Rochas rejuvenescidas
Camadas rochosas do Brasil Central podem ser até 200 milhões de anos mais jovens do que se pensava
CARLOS FIORAVANTI |
Edição 195 - Maio de 2012
Rochas expostas em Bom Jesus da Lapa, na Bahia, e o rio São Francisco ao fundo: idades variam de acordo com o método empregado
Um historiador pode facilmente desnortear um geólogo se perguntar
qual a idade da vasta camada de rochas sedimentares conhecida como
Grupo
Bambuí, que forma uma pequena área dos estados de Goiás e Tocantins e
boa parte de Minas Gerais e Bahia. “Vai ser uma hora de discussão”,
imagina Márcio Pimentel, geólogo da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS).
Os geólogos começaram a estudar essa região há 30 anos,
mas a idade atribuída a ela ainda é incerta: varia de 740 milhões a 550
milhões de anos, dependendo do método de análise adotado. Estudos em
andamento indicam que a idade das rochas pode até ser mais recente, mas
ainda não há muitos argumentos a favor dessa conclusão. O grande
problema para a definição de uma data mais precisa é que as rochas do
coração do Brasil são sedimentares, ou seja, formadas pela combinação e
fusão de fragmentos de outras rochas e detritos terrestres ou marinhos.
Outras regiões são formadas por rochas de origem vulcânica, cuja datação
é bem mais simples.
Tão interessante quanto a definição de uma provável data é que os
debates sobre o início da formação dessas rochas estão revelando algo
que raramente se vê: o árduo processo de construção das verdades
científicas, por meio da disputa – geralmente amigável – entre
diferentes grupos de pesquisa, que trabalham com técnicas distintas e
apresentam argumentos que tendem a ser somados, transformados ou
eliminados. Cada equipe defende suas posições e, mesmo tendo analisado
rochas de diferentes profundidades em lugares diferentes, supõe que as
conclusões poderiam valer para toda esta vasta região. Os distintos
conjuntos de rochas sedimentares do Grupo Bambuí ocupam cerca de 300 mil
quilômetros quadrados. Na direção leste a oeste, estendem-se de
Brasília até a serra do Espinhaço, em Minas, em profundidades de até
dois quilômetros. De norte a sul, seguem de Belo Horizonte até o norte
da Bahia.
Ali, quem se afasta das cidades encontra uma paisagem plana, marcada
pelas plantações de soja, pelas pastagens ou um pouco de cerrado e de
caatinga. Dessa terra rica em cavernas, cortada pelo rio São Francisco,
já saiu muito diamante e ouro; agora se começa a extrair petróleo e gás
natural, contrariando os preceitos geológicos, que determinam que
terrenos desse tipo não deveriam conter
hidrocarbonetos. Os geólogos
argumentam que conhecer melhor a idade – ou idades – dessa região é
importante, entre outras razões, para saber que outros bens minerais de
valor econômico poderiam sair de lá.
“Eu
quase ponho minha mão no fogo: o Grupo Bambuí tem menos de 600 milhões
de anos”, diz Pimentel. “Sempre imaginamos que fosse mais velho.”
Pimentel e Joseneusa Rodrigues, geóloga que fez o doutorado com ele e
trabalha agora na Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM), no
Rio de Janeiro, estão à frente da equipe da UFRGS que está
rejuvenescendo o Grupo Bambuí, ao determinarem a idade de 25 amostras de
cristais de zircão, mineral que resulta da modificação de granitos ou
de rochas vulcânicas e se integrou aos calcários do Grupo Bambuí. O
zircão pinçado de rochas coletadas em localidades como Montes Claros,
norte de Minas, e morro do Chapéu, região central da Bahia, deve ter
vindo das montanhas que começaram a se formar há cerca de 600 milhões de
anos e dominavam a paisagem da região do atual Brasil Central, mas
foram erodidas a ponto de hoje só restarem modestas serras. A equipe do
Rio Grande do Sul encontrou zircões com até 550 milhões de anos, que
representariam a idade máxima dos calcários a que aderiram. “Algumas
amostras são ainda mais jovens que 550 milhões”, diz Pimentel, “mas
ainda estamos confirmando as análises”.
