A origem dos caboclinhos
Estudos flagram o processo de surgimento de 11 espécies em grupo de aves da América do Sul
MARCOS PIVETTA |
ED. 236 | OUTUBRO 2015
O material genético e a aparência física de 11 espécies de caboclinhos, pequenas aves de áreas abertas da América do Sul que comem sementes e pertencem ao gênero Sporophila, o mesmo de seu primo curió, contam uma história evolutiva singular, ainda em construção, difícil de ser flagrada. Estudos recentes feitos a partir do sequenciamento de diferentes trechos de seus genomas indicam que oito dessas espécies – justamente as que devem ter se originado há menos tempo e vivem próximas entre si, partilhando, às vezes, um mesmo hábitat – conservam um DNA extremamente parecido, indistinguível para fins de identificação taxonômica. Segmentos do genoma de uma espécie se encontram misturados ao de outra espécie, formando um mosaico molecular.
Ainda assim, os machos de cada espécie apresentam diferenças nítidas em sua morfologia, em especial no padrão de cores e de emissão de sons. “A plumagem e o canto nas aves evoluem de forma mais rápida do que a maioria das diferenças genéticas”, diz Luís Fábio Silveira, curador da seção de Ornitologia do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZ-USP), autor de trabalhos recentes com os caboclinhos ao lado do biólogo evolutivo argentino Leonardo Campagna, que faz estágio de pós-doutorado no Laboratório de Ornitologia da Universidade Cornell, Estados Unidos. Apenas as três espécies mais antigas, o caboclinho-de-peito-castanho (S. castaneiventris), o caboclinho-lindo (S. minuta) e o caboclinho-comum (S. bouvreuil), acumularam diferenças significativas em seu DNA a ponto de os exames moleculares serem capazes de diferenciá-las entre si e das demais.
O caboclinho-de-peito-castanho e o caboclinho-lindo vivem em áreas distintas do norte da América do Sul e suas populações quase não têm contato com os exemplares das oito espécies mais jovens. O caboclinho-comum, como seu nome popular indica, é a forma mais abundante e ocorre no Pará, em todo o Nordeste e Sudeste, e em trechos do Centro-Oeste (ver mapa com a distribuição geográfica das espécies).
Sua área de ocorrência tem pontos de interseção com a das demais espécies. “A parte do genoma que produz a diferença morfológica entre as espécies deve ser pequena”, afirma Campagna. Em junho do ano passado, um estudo publicado na revista Nature mostrou que o DNA de duas espécies europeias de corvo, a gralha-preta (Corvus corone) e a gralha-cinzenta (Corvus cornix), era praticamente idêntico. A diferença equivalia a menos de 0,28% do genoma, apesar da distinção de cores característica de cada ave.
De acordo com os trabalhos da dupla Silveira e Campagna, o S. bouvreuil é o parente vivo mais próximo das oito espécies mais jovens de caboclinho, que habitam o sul do Brasil, Uruguai, Paraguai, norte da Argentina e leste da Bolívia. “Antes se acreditava que era o S. minuta”, comenta Campagna. Essas espécies de origem mais recente, que devem ter surgido entre 1,2 milhão e 500 mil anos atrás, são o caboclinho-de-barriga-vermelha (S. hypoxantha), caboclinho-de-barriga-preta (S. melanogaster), caboclinho-de-papo-escuro (S. ruficollis), caboclinho-de-papo-branco (S. palustris), caboclinho-do-sertão (S. nigrorufa), caboclinho-de-chapéu-cinzento (S. cinnamomea), caboclinho-de-sobre-ferrugem (S. hypochroma) e caboclinho-branco (S. pileata).
As cinco primeiras estão ameaçadas de extinção. O brasileiro e o argentino, que estudavam em separado os caboclinhos até 2013, quando resolveram trabalhar em conjunto, publicaram dois artigos sobre esse grupo de aves. O primeiro saiu em 2013 no periódico The Auk e o segundo em agosto deste ano na Molecular Ecology. Todos os tipos de caboclinho têm aproximadamente 10 centímetros de comprimento total e 7 gramas de peso, e são apreciados por seu bonito canto.
Fêmeas iguais
Diferentemente dos machos, as fêmeas e as aves jovens das 11 espécies de caboclinhos são muito semelhantes na aparência externa, com plumagem de cores menos chamativas. Isso faz com que seja difícil atribuir a que espécie pertence um exemplar do sexo feminino ou um filhote levando-se em conta apenas esse parâmetro. Em geral, as fêmeas têm o dorso mais escuro, amarronzado, e a parte ventral é mais clara, em tons de oliva. Como a existência de híbridos entre as 11 espécies é praticamente desconhecida na natureza, os pesquisadores acreditam que as aves tenham algum mecanismo, talvez o canto e a distribuição geográfica, que lhes permita reconhecer o parceiro sexual de sua espécie e, assim, reproduzir-se com os companheiros corretos. Também há evidências de que a plumagem das fêmeas possa exibir tonalidades na faixa do comprimento de onda do ultravioleta, invisível ao olho humano, mas não ao das aves. Esse seria um mecanismo extra de reconhecimento entre as espécies.
