domingo, 15 de julho de 2012

A cor da pele escrita no DNA

Testes permitem descobrir características raciais sem a presença das pessoas 

SALVADOR NOGUEIRA | Edição 193 - Março de 2012
© NELSON PROVAZI
É um estudo que contesta o que se costuma ouvir nas aulas de genética no ensino médio: “Características como cor da pele dependem de relações complexas entre muitos genes, o que praticamente inviabiliza identificar a aparência (fenótipo) de um indivíduo a partir de sua constituição genética (genótipo)”. Embora a primeira premissa esteja correta, pesquisadores brasileiros mostram que é possível sim determinar a pigmentação da pele com base nos genes. Por ora, com modestos 60% de acerto. Esse resultado, obtido pelo grupo da geneticista Maria Cátira Bortolini, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), não teria sido possível se não estivéssemos no início da era da genômica personalizada, em que se tornou viável economicamente sequenciar o conjunto completo de genes de indivíduos e deixá-los disponíveis em banco de dados na internet. Com essa disponibilidade, a equipe brasileira não precisou sequenciar o DNA de ninguém e fez o trabalho com dados genômicos encontrados em bases públicas mundo afora.

A equipe da UFRGS usou no total informações de 30 genomas individuais. Alguns eram de pessoas conhecidas, como os geneticistas norte-
-americanos Craig Venter e James Watson, o que permitiu confrontar os dados genéticos com as características fenotípicas (aparência). Outros eram de indivíduos anônimos, cujos fenótipos os pesquisadores estimaram a partir das características físicas das etnias a que as pessoas pertenciam. No estudo também foram analisados os genomas de um paleoesquimó e de quatro hominídeos arcaicos: três neandertais; e um hominídeo de Denisova – na realidade, uma mulher que viveu na Sibéria 40 mil anos atrás e que pode pertencer a uma espécie desconhecida do gênero Homo.
Para garimpar os dados úteis à pesquisa nessa imensa sopa de letrinhas – cada genoma é formado por dois conjuntos de 23 cromossomos com um total de 3 bilhões de pares de bases nitrogenadas A, T, C e G –, os pesquisadores usaram uma metodologia desenvolvida pelo geneticista Caio Cesar Silva de Cerqueira, primeiro autor do estudo, aceito para publicação no American Journal of Human Biology. “Esse trabalho é um desdobramento de meu projeto de doutorado que diz respeito a genes de coloração em populações humanas”, conta Cerqueira, que é orientado por Cátira.
E não se deve subestimar o tamanho da tarefa. “Uma das maiores dificuldades foi encontrar um modo de analisar tamanha quantidade de dados ao mesmo tempo”, diz Cerqueira. “Segundo nosso conhecimento, não existe ainda aparato estatístico que faça isso de maneira simplificada.”
Por essa razão, a primeira missão da equipe foi reduzir a análise aos trechos de DNA que pudessem dar maior confiabilidade às estimativas. O grupo trabalhou basicamente com as diferenças genéticas conhecidas como polimorfismos de nucleotídeo único – single nucleotide polymorphisms ou SNP. Os SNPs representam diferenças genéticas em que apenas uma letra da sequência foi trocada. “Tivemos que filtrar os dados para trabalhar só com os mais palpáveis e concretos”, explica Cerqueira.

