Como explicar um coração tão dividido
Câmaras cardíacas podem ser o resultado da ação do ácido retinoico, usado em cosméticos
CARLOS FIORAVANTI |
Edição 224 - Outubro de 2014
© LÉO RAMOS
Um cardume de zebrafish: modelo de estudos para a formação dos átrios e ventrículos.
Pequenos peixes de listras horizontais mantidos em um aquário no
Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), em Campinas, estão
mostrando muito sobre a formação e a evolução do coração das pessoas. No
final de junho, depois de meses examinando os mecanismos de ativação de
genes nos músculos do coração do minúsculo
zebrafish, José
Xavier Neto e sua equipe concluíram uma série de experimentos que
reforçaram sua hipótese de que a estrutura do coração dos seres humanos,
com quatro câmaras internas divididas por válvulas que regulam o fluxo
do sangue, poderia ter aparecido há pelo menos 500 milhões de anos, bem
antes do surgimento da própria espécie humana, há 2 milhões de anos. O
coração do homem, portanto, teria nascido antes mesmo do homem.
As implicações dessa conclusão são um pouco desconcertantes. “Nosso
coração é praticamente o mesmo, em termos evolutivos, que o da
lampreia”, assegura Xavier. Em vista da importância e dos significados
do coração humano, não é muito confortável pensar nessa semelhança, já
que a lampreia é um peixe alongado e primitivo, facilmente considerado
muito feio, sem nadadeiras nem maxilar, e cuja boca é uma ventosa
circular com o diâmetro do corpo. Xavier parece não se importar com a
proximidade. “Do ponto de vista da cladística”, diz ele, referindo-se ao
sistema de classificação dos seres vivos que se baseia na relação
evolutiva entre as espécies, “nunca deixamos de ser peixes. Somos
peixes modificados, as nadadeiras se transformaram em braços e pernas”.
Peixes primitivos como a lampreia já apresentam um coração de quatro
cavidades, mas organizadas em sequência, e não em um bloco único, como
no coração humano. Em outra espécie evolutivamente muito antiga, que
pode ter surgido há cerca de 400 milhões de anos, a piramboia, um peixe
encontrado na Amazônia (há um exemplar também no laboratório de
Campinas), alongado como uma cobra e dotado de pulmões, o coração já é
mais refinado, com uma divisão interna que separa o sangue rico em
oxigênio do rico em gás carbônico. Para Xavier, o mais importante, a
despeito da forma, é que o trajeto do fluxo do sangue no coração já
forma uma espécie de S, mais pronunciado nos peixes e mais sutil nas
pessoas.
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As cores do coração: de peixe…
Por meio de experimentos em
zebrafish, também chamados de
paulistinhas e bem mais simpáticos que a lampreia, em camundongos,
codornas e galinhas, a equipe de Campinas tem examinado a formação das
câmaras internas do coração – átrios ou ventrículos, essenciais para o
armazenamento ou distribuição do sangue que circula pelo organismo.
Quase duas décadas de trabalho fizeram concluir que os tipos de câmara
do coração devem resultar da ação do ácido retinoico. É uma ação em
ondas, ora mais intensa, ora menos, em momentos específicos do
desenvolvimento embrionário. Segundo ele, quando entram em contato com o
ácido retinoico, células ainda pouco especializadas recebem instruções
para se organizar na forma de um reservatório de sangue, ou seja, um
átrio. Quando não detectam nada, formam uma forte bomba propulsora de
sangue – um ventrículo.
São estruturas bem diferentes: o átrio, de superfície lisa, funciona
como um reservatório que infla ao receber sangue. As proteínas
responsáveis por sua contração, as miosinas, são lentas. O ventrículo,
de superfície rugosa e paredes mais grossas, maior que o átrio, com
miosinas de ação rápida, pode contrair com força para fazer o sangue
chegar a todas as células do corpo. O coração humano – um órgão do
tamanho aproximado de um punho fechado, com 250 gramas (g) nas mulheres
adultas e 300 g nos homens adultos, que bate 100 mil vezes por dia,
bombeando cerca de cinco litros de sangue – tem dois átrios acima dos
dois ventrículos.
