terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A saga dos mamíferos
Quando os dinossauros sucumbiram da Terra, os mamíferos ganharam uma grande oportunidade de evolução, que resultou na espécie humana
Robert Clark - Edição 36/Abril de 2003 02/12/2011

Cientistas agruparam os mamíferos com placentas de acordo com seu grau de parentesco. O resultado é um quarteto de superordens.

Maternidade em carne e pedra. Uma mulher grávida embala um resquício do passado, a fossilizada Eomaia scansoria, ou “mãe da aurora”. Com cerca de 125 milhões de anos, este recém-exumado mamífero estava na linha evolutiva para a reprodução placentária e é 50 milhões de anos mais antigo do que previam os cientistas. Fósseis continuam a proporcionar indícios sobre o modo como os mamíferos surgiram, mas, além dos estudos dos ossos, recentes tecnologias genéticas fornecem respostas novas a questões antigas sobre nosso caminho evolutivo.

Do alto de uma duna conhecida como Areias Movediças, na planície africana do Serengeti, é possível contemplar milhares de mamíferos em movimento. Gnus, zebras, gazelas. Esta é a temporada de reprodução dos gnus, e muitos espécimes desse antílope gigante estão acompanhados de seus filhotes. De longe, parece ser uma marcha tranqüila rumo ao sudeste, onde chuvas recentes tornaram mais verdes os campos. Um exame mais atento, porém, revela ocorrências dramáticas.
Por entre os grupos de gnus, de repente uma jovem gazela-de-grant dispara, seguida de perto por sua mãe. No encalço delas, uma hiena. A mãe reduz a velocidade e faz movimentos evasivos para distrair o predador. Em pânico, o filhote inexperiente faz uma volta infeliz – e em segundos cai, vítima das mandíbulas da hiena. A poucos metros, com as orelhas trêmulas, a mãe observa sem nada poder fazer. Em seguida, como se para aliviar a raiva, ela investe contra dois chacais que estavam por perto.
“Ela deve ter sido dominada pela emoção, mas não há como provar isso”, comenta a bióloga Patricia Moehlman. “Ela tem instinto maternal. Seu cérebro talvez não funcione como o nosso, mas acho que ela sente dor. E medo. E fica estressada. Nós nos sentimos próximos dela porque também somos mamíferos”, prossegue Patricia.
As mulheres da tribo masai consideram a duna como um local sagrado associado à fertilidade. Na verdade, sobretudo durante a grande migração anual dos gnus, nenhum outro ponto da Terra apresenta uma abundância tão espetacular de nossos parentes, de todos esses animais dotados de pêlos e que amamentam seus filhotes. Uma miríade de espécies de mamíferos pasta, galopa, ronda e chafurda por toda essa região da África.
Na vizinha cratera de Ngorongoro, em uma lagoa lamacenta, a fêmea de hipopótamo acaricia com o focinho seu rosado filhote, enquanto um leão e uma leoa se acasalam sem pressa à beira do caminho. No bosque de acácias, um bando de girafas – membros de uma família de mamíferos que, até 20 milhões de anos atrás, eram pequenos habitantes da floresta – mordisca os ramos mais altos das árvores. A poucos quilômetros, elefantes tomam o banho do meio-dia em um regato reforçado pelas chuvas. Macacos guenon-etíopes descem das árvores a fim de roubar comida pela porta aberta de uma van de turismo. E um dos raros rinocerontes-pretos remanescentes vagueia camuflado pela relva alta.
São tantos os mamíferos – com formas e comportamentos tão variados – a ocupar essa terra que é difícil crer que quaisquer deles poderiam ser descendentes do mesmo ancestral. Apesar disso, o hipopótamo anfíbio, com sua substanciosa dieta de até 45 quilos de gramíneas por noite, tem uma linhagem em comum com o rato-toupeira-pelado, que mede 8 centímetros – uma salsicha com dentes que vive tal como os cupins, sob a terra, alimentando-se de tubérculos.
Os mamíferos são todos aparentados entre si. Os mais antigos conhecidos são os morganucodontídeos, criaturas do tamanho dos pequenos musaranhos que, há 210 milhões de anos, viviam à sombra dos dinossauros. Eles constituíam uma das várias linhagens diferentes de mamíferos que surgiram naquela época. Todos os atuais mamíferos, entre os quais nós, os seres humanos, descendem da única linhagem sobrevivente. Nos 145 milhões de anos de evolução que se seguiram, o predomínio dos dinossauros impediu que os nossos remotos ancestrais mamíferos se tornassem maiores que um gato doméstico. Quando uma catástrofe provocada por um asteróide ou um cometa extinguiram os dinossauros, há 65 milhões de anos, os mamíferos, no entanto, viram-se diante da mais importante oportunidade evolutiva que lhes foi oferecida. Sem os dinossauros, eles agora poderiam explorar todos os recursos do planeta. E, no prazo de poucos milhões de anos após o cataclismo, o registro fóssil revela uma explosiva diversificação entre os mamíferos.