Em gaiolas em sua casa em São Paulo, Silveira está criando as 11 espécies com o intuito de entender os mecanismos que guiam a reprodução dos diferentes tipos de caboclinho. Quando um casal de aves cruza e produz filhotes saudáveis, o ornitólogo assume que a fêmea encontrou o macho de sua espécie. Ele então separa a dupla para posteriores estudos. Se os passarinhos recém-nascidos morrem depois de um tempo, provavelmente houve um cruzamento de duas espécies distintas, que perderam a capacidade de produzir híbridos sadios. “Não dá para descartar a existência de híbridos de caboclinhos, até porque é difícil identificar a espécie dos exemplares juvenis, mas nunca encontrei um deles na natureza”, pondera Silveira.
Outra particularidade que dificulta o reconhecimento das espécies é que os machos periodicamente perdem sua típica plumagem colorida, antes de migrar para o norte do país para fugir do frio invernal do sul, e ficam parecidos com as fêmeas.
A dupla de pesquisadores acredita estar diante de um caso complexo de especiação em curso, processo evolutivo em que, a partir da população de uma hipotética espécie ancestral, surgem outras espécies. “Essa é uma história que está em construção há poucos milhões de anos”, afirma Campagna. Por ora, os estudos genéticos e as análises sobre a morfologia e a distribuição geográfica das espécies permitem traçar um cenário aproximado da provável história evolutiva dos caboclinhos da América do Sul.
O gênero Sporophila, que literalmente significa comedor de sementes, compreende atualmente 38 espécies. Após a subida do istmo do Panamá, evento geológico que conectou as duas metades do continente uns poucos milhões de anos atrás (as previsões variam de 3 milhões a 12 milhões de anos), exemplares de Sporophila se dispersaram pelas Américas Central e do Norte. Silveira e Campagna trabalharam com um subconjunto de todo o gênero, os chamados caboclinhos do sul, as tais 11 espécies.
A maioria dessas espécies foi descrita nos séculos XVIII e XIX. Foram, portanto, alçadas a esse status há mais de um século, quando os taxonomistas usavam fundamentalmente a aparência externa, o canto, o hábitat e o comportamento das aves para diferenciá-las. “Seu esqueleto é idêntico. A partir da análise dos ossos também não é possível distinguir as espécies”, comenta Silveira. Em boa parte dos casos, o nome popular da ave destaca seu principal traço físico, a marca registrada que faz os taxonomistas reconhecê-la em meio a espécies semelhantes. O caboclinho-de-papo-escuro tem, por exemplo, uma mancha negra abaixo do bico e o caboclinho-branco é a espécie com mais quantidade de plumagem alva.
Segundo os estudos recentes da dupla, que analisou o DNA mitocondrial (herdado apenas da mãe) e 3 mil marcadores moleculares presentes no DNA desse grupo de aves, o representante mais antigo conhecido dessa linhagem é o caboclinho-de-peito-castanho, que ocorre no norte da América do Sul.
Os caboclinhos foram se diversificando e construindo uma jornada evolutiva que os levaria a ocupar também a porção meridional do subcontinente. Uma outra população ancestral teria, ao longo do processo evolutivo, se modificado e gerado o caboclinho-lindo, cujo hábitat por excelência é a Amazônia. Do estoque que originou essa espécie derivaria também o caboclinho-comum, que vive numa vasta porção do Nordeste e do Sudeste do Brasil e teria sido o responsável por gerar uma grande diversidade de formas à medida que foi ocupando novas áreas ao sul do subcontinente. “Ao menos oito espécies surgiram mais ou menos ao mesmo tempo. Elas compartilharam um ancestral comum com o S. bouvreuil e, antes disso, dividiram outro ancestral comum entre elas”, diz Campagna.
Os modernos estudos de genética de populações permitem, em alguns casos, calcular quando uma espécie teria surgido. Silveira e Campagna estimam que as espécies derivadas do caboclinho-comum tomaram forma entre 1,2 milhão e 500 mil anos atrás. Nesse momento, as estimativas sugerem que as populações de aves do gênero Sporophila teriam aumentado 10 vezes de tamanho.
O gigantismo desse bando ancestral é citado como uma das possíveis explicações para ainda não ser possível ver distinções evidentes no DNA das formas mais recentes de caboclinho. “Espécies derivadas de populações muito grandes demoram mais tempo para fixarem suas diferenças no genoma”, afirma o biólogo argentino. Esse fenômeno se deve aos efeitos da deriva genética, que a cada geração faz com que alguns indivíduos herdem certas características simplesmente por acaso (não em razão da seleção natural, de alguma mutação ou da migração de populações). Os efeitos da deriva são mais lentos em grupos oriundos de populações numerosas.