Os estudos da
equipe de Campinas e outros nessa linha estão ajudando a entender a
origem de problemas cardíacos associados ao ácido retinoico, um derivado
da vitamina A bastante usado em cosméticos. “Se uma mulher usa no
começo da gestação, a má-formação é quase certa. Por isso os médicos
pedem um teste de gravidez antes de receitarem ácido retinoico para
tratamento de pele”, diz Xavier, carioca formado em medicina pela
Universidade Federal do Ceará. “O ser humano é extremamente sensível ao
ácido retinoico, mas sem ele não estaríamos aqui. Tudo depende da dose e
do lugar onde vai atuar.” A possibilidade de prevenção e a correção de
problemas cardíacos por enquanto são remotas, porque o ácido retinoico
atua nas primeiras semanas de gestação, quando a mulher em geral ainda
não sabe que está grávida.
Com os experimentos mais recentes, assim que forem publicados, Xavier
pretende reforçar sua hipótese e contestar as visões antagônicas de
outras equipes interessadas em elucidar os mecanismos que definem o
tamanho, a forma e o modo de funcionamento de cada câmara cardíaca. Em
2008, um artigo da equipe de Deborah Yelon, atualmente na Universidade
da Califórnia em San Diego, Estados Unidos, amenizou o papel do ácido
retinoico, que estaria associado apenas ao tamanho do coração, e
valorizou a proteína produzida a partir do gene Hox-B5, que também atua
na formação do intestino e dos pulmões, com base em experimentos em
zebrafish. “Quando vi esse
paper”,
lembra-se Xavier, “quase chorei”. “Por causa da situação de meu
trabalho em 2008”, diz Xavier, “eu sabia que iria demorar para
contestar”.
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… e de camundongo
Em 2005, como pesquisador do Instituto do Coração (InCor) da
Universidade de São Paulo (USP), Xavier, com sua equipe, tinha
apresentado sua hipótese sobre a formação e a evolução dos
compartimentos de sangue no coração de animais vertebrados. Com base em
experimentos com uma variedade impressionante de organismos, a exemplo
da
Ciona intestinalis, um invertebrado marinho cilíndrico que
representa os parentes vivos mais próximos dos vertebrados (a formação
do coração desse grupo, os tunicados, é similar aos estágios iniciais da
formação do coração dos vertebrados), a equipe argumentava que o
coração de câmaras de vertebrados poderia ter surgido a partir de
modificações de um tubo cardíaco equivalente ao da
Ciona, que é
capaz de fazer movimentos semelhantes ao do intestino quando impulsiona a
massa alimentar durante o processo de digestão. “Animais como a lagosta
e outros crustáceos representam outro modelo para a formação das
câmaras cardíacas, pois têm apenas uma câmara e são muito mais rápidos,
por exemplo, que os onicóforos, vermes dotados apenas de um tubo
peristáltico simples”, afirma. “As câmaras cardíacas são um atributo de
vertebrados, apresentam contração simultânea e são separadas por
válvulas, tudo dentro de uma membrana, o pericárdio.” Uma argumentação
coerente, porém, não era o bastante. “Eu sabia que ainda teria de provar
minhas hipóteses”, diz. “Tive de esperar seis anos até refazer os
experimentos e mostrar o papel do ácido retinoico.”