De que maneira aquelas pequenas criaturas se transformaram não apenas no hipopótamo e no rato-toupeira, mas também em todos os animais que agora constituem o vasto panorama dos mamíferos com pêlo, patas e presas, assim como aqueles que, desprovidos de pêlo, nadam nos oceanos – ou, ainda, os que, como eu, percorrem essas pastagens em um jipe Land Rover?
Somente os seres humanos podem levantar essa questão ou ter a esperança de um dia encontrar a resposta. De certo modo, nós somos os derradeiros mamíferos. Sem dúvida, partilhamos traços característicos com os primeiros mamíferos – características que estavam evoluindo ainda no período em que os morganucodontídeos se engalfinhavam atrás de alimentos em meio aos dinossauros: tanto nós, humanos, como os morganucodontídeos somos animais de sangue quente. Somos ambos dotados de mandíbulas especializadas cujas articulações se juntaram no início de nossa evolução de forma a criar os ossos do ouvido que nos permitem uma audição melhor que a dos outros animais. Possuímos dentes complexos que nos possibilitam triturar os alimentos de modo a extrair deles mais nutrientes. Todos temos pêlo. Somos mães excelentes, a quem a evolução proporcionou adaptações físicas – como as mamas e a placenta – que conferem aos filhotes de mamíferos uma significativa vantagem inicial.

Estamos entre os mamíferos de evolução mais recente, e usamos nosso grande cérebro de mamífero para raciocinar, solucionar problemas e lutar por objetivos que vão muito além das necessidades básicas. Temos curiosidade a respeito de nosso passado e nos perguntamos o que ele pode nos revelar do futuro.
Como percorremos o longuíssimo caminho entre aquela brutal luta por nichos ecológicos e a decifração do DNA?
Nunca houve uma resposta simples a essa questão. Menos de meio século atrás, a tentativa de entender a evolução dos mamíferos assemelhava-se à de explorar o universo com um telescópio rudimentar. Agora, as análises de rastros genéticos, a reconstrução de climas passados e a investigação de ossos às vezes minúsculos estão descortinando perspectivas que põem em xeque vários pressupostos arraigados.
No final da década de 60, surgiram indícios de que as massas terrestres do planeta haviam estado reunidas em um único supercontinente, denominado Pangéia. Há cerca de 225 milhões de anos, a Pangéia começou a se dividir em um continente setentrional, a Laurásia, e seu equivalente meridional, Gondwana. Cada um desses continentes ficou com uma parcela dos animais. Com base no registro fóssil disponível, os cientistas acreditavam que os ancestrais dos atuais mamíferos surgiram no norte e depois migraram para o sul, chegando até a Antártica e a Austrália, conforme surgiam e sumiam pontes de terra entre os continentes. Segundo André Wyss, paleontólogo da Universidade da Califórnia, essa hipótese ficou mais conhecida como o “modelo Sherwin-Williams da evolução” – uma referência ao logotipo de um fabricante de tintas que mostra um globo sobre o qual gotas de tinta escorrem na direção norte-sul.
Os paleontólogos, porém, vêm evoluindo no registro fóssil dos continentes meridionais. E estão encontrando indícios de mamíferos avançados mais antigos que os conhecidos no norte, invertendo o modelo Sherwin-Williams.

Em outra frente de pesquisa, a comparação dos genes dos mamíferos modernos revelou aos geneticistas que certos grupos antes considerados primos muito distantes – hipopótamo e baleia, por exemplo – são na realidade próximos. Também descobriram indicações de que os mamíferos começaram a se diferenciar nas atuais 18 ordens bem antes do que mostra o registro fóssil. Segundo este, a maioria dos grupos modernos surgiu por volta de 60 milhões de anos atrás, após o sumiço dos dinossauros. Mas as análises moleculares sugerem que, na realidade, os mamíferos começaram a se diversificar há cerca de 100 milhões de anos. “Foi uma revolução”, comenta o geneticista Mark Springer, da Universidade da Califórnia e especializado em evolução. “O resultado a que chegamos foi uma árvore genealógica totalmente diferente para os mamíferos.”
Muitos paleontólogos rejeitam as conclusões baseadas no DNA, argumentando que deve haver algo errado nos relógios moleculares usados pelos geneticistas. Estes, por sua vez, dizem que os paleontólogos simplesmente ainda não encontraram os fósseis corroboradores.