Essa possibilidade aproxima o
Grupo Bambuí do período geológico
conhecido como
Cambriano, que começou há 544 milhões de anos e terminou
há 488 milhões de anos. Foi quando, possivelmente por causa do acúmulo
de oxigênio na atmosfera e nos oceanos, surgiu a maioria dos grupos de
animais – antes só havia vida microscópica. Porém, se as rochas do Grupo
Bambuí fossem realmente tão jovens como as amostras de zircão estão
indicando, já teriam sido encontrados fósseis de invertebrados, que
ajudam a definir a idade de rochas. “Eu mesmo me pergunto onde estão os
fósseis”, diz Pimentel. Para ele, ainda não foram vistos fósseis na
região porque os paleontólogos não escavam por lá assiduamente e os
geólogos teriam o olho apurado para rochas, não para fósseis.
“Marly Babinski questionou meus dados, disse que os zircões eram
jovens demais, mas colocou sua equipe para trabalhar lá e agora também
está encontrando coisas mais recentes”, diz Pimentel. “Estamos
convergindo, aos poucos, para essa interpretação.” Os estudos pioneiros
de Marly Babinski, do Instituto de Geociências (IG) da Universidade de
São Paulo (USP), indicavam que o Grupo Bambuí poderia, inversamente, ser
muito antigo. Ela percorreu o norte de Minas e a Bahia pela primeira
vez em 1989, em uma viagem de duas semanas com muita chuva e estradas
esburacadas. Por meio da análise da proporção dos raríssimos isótopos de
chumbo dispersos nos carbonatos, uma técnica nova na época, ela
determinou uma idade para as rochas da região: o Grupo Bambuí deveria
ter 740 milhões de anos, com uma margem de 22 milhões para mais ou para
menos.
“As conclusões a que chegamos não são excludentes”, acredita
Pimentel. Desse modo, nem os dados dele nem os de Marly valeriam para
toda a região, formada por subconjuntos de rochas com características
próprias. “Conseguimos tirar zircão de toda a região, menos das camadas
mais profundas, onde ela coletou.” Ricardo Trindade, professor do
Instituto de Astrofísica, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP
que trabalha com Marly há anos, inquieta-se: “Se esses dados novos
obtidos com cristais de zircão estiverem corretos, teremos de rever tudo
o que sabemos e fizemos”.
Considerar as duas idades traz consequências ainda longe do consenso:
ou a deposição de rochas das camadas mais profundas às mais
superficiais teria sido bastante lenta ou haveria um hiato na base do
Bambuí de cerca de 200 milhões de anos. Muitos geólogos não se sentem à
vontade com essas possibilidades, que Marly vê com tranquilidade: “É o
que achamos hoje”, diz ela. “Amanhã podemos mudar de ideia, diante de
outras evidências.” Das recentes viagens de coleta a Minas e Bahia, sua
equipe tem trazido fósseis raros, em forma de fios de cabelo encurvado,
cuja idade ainda é desconhecida. Ela própria, em coletas em 1995 nos
municípios de Moema e Bom Despacho, a oeste de Belo Horizonte, tinha
visto sinais estranhos em rochas como essas que agora lhe mostram, “mas
ninguém dava importância”, recorda. O problema, ela conta, é que ninguém
conseguiu identificar de que tipo de organismo esses fósseis podem ser e
em que época devem ter se formado.
A Terra coberta de neve
Há outro problema, mais difícil de resolver. Se os dados dela estiverem
realmente certos, uma das primeiras glaciações do planeta, há cerca de
730 milhões de anos, teria sido global. “Para confirmar”, diz Marly,
“precisamos de mais datações”. Por enquanto essa possibilidade contraria
a visão mais aceita sobre a história geológica da Terra. A maioria dos
geólogos prefere acreditar que uma camada de cerca de um quilômetro de
gelo deve ter coberto todo o planeta, deixando tudo como a atual
Antártida, apenas na segunda grande glaciação, ocorrida há cerca de 635
milhões de anos.
Alexandre Uhlein, gaúcho radicado em Belo Horizonte há quase três
décadas, está à frente de uma equipe de geólogos da Universidade Federal
de Minas Gerais que contesta essas duas visões. Por meio de medições de
isótopos de estrôncio de rochas coletadas no município de Correntina,
sudoeste da Bahia, e de comparações com rochas equivalentes da Namíbia,
formadas quando a África e o Brasil formavam um só bloco, a equipe de
Minas concluiu que tanto as camadas de carbonato quanto as rochas de
origem glacial, mais abaixo, devem ter cerca de 630 milhões de anos.