Mesmo agora, com mais argumentos, Xavier sabe que terá de batalhar
muito para fazer sua visão prevalecer; se não conseguir, poderá ser
desconsiderada ou mesmo esquecida. “Hipóteses sobre evolução
dificilmente podem ser testadas”, observa. Além disso, o coração
facilmente engana quem procura entendê-lo. O médico romano Claudio
Galeno, um dos fundadores da medicina ocidental, afirmou que o coração
era feito de um tecido especial. Quase 1.500 anos depois, Leonardo da
Vinci, depois de dissecar cadáveres, como Galeno, e fazer vários
desenhos da anatomia do coração, sentenciou: “O coração é o principal
músculo em relação à força”. Já era um avanço, mas outros equívocos
persistiram. Durante séculos se pensava que as veias transportavam ar,
já que estavam vazias em animais e pessoas mortas. Um século depois de
Da Vinci, o médico inglês Willian Harvey descreveu a circulação do
sangue em detalhes, mostrando que as veias, como as artérias,
transportavam sangue e não ar.
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As quatro câmaras do coração, vistas por Da Vinci: o artista desfez o equívoco de Galeno, que imaginava apenas duas câmaras.
Xavier, como
outros cientistas contemporâneos, também tomou caminhos equivocados.
Logo depois de chegar à Universidade Harvard para o pós-doutorado, em
1997, ele se viu atraído, quase inevitavelmente, pela ideia então em
moda de que um único gene poderia ser capaz de definir a formação do
coração. Havia um gene candidato, mas os experimentos – os camundongos,
mesmo sem esse gene, nasciam com coração, embora morressem logo depois –
indicaram que o coração dependia de muitos genes para se formar. E ele
se rendeu: “É muito mais complicado do que pensávamos”.
Depois disso, Xavier conseguiu reunir animais transgênicos e
reagentes apropriados – que aos poucos caíam nas mãos da coordenadora do
laboratório, Nadia Rosenthal – para planejar os experimentos que
poderiam indicar coisas novas sobre a formação do coração. “Mesmo se
fracassar, pensei, já sou grato por observar o desenvolvimento do
embrião”, ele recorda. “E, como eu estava começando na biologia do
desenvolvimento, podia ver com meus próprios olhos os processos de
formação dos órgaos, sem estar contaminado pelo excesso de leitura de
artigos científicos.”
Xavier começou
então a examinar como a expressão da enzima betagalactosidade poderia
indicar a ação do ácido retinoico em diferentes regiões do coração de
embriões de camundongos de nove dias. “Quase descolei a retina tentando
ver o que não existia nos embriões de camundongos”, diz ele. Aos poucos
ele viu claramente o padrão de coloração definido pela ativação do ácido
retinoico: “Dependendo da expressão da enzima, as regiões do coração
ficavam verdes, indicando que o ácido retinoico estava atuando naquela
área, como ativador ou represssor de vários genes”.
Ele observou que até o sétimo dia da gestação, que demora 21 dias, o
coração ainda não havia se formado, nem havia nenhum sinal da ação do
ácido retinoico em tecidos cardíacos. Dois dias depois o coração já
havia se delineado como um tubo, ocorria uma descarga de ácido retinoico
e o átrio se formava. Logo depois, o ácido retinoico desaparecia e se
formava o ventrículo. Outros experimentos, em codorna, indicaram que,
sem ácido retinoico, o átrio não se formava e, de modo complementar, o
excesso dessa substância impedia a formação do ventrículo. “O ácido
retinoico é um ator que entra e sai do palco, na mesma peça, em papéis
diferentes”, diz Xavier.
“O ácido retinoico é de fato um ator-chave na formação das câmaras
cardíacas”, observa Didier Stainier, coordenador de uma equipe da
Universidade da Califórnia em São Francisco (UCSF), que estuda a
formação do coração em
zebrafish. Em 2002, Stainier e Deborah
Yelon, que trabalhou em seu laboratório, viram o papel do ácido
retinoico em um estágio anterior do desenvolvimento: com outras
moléculas, poderia induzir a formação de um tecido embrionário
primordial chamado endoderme (o coração vai se formar a partir de outro
tecido, a mesoderme). Segundo ele, Xavier “tem estado na vanguarda
dessas investigações que, sem dúvida, levarão a
insights adicionais sobre o processo de desenvolvimento do coração”.