Tanto os cientistas que confiam nos fósseis como aqueles que se baseiam nos genes concordam em um ponto: os mamíferos começaram a se destacar por volta da época dos morganucodontídeos. E, pelas dimensões minúsculas de seus ossos maxilares – cerca de 3 centímetros de comprimento –, nota-se a distância que havia entre o mundo dos mamíferos e o dos répteis gigantes.
Na época, os ossos maxilares dos mamíferos estavam se fundindo em uma peça única. “Isso é muito diferente do que se vê nos répteis, cujos maxilares são formados por vários ossos”, diz o paleontólogo Rich Cifelli, do Museu Sam Noble de História Natural, em Oklahoma. “Os ossos dos mamíferos modernos migraram para trás e viraram os ossículos do ouvido médio. Por isso, eles possuem uma capacidade de audição muito melhor que a dos répteis.”
A separação do maxilar e dos ossos do ouvido permitiu que o crânio dos mamíferos tardios se expandisse para os lados e para trás, abrindo espaço para o desenvolvimento de cérebros maiores. Os dentes dos morganucodontídeos foram outra inovação significativa que os mamíferos posteriores iriam aperfeiçoar. Nos maxilares deles, os molares superiores e inferiores se encaixavam, possibilitando que partissem a comida em pedaços e, com isso, absorvessem mais calorias e nutrientes. “Os répteis não retalham seus alimentos”, diz Cifelli. “Eles capturam suas presas e as engolem. Mas os pequenos mamíferos eram tão ativos que precisavam de cada caloria presente no que comiam. Quanto mais processassem o alimento na boca, mais energia conseguiam obter.”
O osso do maxilar ainda indica que os morganucodontídeos possuíam outra característica fundamental – eles amamentavam os filhotes. Os pesquisadores inferiram que os morganucodontídeos alimentavam sua prole graças a glândulas produtoras de leite porque, como ocorre hoje com todos os mamíferos, esses animais primitivos possuíam apenas um conjunto de dentes permanentes. Isso contrasta com o padrão de crescimento dos répteis, que não ingerem leite e substituem continuamente seus dentes.
Os cientistas acreditam que as glândulas mamárias se originaram de glândulas sudoríparas localizadas na base do pêlo. Tanto as glândulas sudoríparas como as mamárias produzem água, sais e proteínas, todos elementos essenciais para a sobrevivência de um recém-nascido.

Graças ao ornitorrinco australiano, podemos ter uma idéia de como funcionavam essas rudimentares glândulas mamárias. O ornitorrinco e a equidna são os únicos exemplos remanescentes de um subgrupo de mamíferos chamado monotremados. “A fêmea do ornitorrinco não possui mamilos”, diz Peter Temple-Smith, do zoológico de Melbourne. “Há uma região onde os dutos lactíferos se concentram e expelem o leite sobre os pêlos, de onde os filhotes o lambem.”

Os mamilos, que concentram os dutos lactíferos, surgiram com o ramo de mamíferos que conhecemos pelo nome de marsupiais – um grupo que inclui o canguru, o coala e o gambá. “A vantagem dos mamilos é que proporcionam aos filhotes algo em que se agarrar”, diz Temple-Smith. “A fêmea do marsupial pode assim continuar atrás de comida, com o filhote na bolsa.”
De volta ao Serengeti, vemos de novo como os mamíferos dão importância aos cuidados maternais. Com a pele ainda úmida, pois acaba de nascer, um gnu está entre as pernas de sua mãe. De repente, o ar é tomado por grasnidos de abutres. Eles mergulham do alto e, com bico impetuoso, estraçalham a placenta que ficou a poucos metros de distância. A mãe gnu vira a cabeça. A aproximação dos abutres anunciara a todos os animais carniceiros num raio de quilômetros que ali havia carne fresca e, por isso, ela faz com que seu filhote fuja num galope tão rápido quanto o permitem suas perninhas bambas. “Ela age como uma boa mãe”, comenta a bióloga Patricia Moehlman. “Se não for assim, sua linhagem desaparece. Isso é o que significa ser um mamífero.”
A placenta de gnu ensangüentada ilustra o investimento físico que as fêmeas fazem por seus filhotes. Em termos de metabolismo, a placenta é um elemento de manutenção dispendioso para a mãe. Ela não só alimenta o feto no útero, como também o isola do sistema imunológico da mãe. De outro modo, as células imunológicas desta atacariam o feto como um corpo estranho – afinal, metade de seus genes é proveniente do pai.
Os répteis e as aves evitam tal ataque do sistema imunológico protegendo o feto com a casca do ovo e expelindo-o do corpo materno. Mamíferos monotremados, como o ornitorrinco, põem ovos. E os marsupais resolvem o problema dando prematuramente à luz seus embriões.

Recentes estudos de DNA sugerem que os mamíferos com placenta começaram a se distinguir dos marsupiais 175 milhões de anos atrás. Não há como corroborar isso por meio do registro fóssil. A principal diferença entre os placentários e os marsupiais está no aparelho reprodutivo – e este não deixa resquícios fossilizados. Todavia, a recente descoberta, na província chinesa de Liaoning, de um fóssil completo de uma espécie protoplacentária forneceu exemplo concreto que reforça as alegações dos pesquisadores de DNA, segundo as quais os placentários começaram a evoluir antes do que se imaginava. “É a mãe de todos os mamíferos com placenta”, diz o paleontólogo Zhe-Xi Luo, do Museu Carnegie de História Natural, em Pittsburgh, ao mostrar um fóssil de algo parecido com um camundongo achatado de focinho longo. “Nós o batizamos de Eomaia, que significa ‘mãe da aurora’ em grego.”

