Como os nossos pais
Novo estudo diz que primeiros americanos se pareciam com africanos e amplia polêmica sobre chegada do homem ao continente
MARCOS PIVETTA |
Edição 182 - Abril de 2011
O pesquisador defende essa hipótese, polêmica, num artigo científico publicado na edição de março do American Journal of Physical Anthropology. No trabalho, Neves e outros dois antropólogos físicos – o brasileiro Mark Hubbe, que trabalha no Instituto de Investigação Arqueológica e Museu da Universidade Católica do Norte, no Chile, e a grega Katerina Harvati, da Universidade de Tübingen, na Alemanha – comparam 24 características anatômicas presentes nos crânios de seres humanos que viveram entre 10 mil e 40 mil anos atrás na América do Sul, Europa e leste da Ásia e de indivíduos da época atual oriundos dessas três regiões, além da África Subsaariana, Oceania e Polinésia. Ao todo, foram confrontados 48 esqueletos antigos (32 da América do Sul, 2 da Ásia e 14 da Europa) e 2 mil atuais. “Independentemente da origem geográfica, os membros das populações antigas se assemelham mais a seus contemporâneos do passado do que aos humanos de hoje”, comenta Hubbe. Em outras palavras, os traços físicos do homem que abandonou a África e, 40 mil anos mais tarde, desbravou as Américas eram praticamente os mesmos. De acordo com essa visão, a conquista do mundo foi um fenômeno tão rápido – o Homo sapiens teria usado rotas costeiras, menos difíceis de serem vencidas – que não deu tempo para o homem desenvolver de imediato adaptações físicas aos novos ambientes.
Os resultados do estudo amparam o modelo de povoamento de nosso continente defendido há mais de duas décadas por Neves, cujos trabalhos são financiados em grande parte pela FAPESP. Segundo essa hipótese, as Américas foram colonizadas por duas ondas migratórias promovidas por povos distintos que cruzaram em momentos diferentes o estreito de Bering. A primeira teria sido composta por humanos que, há uns 15 mil anos, ainda exibiam essa morfologia “pan-africana”, para usar um termo empregado pelo pesquisador da USP. Os membros desse bando inicial de caçadores-coletores deveriam ser parecidos com Luzia, o famoso crânio feminino de 11 mil anos resgatado na região mineira de Lagoa Santa. Tinham nariz e órbitas oculares largos, face projetada para a frente e cabeça estreita e alongada. Embora seja impossível determinar com certeza a cor de sua pele, eram provavelmente negros. Todos os seus descendentes desapareceram misteriosamente em algum ponto da Pré-história por motivos ignorados e não deixaram representantes entre as tribos hoje presentes no continente.
Os humanos com traços africanos foram, sempre de acordo com as ideias de Neves, majoritariamente substituídos por indivíduos que vieram em um segundo movimento migratório da Ásia para as Américas. O novo grupo teria entrado no Novo Mundo mais recentemente, entre 9 mil e 10 mil anos atrás, e incluiria apenas indivíduos com características físicas dos chamados povos mongoloides, como os atuais orientais e as tribos indígenas encontradas até hoje em nosso continente. Seres humanos com essa aparência mais asiática, surgida possivelmente como uma adaptação ao clima extremamente frio da Sibéria e eventualmente do Ártico, não podem ter participado da primeira leva migratória para as Américas simplesmente porque esse tipo físico ainda não havia surgido na Terra. Pelo menos é o que dizem Neves, Hubbe e Harvati.
Essa teoria sobre o povoamento das Américas está longe de ser consensual. Análises do DNA extraído de populações extintas e vivas de indígenas do continente, em especial das sequências contidas nos genomas da mitocôndria (de linhagem materna) e do cromosomo Y (herdado do pai), contam uma história distinta. Favorecem a hipótese de que houve apenas um movimento de entrada de indivíduos da Ásia em direção ao Novo Mundo e de que essa travessia ocorreu alguns milhares de anos antes do sugerido pelas evidências arqueológicas. “Praticamente toda a diversidade biológica dos atuais tipos humanos já estava presente na única leva migratória que entrou nas Américas”, diz o geneticista Sandro Bonatto, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. “Apenas os esquimós, população que representa o caso mais extremo e tardio da chamada morfologia mongoloide, ainda não tinham se originado e não participaram dessa leva.”
Ao lado de colegas brasileiros e da Argentina, Bonatto publicou em outubro de 2008 um artigo científico no American Journal of Physical Anthropology, a mesma revista em que saiu o trabalho de Neves. O estudo analisou 10 mil informações genéticas e a anatomia de 576 crânios de populações extintas e atuais encontradas de norte a sul nas Américas. Segundo o artigo, há aproximadamente 18 mil anos, um grupo fisicamente já bastante heterogêneo de caçadores-coletores saiu da Sibéria e se instalou no Alasca. Faziam parte desse bando primordial pessoas com feições do tipo asiático e também com traços mais africanos. O modelo também se diferencia das ideias de Neves e Hubbe porque sustenta ainda que, antes de entrar no Novo Mundo, esse grupo de colonizadores fez uma longa pausa forçada na Beríngia, antiga porção de terra firme que conectava a Ásia às Américas. Hoje submersa pelo mar, a Beríngia deu lugar ao estreito de Bering.