Portanto, a região teria começado a se formar como resultado do
acúmulo de gelo dessa época, que coincide com uma grande glaciação do
planeta, denominada Marinoana, e já bem caracterizada em outros
continentes. O gelo, carregando restos de rochas, teria se acumulado
sobre umas das estruturas básicas do continente sul-americano, o chamado
Cráton do São Francisco. Quando o clima esquentou, o gelo derreteu e a
água correu para regiões mais baixas. Parte do material trazido, porém,
permaneceu, e sobre ele foram se acumulando camadas de calcário que
lembram uma lasanha.
“Não é provável que tenham se passado mais do que 100 milhões de anos
entre a formação das camadas mais profundas e as mais superficiais do
Grupo Bambuí”, comenta Fabrício Caxito, que faz o doutorado sob a
orientação de Uhlein. De março a julho de 2011, Caxito trabalhou na
Universidade McGill, no Canadá, com Galen Halverson, um dos defensores
da hipótese Snowball Earth, segundo a qual o gelo de uma glaciação
global deve ter transformado o planeta em uma imensa bola de neve, e um
dos autores de um gráfico sobre a variação dos isótopos de estrôncio no
planeta. Segundo Caxito, Halverson diz que o Grupo Bambuí só pode ser da
glaciação Marinoana, a única reconhecidamente global.
“Métodos diferentes levam a resultados diferentes”, reconhece Uhlein.
“A análise de isótopos de estrôncio é uma metodologia mais eficiente
para a datação de rochas do que a de chumbo e, claro, conta outra
história, que é a que acreditamos no momento.” Do mesmo modo, Marly
acredita que a técnica dos isótopos de estrôncio “não permite a obtenção
de idades absolutas”, funcionaria apenas para mares abertos e “não vale
para o Grupo Bambuí”. Para ela, essa região pode ter sido o fundo de um
mar fechado, que começava onde hoje é Belo Horizonte, e expandiu-se
rumo ao norte.
“Atualmente temos mais incertezas do que soluções”, diz Trindade.
“Nas últimas décadas os geólogos mais gabaritados do Brasil chegaram a
estimativas de idades do Grupo Bambuí que não passaram nem perto do que
estamos encontrando.” Por sorte, os participantes desse debate são
amigos e parecem gostar da confusão: “Está divertido”, diz Pimentel. À
medida que analisem mais rochas tiradas do coração do Brasil, talvez os
geólogos cheguem a um consenso sobre as técnicas mais adequadas – ou
adotem outras, que podem levar a outros resultados – ou talvez concluam
que essa vasta região tenha histórias diferentes, com idades diferentes.
“Quem está errado em um ponto pode estar certo em outro”, pondera
Caxito, mineiramente, “e mesmo quem está certo pode não estar certo em
tudo”.
Assim são as entranhas da ciência. “Estamos sempre procurando uma
verdade que quase nunca encontramos”, diz Uhlein. Se quisessem, os
geólogos poderiam provocar os historiadores perguntando quando começou a
Segunda Guerra Mundial. A resposta mais provável será 1º. de setembro
de 1939, quando os alemães invadiram a Polônia. Essa, porém, é uma
“resposta europeia”, na visão do historiador inglês Niall Fergusson.
Para ele, a “resposta real” é 7 de julho de 1937, quando o Japão invadiu
a China, iniciando uma guerra que em poucos meses mobilizou 850 mil
soldados. Fergusson considera outras possibilidades: a guerra pode ter
começado talvez antes, em 1931, quando o Japão ocupou a Manchúria, um
território chinês, em um episódio sangrento que deixou 200 mil mortos,
ou em 1935, quando Mussolini invadiu a Abissínia, ou ainda em 1936,
quando os alemães e os italianos ajudaram Franco a conter os rebeldes na
guerra civil da Espanha, já testando as táticas que usariam depois
contra outros países. Talvez os geó-logos e os historiadores tenham mais
em comum do que imaginam.
Artigos científicos
1. CAXITO, F. A.
et al.
Marinoan glaciation in east central Brazil.
Precambrian Research. v. 200-203, p. 38-58. 2012.
2. BABINSKI, M., VIEIRA, L.C. e TRINDADE, R.I.F.
Direct dating of the Sete Lagoas cap carbonate (Bambuí Group, Brazil) and implications for the Neoproterozoic glacial events.
Terra Nova. v. 19, p. 401-06. 2007.