Luo avalia a idade do fóssil em 125 milhões de anos e nele identifica características anatômicas que mostram que o Eomaia, embora não fosse todo placentário, já estava bem avançado nessa direção. O fato de, há 125 milhões de anos, o desenvolvimento placentário ainda estar distante torna mais fácil para os paleontólogos aceitar os indícios genéticos de que os protoplacentários começaram a evoluir 50 milhões de anos antes.
A aparência de camundongo do Eomaia faz dele um animal modesto em comparação com os atuais mamíferos, mas a criatura estava na vanguarda da onda evolutiva que se iniciara com os morganucodontídeos. A progênie placentária do Eomaia descortinou perspectivas evolutivas inexistentes no caso da bolsa dos marsupiais. Estes, por exemplo, desde o início desenvolvem seus membros anteriores de modo a galgar o corpo da mãe e entrar na bolsa. Mas o período adicional que os placentários passam no útero permite o surgimento de estruturas especializadas, como as asas do morcego e as nadadeiras da foca. A placenta transporta nutrientes de maneira mais eficiente do que os dutos lactíferos. Por isso, os bebês placentários crescem com mais rapidez no útero e vêm ao mundo mais amadurecidos.
Por esses motivos, a maioria dos cientistas considera arcaica a solução da bolsa, ressaltando que, nos últimos 65 milhões de anos, foram os mamíferos com placenta que predominaram no planeta. Mas nem todo mundo é da mesma opinião. Marilyn Renfree, da Universidade de Melbourne, diz que, em termos biológicos, os “marsupiais são, em todos os aspectos, tão eficientes quanto os outros mamíferos – e às vezes até mesmo superiores”. Por exemplo, eles possuem taxas de metabolismo mais baixas e, por isso, conseguem sobreviver em âmbito mais amplo de condições.
Mike Archer, diretor do Museu Australiano, também acha que a bolsa tem suas vantagens. “Entre os marsupiais, é bastante concebível algo como uma ‘meia-gravidez’”, comenta ele. Nas fêmeas de canguru, após terem dois ovos fertilizados, irá desenvolver plenamente apenas um deles. Se, por acaso, houver escassez de alimentos ou de água e o primeiro filhote morrer, o embrião adicional irá implantar-se assim que houver melhoria nas condições externas. Em uma terra árida como a Austrália, essas gestações opcionais podem às vezes ser a melhor estratégia.

Os marsupais são hoje menos comuns do que os outros mamíferos. Gambás e outros são achados na América, mas a Oceania é o único continente onde os marsupiais – e os monotremados – continuam predominantes. Canguru, coala, ornitorrinco e vombate: por que ainda são achados na Austrália esses mamíferos obsoletos? De acordo com o modelo Sherwin-Williams, os marsupiais, que eram mamíferos avançados há 100 milhões de anos, migraram para Gondwana antes dos placentários. Eles subiram a bordo da massa continental Antártica-Australiana antes que ela se separasse do resto de Gondwana. Os placentários chegaram tarde demais – quando o barco para a Austrália já deixara o porto.
Essa hipótese foi bem-aceita até o final da década de 90, época em que começaram a surgir fósseis reveladores em várias regiões da antiga Gondwana – na Patagônia, em Madagáscar e na Austrália. Mais uma vez, os novos indícios vieram sob a forma de maxilares e dentes – sobretudo de um tipo específico de dente conhecido como molar tribosfênico, que funciona como uma espécie de pilão, mais avançado que os dentes cortantes dos mamíferos primitivos.
O ancestral dos marsupiais como dos placentários possuía dentes tribosfênicos. Assim, a descoberta no hemisfério sul desse tipo de dente com até 167 milhões de anos – 25 milhões de anos antes dos dentes achados no hemisfério norte – complica bastante o modelo norte-sul. Para alguns, a presença desses molares explica-se pelo fato de talvez terem surgido de modo independente em ambos os hemisférios. Outros cientistas consideram essa inovação complexa demais para ter ocorrido duas vezes e, portanto, acham que os mamíferos devem ter-se originado no sul, com gerações posteriores seguido para o norte.
A controvérsia em torno dos molares tribosfênicos tornou-se ainda mais acesa na Austrália, onde um casal de pesquisadores – Tom Rich e Pat Vickers-Rich – achou três mamíferos diferentes com dentes tribosfênicos que remontam a 110 milhões de anos. Segundo o casal Rich, esses mamíferos não estavam apenas a caminho de se tornar placentários, mas na verdade já possuíam placenta – algo como o ouriço-cacheiro.
Aqueles que se opõem a essa hipótese argumentam que os mamíferos placentários supostamente não poderiam ser vistos na Austrália há tanto tempo. O Eomaia, o antepassado primitivo dos placentários, viveu na Ásia. Se o casal Rich estiver certo, teremos de reconsiderar o modo pelo qual os placentários viajaram desde a Ásia até o hemisfério sul. Em vez de descer pela América, o Eomaia pode ter seguido por um atalho, pulando de ilha em ilha até chegar à Austrália. Ou talvez os mamíferos com placenta estivessem mais disseminados muito antes do que imaginamos e não existam registros disso. Podem ter-se originado em Gondwana e se difundido a partir dali. Para os Rich, é até mesmo possível que, na Austrália, os placentários tenham se extinguido com os dinossauros, dando lugar aos marsupiais.

