhas do gênero Bombus, o mesmo das mamangavas brasileiras, de alta importância para serviços ambientais de polinização. O resultado do trabalho foi publicado em junho na revista Genome Biology. Os pesquisadores descobriram que as Bombus, cuja socialidade é muito menos complexa, têm muitos genes que se acreditava exclusivos de Apis. O padrão de expressão de RNAs se mostrou marcadamente diferente entre esses dois gêneros, porém, reforçando a ideia de que é no reguloma que está a chave para entender o comportamento desses animais.
Para encontrar a melhor forma de lidar com as reduções de populações de abelha, dizem os pesquisadores, a pesquisa genômica poderá prover auxílio em suas três esferas: comparando espécies de abelhas, colônias de uma mesma espécie e indivíduos de uma mesma colônia (esta última por meio do estudo de transcriptomas). O grupo de Ribeirão Preto desenvolveu a expertise para trabalhar de todas essas formas.
Polinização por abelhas sustenta US$ 12 bilhões da agricultura brasileira
Há pelo menos duas décadas, os números de colmeias em diversas regiões do mundo têm sofrido reduções. O fenômeno, que ganhou o nome de Distúrbio do Colapso de Colônias (ou CCD, na sigla em inglês), é muito bem documentado na Europa e na América do Norte, onde há encolhimento de populações da ordem de até 50%, mas ainda pouco estudado no Brasil (ver Pesquisa FAPESP nº 137). O risco de a agricultura nacional sofrer grandes perdas com a falta de insetos para polinização, porém, é real, mostra um estudo recente liderado pela bióloga Tereza Cristina Giannini, da USP.
Ao lado de colegas da USP e da Universidade Federal do Ceará, ela analisou 141 plantas da agricultura brasileira e constatou que 85 delas dependem em algum grau da polinização por abelhas. O trabalho, publicado em maio na Journal of Economic Entomology estima que a receita dos cultivares que dependem de polinizadores cairia em 30%
(US$ 12 bilhões) se esses insetos sumissem do país. Metade desse valor se refere às plantações de soja. Café, tomate, algodão, cacau e laranja também poderiam ser grandemente afetados.
Mesmo entre os vegetais que não dependem totalmente de polinização cruzada, a transferência de pólen entre plantas diferentes afeta a qualidade dos frutos. “Aqui no Brasil, existe um trabalho muito consistente demostrando isso em morangos”, diz Tereza Cristina. “Os frutos ficam mais bem formados quando são polinizados por abelhas. Quando a polinização não ocorre, a polpa não cresce adequadamente e compromete a formação do morango.”
Agricultores brasileiros, porém, não têm ainda muita consciência da importância desses insetos além da produção de mel. É comum no meio agropecuário a noção de que a presença de abelhas é um serviço ambiental importante, mas mesmo assim poucos investem em manter colmeias para polinizar plantações. “O serviço de polinização oferecido pelas abelhas, porém, tem um valor muito superior ao dos conhecidos produtos da colmeia”, diz a bióloga.
No hemisfério Norte, várias causas têm sido apontadas para o CCD. As principais são o uso de inseticidas, a emergência de patógenos, a perda e a fragmentação de hábitat, as mudanças de clima, o manejo inadequado e a competição com espécies exóticas. No Brasil, porém, não se sabe ainda quais desses fatores representam maior ameaça.
Muitas das culturas estudadas pelo grupo de Tereza Cristina têm a Apis mellifera como polinizadora, mas também se destacam as abelhas sem ferrão, as abelhas solitárias do gênero Centris e as abelhas carpinteiras e mamangavas(Xylocopa e Bombus). Segundo Tereza Cristina, existe uma “necessidade urgente” de produção de pesquisas em biologia reprodutiva de plantas e insetos para entender a extensão do problema no país.
Projeto
Análise causal do desenvolvimento de Apis mellifera – genes reguladores e redes hierárquicas de expressão gênica na especificação de tecidos e órgãos (nº 2011/03171-5); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Zilá Luz Paulino Simões (FFCLRP-USP); Investimento R$ 1.029.830,00 (FAPESP).
Artigos científicos
WALLBERG, A. et al. A worldwide survey of genome sequence variation provides insight into the evolutionary history of the honeybee Apis mellifera. Nature Genetics. v. 46, n. 10, p. 1081-8. out. 2014
SADD, B. M. et al. The genomes of two key bumblebee species with primitive eusocial organization. Genome Biology. v. 16, n. 76. 24 abr. 2015.
GIANNINI, T. C. et al. The dependence of crops for pollinators and the economic value of pollination in Brazil. Journal of Economic Entomology. v. 108, n. 3, p. 1-9. 1º jun. 2015.
KAPHEIM, K. M. et al. Genomic signatures of evolutionary transitions from solitary to group living. Science. v. 348, n. 6239, p. 1139-43. 5 jun. 2015.
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