A parada na divisa dos dois continentes teria ocorrido entre 26 mil e 18 mil anos atrás, período em que a presença de grandes geleiras bloqueava a entrada das Américas. Quando a rota para o Novo Mundo se abriu, a migração se efetivou. Mas a escala obrigatória na Beríngia, segundo essa hipótese, produziu mutações específicas no DNA da população de migrantes aprisionada na fronteira dos dois blocos de terra. Essas alterações genéticas não estão presentes nos povos da Ásia, mas foram repassadas aos descendentes dos primeiros americanos. Um estudo recente, com a participação de brasileiros, sugere que uma dessas mutações favorece o acúmulo de colesterol em índios do continente (ver matéria Herança americana).
O PROJETO |
Origens e microevolução do homem na América: uma abordagem paleoantropológica III – nº 2004/01321-6 |
Modalidade |
Projeto temático |
Coordenador |
Walter Neves – Instituto de Biociências/USP |
Investimento |
R$ 1.555.665,94 (FAPESP) |
Há outras visões sobre o processo de povoamento das Américas, algumas ainda mais controversas. Para a arqueóloga Niède Guidon, fundadora e presidente da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), que administra o Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí, o homem já estava no nordeste brasileiro há 100 mil anos. Veio da África, navegando de ilha em ilha, aproveitando-se de momentos em que o mar estava bem mais baixo do que hoje. “A navegação é muito mais antiga do que se pensa”, diz Niède. “Não acredito que o Homo sapiens colonizou as Américas pelo estreito de Bering.”
Com cerca de 1.300 sítios pré-históricos, recheados de belas pinturas rupestres, o parque já forneceu 33 esqueletos humanos e mais de 700 mil peças líticas para o acervo da instituição. As datações divulgadas pela arqueóloga, que apontam para uma presença humana no nordeste há pelo menos 50 mil anos, são contestadas por muitos de seus pares. Niède não arrisca dizer como seria a aparência física dos responsáveis pelos desenhos pré-históricos da serra da Capivara, embora alguns estudos preliminares sugiram que eles possam ter sido semelhantes ao povo de Luzia.
>Artigo científico
HUBBE, M. et al. Paleoamerican Morphology in the Context of European and East Asian Late Pleistocene Variation: Implication for Human Dispersion
Into the New World. American Journal of Physical Anthropology. v. 50, n. 3,
p. 442-53. mar. 2011.
O mais antigo sítio dos EUA
Uma peça nova e importante do complicado quebra-cabeça que tenta reconstituir quando o Homo sapiens entrou nas Américas apareceu no final de março. Uma equipe de pesquisadores, liderada por Michael Waters, da Universidade Texas A&M, divulgou a descoberta do mais antigo vestígio da presença humana na América do Norte. Situado na localidade de Buttermilk Creek, no Texas, o sítio Debra L. Friedkin abriga cerca de 15,5 mil artefatos feitos pela mão do homem há estimados 15.500 anos. Trata-se basicamente de lâminas, muitas inacabadas, algumas com dupla face, feitas com um tipo de quartzo. “O sítio fica no centro do estado e deve ter levado algum tempo para o homem encontrar esse local”, diz Waters, em entrevista a Pesquisa FAPESP. “É possível que ele tenha chegado às Américas antes dessa época. Quanto antes, eu não saberia afirmar. Só o tempo e mais trabalho duro podem dizer.”
A datação dos artefatos foi obtida pela técnica da luminescência. O método mede a energia dos últimos raios de Sol (ou da derradeira exposição a um calor intenso) que foi aprisionada nos sedimentos da camada geológia de 20 centímetros em que as peças do sítio arqueólogico foram achadas. Nenhuma ossada foi resgatada do local, mas os cientistas dizem que os objetos foram inequivocamente talhados pelo Homo sapiens e poderiam ser usados como facas ou pontas de lança. Talvez fizessem até parte de um kit que os antigos humanos carregavam em suas andanças.
O estudo foi divulgado com alarde. Afinal, os antigos habitantes de Buttermilk Creek viveram 2.500 anos antes da chamada cultura Clovis, definida a partir de um sítio arqueológico do Novo México onde foram encontradas há cerca de 80 anos pontas de lança líticas com idade de 13 mil anos. Até os anos 1980, predominou sem muito questionamento a ideia de que essa cultura seria a mais antiga das Américas. Mas a descoberta nas últimas décadas de outros sítios com idade tão ou mais avançada do que Clovis, tanto na América do Norte como na América Central e do Sul, minou cada vez mais essa teoria. Os novos achados no Texas parecem sepultar de vez as aspirações de que o antigos habitantes do Novo México foram os primeiros a se instalar no continente. Como as lâminas do sítio Debra L. Friedkin foram encontradas perto de vestígios de pontas do estilo Clovis, e os dois tipos de peças têm similaridades, os pesquisadores acreditam que a segunda cultura pode derivar da primeira.
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