Ainda mais radical para muitos paleontólogos foi a junção dos indícios do deslocamento das placas tectônicas com os da árvore genealógica dos placentários, proposta pelo geneticista Mark Springer e por seus colegas, especializados em processos evolutivos. Springer é membro de uma nova geração de pesquisadores que investiga o DNA dos animais em vez de buscar ossos fósseis minúsculos. Esses biólogos moleculares são capazes de ler a seqüência de genes no DNA de um animal vivo como se ela fosse um livro da história da evolução. Em seguida, os cientistas avaliam qual o grau de parentesco, em termos genéticos, entre esses animais e também em que momento no passado seus ancestrais começaram a se diferenciar.
A leitura feita por Springer da história genética dos mamíferos adapta-se de maneira surpreendente ao que os geólogos hoje sabem a respeito da separação e do deslocamento dos continentes. O mais antigo grupo de mamíferos placentários vivos, segundo Springer, surgiu na África pouco antes de o continente separar-se de Gondwana, por volta de 110 milhões de anos atrás. Springer chama este grupo de afrotérios, que inclui elefantes, aardvarks, peixes-boi e híraxes. Quando a África se afastou de Gondwana, carregou esses animais, que em seguida evoluíram isolados por dezenas de milhões de anos.

Uma espécie desse período é o membro mais primitivo que se conhece do grupo dos elefantes, os proboscídeos. O fóssil do Phosphatherium escullei, com 55 milhões de anos, foi encontrado no Marrocos. O animal tinha o tamanho de uma raposa e, embora não possuísse tromba, apresentava características dentária e craniana similares às dos atuais elefantes. Há muito os paleontólogos pensavam que os elefantes constituíam um dos grupos modernos mais recentes, tendo evoluído a partir de ungulados originários da Ásia. Mas o fóssil marroquino, assim como os indícios genéticos, sugerem que os proboscídeos são na realidade um dos mais antigos dentre os modernos mamíferos ungulados.
Uma das poucas regiões africanas ricas em fósseis – a depressão de Faiyum, no Egito – não apenas possui esses elefantes primitivos como também preserva um estranho conjunto de híraxes. Hoje assemelham-se ao porquinho-da-índia. Há 35 milhões de anos, porém, eles eram do tamanho de um rinoceronte. Ou possuíam pernas longas como as da gazela.

A maioria dos mamíferos na arca africana começou a desaparecer por volta de 20 milhões de anos atrás, após o continente ter refeito o contato com o resto do mundo. Mas a África não era a única arca. Um antigo braço de mar separou a América do Sul da Eurásia e da América do Norte durante milhões de anos, e a região tornou-se o lar dos mamíferos xenartros, outro grupo de placentários. O registro fóssil da América do Sul durante esse isolamento é farto, incluindo, entre os xenartros, a preguiça, o tatu e o tamanduá.