Seleção de dados

O ponto de partida foi identificar 346 SNPs distribuídos em 67 genes, pedaços de genes desativados (pseudogenes) e regiões intergênicas (nem todos os segmentos de DNA constituem genes, alguns só ocupam espaço na sequência, com função ainda não esclarecida). Todos esses SNPs estavam em regiões do genoma associadas à pigmentação de cabelos, olhos e pele. O passo seguinte foi ver quais desses SNPs já tinham seu efeito genético descrito na literatura. Dos 346, sobraram 124.
Ainda assim, havia um problema: o genoma se compõe de duas cópias de cada gene, uma do pai e outra da mãe. Quando as versões do gene são diferentes entre si, predizer o efeito que a combinação terá no organismo é bem complicado. Por isso, os pesquisadores se concentraram nos SNPs cujos alelos (versões diferentes encontradas simultaneamente no organismo) estivessem presentes nas duas cópias do mesmo trecho de cada genoma. “Perdemos uma boa quantidade de informações fazendo isso, mas optamos por essa abordagem mais conservadora”, conta Cerqueira.
Uma coisa é certa. A metodologia usada é excelente para determinar se o indivíduo tem ou não sardas, acúmulo de pigmento comum em loiros e ruivos. A taxa de acertos na previsão para os 11 genomas cujo fenótipo era bem conhecido (a identidade do proprietário era sabida) foi de impressionantes 91%.

© NELSON PROVAZI
Contudo, conforme as sutilezas aumentaram, o nível de acerto diminuiu. O método previu corretamente em 64% dos casos o tom de pele, dividido em duas categorias: claro e escuro. A taxa de predição foi de 44% para a cor do cabelo (preto, castanho, ruivo e loiro), 36% para a cor dos olhos (preto, castanho, verde e azul). Quando todas as características foram levadas em consideração, a média de acerto ficou em 59%. Os pesquisadores também calibraram o nível de acerto incluindo 19 genomas de indivíduos cuja etnia permitia estimar o provável fenótipo. Com uma base de 30 genomas, os índices de acerto mudaram um pouco. Diminuíram ligeiramente para sardas (83%), pele (60%) e cabelos (42%). Mas aumentaram para os olhos (67%), elevando a média final para 63%.

A primeira impressão que o estudo deixa é de que não dá mais para classificar como impossível prever traços físicos com base na análise do DNA. E a segunda é que ainda falta avançar bastante para que o nível de precisão melhore a ponto de o teste se tornar útil.
Trata-se de uma tecnologia que pode revolucionar, por exemplo, a ciência forense. Imagine se, a partir de uma amostra de DNA encontrada numa cena de crime, a polícia pudesse criar um retrato detalhado de um suspeito. Ainda estamos longe desse estágio tecnológico, mas, para Cátira, já terminou a fase do “e se pudéssemos?” e estamos chegando à etapa do “como faremos?”.

“O grande desafio é entender como funciona a interação entre os vários genes e seus alelos, bem como de seus produtos, as proteínas”, afirma Cátira. “Em outras palavras, o quanto o efeito de um alelo que se encontra em determinado ponto da rota é alterado pela presença de outra variante em outro gene da rede de pigmentação. Os estudos dessas conexões estão só começando a surgir e não fazemos ideia de como tudo está conectado, resultando em determinado fenótipo”, diz a pesquisadora da UFRGS.
Como complicação adicional, ainda é preciso levar em conta os efeitos epigenéticos – a influência de fatores ambientais sobre os padrões de expressão de certos genes sem alterar o DNA em si. “Os desafios permanecem grandes”, comenta Cátira. “Mas, como o conhecimento científico cresce exponencialmente, tenho esperança de que avanços importantes ocorram nos próximos anos.”

Retratos da evolução

Enquanto a tecnologia não chega ao ponto de ajudar no trabalho policial, os pesquisadores já começam a usá-la para tentar compreender melhor como se deu a evolução do gênero Homo. Afinal de contas, estudos como esse ajudam a verificar o quanto a diferença de pigmentação entre os grupos humanos é resultado de pressão exercida pela seleção natural ou consiste em variações surgidas ao acaso, neutras do ponto de vista evolutivo.

Em trabalho anterior, ligado a outra característica, o grupo de Cátira havia mostrado que um gene associado à configuração dos membros em seres humanos se mantém exatamente igual em mais de uma centena de amostras de DNA, vindas de pessoas de diversas partes do globo. Esse gene acumulou 16 alterações desde que os seres humanos e os chimpanzés se separaram na árvore evolutiva e permaneceu idêntico nos neandertais – Homo neanderthalensis, espécie aparentada do Homo sapiens, com quem conviveu até cerca de 30 mil anos atrás, antes de desaparecer. A conclusão é que esse gene é extremamente importante e por isso foi conservado igual por tanto tempo, dada a pressão evolutiva que existe sobre ele.