A história dos caboclinhos remete à de outro grupo de aves, os tentilhões das ilhas Galápagos, no Equador. Essas aves se tornaram um exemplo clássico do processo de especiação e de adaptação evolutiva e foram citadas no livro A origem das espécies, de Charles Darwin (1809-1882), que lançou as bases da teoria da seleção natural. O naturalista inglês percebeu que o formato do bico dos tentilhões variava nas diferentes ilhas do arquipélago do Pacífico. O avanço dos estudos evolutivos mostrou que esse traço físico varia em função do tipo de alimentação disponível no território em que os tentilhões habitam, da competição entre as espécies e do isolamento geográfico. Em boa parte das ilhas do arquipélago do Pacífico, há tentilhões com bicos de formato diferente, adaptados à oferta local de comida. Os tentilhões de terra, por exemplo, tendem a ter bicos mais largos, mais hábeis para quebrar sementes. Os tentilhões canoros apresentam bicos finos e pontudos, bons para espetar insetos.
O casal de biólogos evolucionistas britânico Peter e Rosemary Grant, professores eméritos da Universidade de Princeton, Estados Unidos, disse em seu mais recente livro, 40 years of evolution: Darwin’s finches on Daphne Major island (40 anos de evolução: tentilhões de Darwin na ilha Daphne Maior, em tradução livre), lançado em 2014, que os caboclinhos parecem ser uma espécie de versão em terra firme dos tentilhões de Darwin. “Em muitos aspectos, os caboclinhos podem ser o equivalente continental dos tentilhões de Darwin”, escreveram os Grant, que, durante quatro décadas, passaram seis meses por ano em Galápagos. O casal, aliás, foi coautor de um trabalho da Universidade de Uppsala, Suécia, publicado em fevereiro deste ano na Nature que divulgou o sequenciamento de todo o genoma das 14 espécies de tentilhão de Galápagos e uma da Ilha do Coco, também no Pacífico, mas pertencente à Costa Rica. Um dos resultados foi a identificação do gene ALX1 como um dos responsáveis pelo formato dos bicos das aves.
Espécie ou variação morfológica
Nem todos os taxonomistas concordam com a ideia de que os 11 tipos diferentes de caboclinho devem ser vistos como espécies distintas. Ainda que a morfologia, alguns hábitos e a distribuição geográfica apresentem particularidades, ao menos oito espécies são praticamente iguais do ponto de vista molecular. “Se não há alterações genéticas que expliquem as diferenças no fenótipo, não há por que considerar algumas formas de caboclinho como espécie”, afirma o biólogo Miguel Trefaut Rodrigues, taxonomista especializado em répteis do Instituto de Biociências (IB) da USP, amigo de Silveira. “Classificar seres vivos é sempre difícil. Mas a genética torna esse trabalho menos impreciso.” Para ele, as oito espécies mais novas de caboclinhos, cujo DNA é indistinguível entre si, deveriam ser consideradas como uma única espécie que apresenta diferentes morfologias, no caso um padrão de cores distinto na plumagem.
O biólogo evolutivo Fábio Raposo do Amaral, docente da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus de Diadema, prefere não entrar no mérito da questão se as formas mais recentes de caboclinhos devem ser consideradas como espécies diferentes ou como uma variação morfológica (de aparência externa) de uma única espécie. “No passado recente, fomos ingênuos e achamos que a genômica iria resolver automaticamente as questões taxonômicas mais complexas”, diz Amaral, que trabalha com aves. “Mas os caboclinhos estão numa situação intermediária, em que há um descompasso entre a variação morfológica e a genética. Mesmo com grandes conjuntos de dados em mãos, ainda temos muito o que aprender sobre como surgem as espécies.”
Silveira e Campagna esperam realizar novos estudos que talvez consigam encontrar assinaturas moleculares no genoma de cada espécie do gênero, talvez os genes responsáveis por algum traço específico, como fizeram os pesquisadores com o gene ligado à formação do bico nos tentilhões de Darwin. “Nossa ideia é sequenciar trechos do genoma que podem estar ligados à produção da cor nas penas de cada espécie”, diz o curador de seção de ornitologia do MZ-USP.
Artigos científicos
CAMPAGNA, L. et al. Identifying the sister species to the rapid capuchino seedeater radiation (Passeriformes: Sporophila). Auk. v. 130, n. 4, p.645-55. out. 2013.
CAMPAGNA, L. et al. Distinguishing noise from signal in patterns of genomic divergence in a highly polymorphic avian radiation. Molecular Ecology. v. 24, n. 16, p. 4238-51. ago. 2015.
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