Em outros termos, os dados recolhidos por Mark Springer indicam que o antepassado comum mais recente dos mamíferos placentários originaram-se em Gondwana. Os continentes do norte possuíam os placentários mais recentes. Um grupo, o dos laurasitérios, incluía a foca, a vaca, o cavalo, a baleia e o ouriço-cacheiro. No outro, o dos euarchontoglires, estão os roedores, o musaranho, o macaco e o ser humano.
Essas descobertas genéticas também redefinem os relacionamentos entre os placentários. Os anatomistas sempre acharam que os morcegos pertenciam à mesma superordem dos musaranhos, lêmures-voadores e primatas. Mas os dados genéticos situam o morcego ao lado de porco, vaca, gato, cavalo e baleia.
Essas superordens de mamíferos vivos começaram a se diversificar bem antes do que indica o registro fóssil disponível. Os fósseis são registros da forma do animal. Mas os geneticistas sustentam que os genes nas mitocôndrias de um organismo, isto é, nas partes da célula usadas na identificação e datação das linhagens, podem estar passando por uma acelerada evolução sem que isso altere o que restaria em um registro fóssil. “A forma de um animal pode ser afetada por seu ambiente”, diz o geneticista Úlfur Árnason, da Universidade de Lund, na Suécia. “Em termos físicos, os crocodilos não mudaram muito ao longo de 250 milhões de anos, mas têm uma elevada taxa de mudança no DNA mitocondrial. Já as aves têm taxa de mudança reduzida, mas podem evoluir fisicamente com rapidez.”
Por mais surpreendentes que pareçam à primeira vista as alegações dos geneticistas, paleontólogos e pesquisadores do DNA estão se convencendo de que suas hipóteses talvez sejam complementares. Alguns assombrosos fósseis recém-achados acabaram por confirmar uma polêmica conclusão a respeito das baleias que só foi possível graças ao estudo do DNA. Para a maioria dos paleontólogos, a baleia e o golfinho – os cetáceos – descendiam de uma linhagem extinta de mamíferos carnívoros que, por motivos desconhecidos, tornaram-se aquáticos entre 50 milhões e 45 milhões de anos atrás.
Na época em que esses fósseis foram encontrados, os biólogos sustentavam que pesquisas recentes com o DNA mostravam que, na verdade, os cetáceos estavam mais próximos dos artiodátilos, uma ordem constituída de mamíferos ungulados com número par de dedos, como o porco, o camelo, o cervo e o hipopótamo.
No início, os paleontólogos rejeitaram esse vínculo improvável e não corroborado pelo registro fóssil. Mas aí, em setembro de 2001, surgiram resultados que confirmavam as alegações dos biólogos. Um grupo liderado por Hans Thewissen, das Universidades do Nordeste de Ohio, encontrou, em leitos de fósseis no Paquistão, duas espécies das mais antigas baleias conhecidas que remontavam a 50 milhões de anos. Ambas apresentavam ossos de ouvido característicos das baleias, mas os ossos dos membros e dos tornozelos eram típicos dos artiodátilos. “Ou seja, as primeiras baleias eram animais terrestres e, além disso, bons corredores”, diz Thewissen.
Quase na mesma época, um outro grupo da Universidade de Michigan, chefiado por Philip Gingerich, anunciou o achado de dois fósseis similares, também no Paquistão, que apresentavam as mesmas características. A transição evolutiva entre os grupos principais de mamíferos raramente foi exemplificada de modo mais claro. E nenhuma outra descoberta conseguiu associar com tanta precisão as pesquisas com fósseis, de um lado, e com o DNA, de outro.
Até 65 milhões de anos atrás, os dinossauros dominavam a terra firme. Os oceanos estavam tomados por enormes tubarões e assustadores e vorazes répteis marinhos. Em detrimento dos mamíferos, os dinossauros e outros grandes predadores ocupavam nichos ecológicos mais ricos e bem mais favoráveis em termos evolutivos.
Foi então que houve um acontecimento cuja escala ainda é de difícil avaliação. Um objeto com cerca de 10 quilômetros de diâmetro chocou-se nas proximidades da atual península de Yucatán, abrindo uma cratera com 180 quilômetros de diâmetro. Esse impacto pode ter sido apenas mais um entre vários ocorridos nas centenas de milhares de anos subseqüentes, cada qual ampliando a destruição inicial. Os danos provocados em Yucatán, porém, já são impressionantes: gigantescas ondas de até 150 metros de altura assolaram a América do Norte e, em algumas regiões do planeta, a temperatura chegou a 500oC. “Todos os grandes animais foram dizimados”, diz Kirk Johnson, do Museu da Natureza & Ciência, de Denver. “A chave para a sobrevivência era o tamanho reduzido.”
Os mamíferos se encaixavam nesse perfil. De repente, viram-se em um mundo desprovido de grandes carnívoros, sem restrições para a sua evolução. Assim, em um período de 270 mil anos, eles começaram a se diversificar e a aumentar.
Mesmo assim, grande parte dos mamíferos não era maior do que um porco moderno até a época do Eoceno, que teve início há cerca de 55 milhões de anos. Em seguida, um rápido aumento na temperatura global estimulou o crescimento de florestas em todo o planeta, e essa abundância de vegetação exuberante levou a uma proliferação ainda maior de nichos ecológicos que podiam ser explorados pelos mamíferos. Com isso, houve uma explosão de diversidade. E um dos recém-chegados no registro fóssil foram os membros da nossa própria ordem, a dos primatas.
Os primatas mais primitivos pertenciam ao ramo dos lêmures, hoje restritos à ilha de Madagáscar, que foi alcançada por uma espécie vinda da África, 50 milhões de anos atrás. Milhões de anos depois, primatas mais avançados começam a aparecer no registro fóssil do leste da Ásia. Esses primatas superiores são antropóides – macaco, chimpanzé e ser humano. Um estudioso da origem dos primatas, Chris Beard exumou na China aquele que talvez seja o mais antigo exemplar conhecido, o Eosimias. Essas criaturas surgiram em meados do Eoceno, enquanto o planeta se resfriava, e concentraram-se nas latitudes intermediárias do globo, onde as florestas permaneceram luxuriantes.
De acordo com Beard, eles devem ter sido “uns animaizinhos frenéticos, que passavam o tempo todo comendo. Talvez vivessem em bando e nunca abandonassem a árvore em que nasceram”. A despeito de sua anatomia rudimentar, o Eosimias já adotara o hábito simiesco de se mover pela copa das árvores, em vez de saltar de uma árvore para outra como os primatas primitivos.
Há cerca de 34 milhões de anos, começaram a surgir macacos mais inteligentes, maiores e mais agressivos. Os fósseis achados na depressão de Faiyum, onde Elwin Simons, da Universidade Duke, faz escavações desde 1961, revelam em que direção estavam evoluindo os antropóides. O Catopithecus, um dos antropóides exumados por sua equipe, possui crânio de dimensões similares às de um macaco pequeno, face achatada e um recesso ósseo na parte posterior da cavidade ocular. Ele é o primeiro antropóide a apresentar a mesma disposição dentária típica dos seres humanos – dois incisivos, um canino, dois pré-molares e três molares. Para Simons, “esse é o capítulo inicial da história humana”.
No começo do longo período do Mioceno – de 23,5 milhões a 5,3 milhões de anos atrás – ocorreu ainda uma mudança climática crucial. O planeta voltou a se aquecer e é possível que tenham surgido padrões climáticos sazonais. Nas altitudes elevadas, em muitas regiões as florestas pouco a pouco deram lugar aos campos e às savanas. Como a relva é abrasiva, alguns mamíferos desenvolveram uma nova dentição. O cavalo, por exemplo, que no início era pequeno comedor de folhas de árvore, desenvolveu molares mais adequados ao consumo de gramíneas.
No início do Mioceno, o prolongado isolamento da África chegou ao fim quando ela e a Arábia voltaram a ter contato com a Eurásia. Foi nessa época que chegaram ao território africano os ancestrais de mamíferos hoje considerados “nativos”. Os primeiros a chegar foram os ancestrais do antílope, do gato, da girafa e do rinoceronte. Por volta de 10 milhões de anos atrás, foi a vez do camelo, do cavalo e do cão, ou seja, dos mamíferos da América do Norte. Quase todos os animais que hoje povoam a planície de Serengeti são recém-chegados ao continente africano. Mas a África também deu sua contribuição. Seus macacos migraram para a Eurásia. Os elefantes e seus parentes difundiram-se por todo o globo, alcançando até mesmo a Patagônia.