© NELSON PROVAZI
Agora os pesquisadores também podem fazer análises semelhantes com relação à pigmentação da pele, dos olhos e dos cabelos e ver que papel evolutivo os genes relacionados a essas características podem ter tido. Antes mesmo de qualquer análise do DNA, muitos pesquisadores já pensavam que deve ter havido grande pressão evolutiva para que os humanos vivendo sob o intenso sol africano tivessem mais melanina na pele – e mais proteção contra a radiação solar nociva –, enquanto quem vivia no norte da Europa dificilmente precisasse de grandes quantidades desse pigmento para escapar dos danos causados pela exposição ao sol. Estudos como o do grupo de Cátira ajudam a compreender o que moldou essa e outras adaptações.

Um dos resultados surpreendentes do novo estudo foi mostrar que entre os nean-
dertais possivelmente já havia diferenças na cor da pele e dos cabelos. A análise das variantes genéticas dos neandertais – foram sobrepostos trechos do genoma de três fêmeas para obter um genoma completo – sugere que uma era ruiva e duas tinham cabelo castanho e pele mais escura. Todas tinham olhos castanhos.
Esse resultado contrasta com o de um trabalho anterior, conduzido por Carles Lalueza-Fox, da Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona. Em um estudo publicado em 2007 na Science, o grupo espanhol mostrou que o material genético de dois neandertais – um encontrado na Espanha e outro na Itália – apresentavam alterações genéticas similares às que determinam pele clara e cabelos ruivos em seres humanos. “Temos conhecimento de poucos genomas ou de porções do genoma desses hominídeos e, mesmo assim, essa variação aparece”, diz Cátira.
Se estiver correta, a análise da equipe da UFRGS indica que entre os neandertais a pigmentação poderia variar de modo semelhante ao que ocorre com os seres humanos. “Isso seria bem razoável e indicaria que essa característica pode ser típica do gênero Homo e não da espécie humana”, comenta Cátira. Ela própria, porém, adverte que é preciso ter cautela na interpretação dos dados. “Não podemos descartar problemas metodológicos, como contaminação com DNA humano e troca de bases post-mortem, no sequenciamento de genomas de espécies extintas”, completa.

Essa observação toca num ponto importante: há limitações na análise do material genético de fósseis. Por exemplo, talvez jamais seja possível investigar o DNA dos primeiros seres humanos que colonizaram o que hoje é o Brasil e que teriam vindo da Ásia pelo estreito de Bering entre 20 mil e 12 mil anos atrás. “O problema é que o clima daqui não permite preservar DNA da mesma forma que no frio da Europa”, explica Fabricio Rodrigues dos Santos, biólogo da Universidade Federal de Minas Gerais. “Se por muita sorte encontrarem algum esqueleto preservado em algum lugar muito especial na América do Sul com mais de 8 mil anos e houver DNA, pode ser possível sim prever alguns fenótipos.”
E quanto a Luzia – o fóssil humano encontrado nos anos 1970 pela arqueóloga francesa Annette Laming-Emperaire em Lagoa Santa, Minas Gerais – que hoje detém o recorde de mais antigo da América, com estimados 11.400 a 16.400 anos de idade? “No caso de Luzia, diria que é impossível, pois tentaram várias vezes, enviaram aos Estados Unidos e à Europa, mas nunca conseguiram gerar nenhuma sequência de DNA”, diz Santos. Por mais que a genética tenha o poder de iluminar o passado humano, algumas lacunas inevitavelmente permanecerão. Pelo menos até a próxima grande revolução científica.

Artigo científico

CERQUEIRA, C.C.S. et al. Predicting Homo pigmentation phenotype through genomic data: From Neanderthal to James Watson. American Journal of Human Biology. No prelo.

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