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Embrião de galinha: sob a ação do ácido retinoico.
Mesmo depois do
coração formado, o ator versátil continua em cena. Em 2011,
pesquisadores da Universidade Duke, Estados Unidos, mostraram que o
ácido retinoico, por causa de sua capacidade de induzir a multiplicação
celular, facilitava a regeneração do endocárdio, a camada interna do
coração. Outra vez, o modelo experimental era o zebrafish;
essa espécie é usada há décadas porque as fêmeas produzem muitos ovos,
coletados com facilidade, e o embrião se forma a partir de uma única
célula, em apenas um dia após a fertilização.
Depois de dois anos em Harvard, Xavier voltou feliz para o InCor
disposto a montar um grupo de pesquisa em genética do desenvolvimento
embrionário e continuar trabalhando como nos dois anos em que passou em
Harvard. Sua primeira dificuldade foi conseguir camundongos, que não
chegavam na quantidade e no prazo esperados. Ele não se acomodou e saiu
perguntando onde poderia comprar ovo de galinha fertilizado e estufa, de
modo a não deixar o trabalho parar. Muitos anos antes, com a mesma
avidez por fazer ciência, ele tinha caçado sapos para fazer os
experimentos previstos em seu estágio já no primeiro ano do curso de
medicina em Fortaleza. “Desde a graduação eu já queria ser pesquisador”,
diz ele, ao comentar, em seguida, que gostava muito das disciplinas
básicas como bioquímica, para as quais os aspirantes a médicos
normalmente torcem o nariz. Desde antes ele já gostava do mundo da
ciência, acompanhando o pai, que era professor de bioquímica na
universidade, aos laboratórios e estufas de plantas. “Lembra do
kit Os cientistas, da década de 1970? Eu tinha todos. Vivo nesse mundo desde cedo.”
Xavier demorou cinco anos até montar sua própria equipe e o
laboratório de que precisava para retomar o ritmo de trabalho que
desejava. “Se ficar sozinho, está perdido”, ele conclui. “
Network
é tudo.” Por meio de testes em galinhas e em codornas, ele verificou
que a ação do ácido retinoico, por sua vez, era regulada pela enzima
RALDH2. “Detalhei o que e quando acontecia”, diz. Ele não parou mais de
aproveitar os estudos sobre outros animais – vermes marinhos,
escargots,
lagostas e outros – para examinar os processos evolutivos de formação
do coração e, a partir de 2010, quando se mudou para o LNBio, continuou a
produzir linhagens de animais transgênicos, a maioria sob encomenda,
para experimentos de outros pesquisadores e de seu próprio grupo.
Incapaz de se aquietar, em agosto ele percorreu outra vez a chapada do
Araripe, no Ceará, em busca de fósseis de peixes com idade média de 120
milhões de anos que, examinados por tomografia, poderiam revelar um
pouco mais da evolução do coração.
Projeto
Evolução e desenvolvimento das câmaras cardíacas (
nº 06/50843-0);
Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável José Xavier Neto (LNBio); Investimento R$ 311.558,83 (FAPESP).
Artigos científicos
SIMÕES-COSTA M. S.
et al.
The evolutionary origin of cardiac chambers.
Developmental Biology. v. 277, n. 1, p. 1-15. 2005.
MOSS, J. B.
et al.
Dynamic patterns of retinoic acid synthesis and response in the developing mammalian heart.
Developmental Biology. v. 199, p. 55-71. 1998.
WAXMAN, J. S.
et al.
Hoxb5b acts downstream of retinoic acid signaling in the forelimb field to restrict heart field potential in zebrafish.
Developmental Biology. v. 15, n. 6, p. 923-34.
YELON D. e STAINIER, D.Y.
Pattern formation: swimming in retinoic acid.
Current Biology. v. 12, n. 20, p. 707-9.