No fim do Mioceno, o mundo dos mamíferos, todavia, sofreu grandes mudanças devido a fatores geográficos e climáticos. A Terra tornou-se mais fria e seca. Uma calota de gelo cobriu o Ártico. O deserto do Saara começou seu avanço gradual pelo norte da África, e savanas dominaram o continente. O novo clima restringiu o âmbito dos primatas à zona equatorial. Os chimpanzés tornaram-se maiores e mais especializados. Então, há uns 7 milhões de anos, pelo menos um ramo dos chimpanzés africanos começou a andar sobre apenas duas pernas.
Enquanto esse chimpanzé bípede percorria o caminho evolutivo que desembocaria nos seres humanos, outros mamíferos surgiram e desapareceram. A maioria teve de se adaptar a outra mudança climática global, ocorrida por volta de 2,5 milhões de anos atrás, desencadeada em parte pela formação do istmo do Panamá. A formação deste bloqueou a circulação oceânica no sentido leste-oeste e forçou a corrente do golfo a ficar cada vez mais forte. À medida que essa corrente levava mais água quente ao pólo Norte, aumentaram as precipitações. Intensas nevascas formaram geleiras com até 3 quilômetros de espessura, cujos limites avançaram e recuaram em uma série de mais de 20 eras glaciais. Como corpos maiores retêm o calor com mais eficácia, muitos mamíferos, como o lanoso mamute, aumentaram de tamanho. Mesmo nas zonas temperadas da Austrália, os animais tornaram-se imensos. E logo a região foi tomada por grandes cangurus carnívoros e por um leão marsupial com o dobro do tamanho de um leopardo.
“Ele era um predador enorme e ameaçador”, comenta o paleontólogo Steve Wroe, da Universidade de Sydney, enquanto admira um fóssil, medindo 30 centímetros, do crânio de um leão marsupial de 40 mil anos atrás. “Os grandes dentes conferem-lhe uma vantagem maior que a de qualquer outro mamífero carnívoro. Eles servem para destroçar carne. O animal morreria de fome se tivesse de se alimentar de frutas e vegetais.”
Esses grandes mamíferos desapareceram entre 100 mil e 20 mil anos atrás. No campo da paleontologia, poucas controvérsias são mais acesas do que a relativa aos motivos do sumiço dessa megafauna – não apenas na Austrália, mas também na América do Norte, onde mamutes, cavalos, camelos e outros enormes mamíferos da Era Glacial se extinguiram por volta de 11 mil anos atrás. Muitos atribuem isso a mudanças climáticas. Outros responsabilizam os seres humanos, que dizimaram os gigantes com suas lanças.
Os humanos podem ou não ter eliminado os mamíferos gigantes da Era Glacial. Mas hoje não resta dúvida de que ameaçamos incontáveis espécies à medida que destruímos seu hábitat. Na Flórida, peixes-boi são despedaçados pelas hélices dos barcos. Caçadores clandestinos abatem rinocerontes em Ngorongoro. No Sudeste Asiático e na Amazônia, florestas são desmatadas. E tudo isso feito pelo mais inteligente dos mamíferos. A evolução nos concedeu o dom da inteligência, mas será que não somos espertos demais para o nosso próprio bem? Se pudéssemos retroceder no tempo até a aurora dos antropóides, que outros caminhos poderíamos ter tomado?
Uma possível resposta encontra-se a 8 mil quilômetros de distância do espetáculo dos mamíferos no Serengeti, em meio às florestas pluviais da Indonésia, de Bornéu e das Filipinas. Ali vive o társio, citado por Chris Beard como exemplo de um caminho não trilhado pelos primatas. “Eles são estranhos”, diz Beard. “Conseguem girar a cabeça por até 270 graus. São o equivalente, entre os primatas, da coruja. Mas são os parentes vivos mais próximos dos primatas superiores.”
Os társios partilham um ancestral comum com todos os antropóides. Eles não possuem tapetum lucidum – a camada refletora encontrada nos olhos dos animais noturnos. Essencial para a visão em condições de baixa luminosidade, o tapetum lucidum é o que faz brilhar os olhos das criaturas noturnas quando são surpreendidas por um foco de luz. Ao contrário da maioria de seus parentes, em algum momento os társios reverteram a um modo de vida noturno e, para se adaptar, tiveram de desenvolver olhos enormes. Quando a luz incide nos olhos de um lêmure à noite, eles brilham. No caso do társio, isso não acontece.
Em Bornéu, onde esses primatas são considerados portadores de má sorte, pouca gente se preocupa com sua extinção. “Eles nos assustam com seus olhos enormes”, diz Lemon Ales, do vilarejo de Kampung Duras, em Sarawak. Outros consideram os társios como totem, pois às vezes eles são vistos em campos de arroz, agarrados ao caule da planta, como se estivessem de guarda.
Lemon Ales e eu nos embrenhamos pela selva ao anoitecer. A mata está repleta dos mesmos tipos de árvores frutíferas que permitiram aos primatas prosperar no Eoceno. Com a ajuda de lanternas, seguimos tropeçando por horas pela escuridão. Nenhum társio apareceu. Talvez estivessem por lá: a gente da região diz que, se as criaturas ficam imóveis, é impossível vê-las.
O zoológico de Cingapura tentou evitar que seus visitantes sofressem a mesma decepção. Seus társios podem ser vistos atrás de uma parede de vidro que protege um trecho simulado de floresta. “Só seis zoológicos no mundo possuem társios”, diz C.S. Menon, o responsável pelos animais do zoológico. “Eles ficam muito estressados e morrem em cativeiro.”
Impacientes, às vezes agressivos, os visitantes tagarelam em incontáveis línguas, do neerlandês ao japonês, enquanto aguardam o momento de subir nos trenzinhos do zoológico que os levarão para conhecer o bicho que poucos têm a sorte de ver à noite em uma floresta.
Muitos saltam do trenzinho, ficam um instante diante da jaula e logo seguem adiante. Mesmo ali, sob condições ótimas de visão noturna – a luz simulada de uma lua cheia –, não é fácil localizar os animais. Mas eu não vou desistir.
Por fim, como um relâmpago, um deles salta do nada para agarrar um grilo com as mãos e pousa em um ramo mais fino. Ali fica sentado, mastigando e girando sua pequena cabeça. Ninguém consegue fitar os enormes olhos de nosso primo distante sem sentir assombro pela distância que hoje nos separa. Nossa inteligência talvez seja uma séria ameaça contra os animais selvagens do mundo e contra nós mesmos – mas também é graças a ela que podemos nos maravilhar. E nos preocupar. Pois ninguém sabe aonde esse caminho irá nos conduzir.
Então, num piscar de olhos, o társio sumiu.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Cientistas chamam atenção para futuro dos oceanos

24/02/2012
Por Carlos Eduardo Lins da Silva, de Vancouver

Agência FAPESP – A conferência anual da Associação Americana para o Progresso da Ciência (AAAS) foi realizada de 16 a 20 de fevereiro em Vancouver, cidade à beira-mar no Canadá. Não por acaso, diversos relatos de pesquisas relevantes sobre a vida e o futuro dos oceanos foram apresentados durante o encontro e chamaram a atenção do público em geral e especialmente da comunidade local.

 
Na reunião anual da AAAS, cientistas apresentam resultados de estudos sobre os oceanos, com cenários que apontam da extinção de elevado número espécies ao tesouro de recursode s genéticos ainda a ser descoberto (Nasa)

 
Uma das exposições de grande repercussão foi a de James Hansen, do Instituto Goddard para Estudos Espaciais da Nasa, a agência espacial norte-americana. Segundo Hansen, o uso intensivo de combustíveis fósseis e o consequente aumento das temperaturas médias dos oceanos (já bastante superiores às do Holoceno) podem levar, entre outras consequências, a elevações de vários metros do nível dos oceanos e à extinção de entre 20% e 50% das espécies do planeta.

A elevação do nível dos mares coloca em risco a própria existência física de cidades em áreas costeiras de baixa altitude, como é o caso de Vancouver, entre muitas outras. O fenômeno é intensificado pelo derretimento de parte das calotas polares, também decorrente do aquecimento global, especialmente em regiões mais próximos dos polos, como também é o caso da cidade canadense.
O alerta de Hansen, uma das grandes estrelas da reunião da AAAS, teve, portanto, grande impacto na opinião pública da cidade anfitriã da conferência, inclusive porque suas autoridades públicas tomaram recentes decisões que seguem na contramão das advertências do cientista.
Por exemplo, há planos para dobrar a produção de carvão metalúrgico e fazer crescer significativamente a de gás natural liquefeito, não só para atender à demanda local por energia, mas também para exportação.
Menos célebre do que Hansen, mas também muito respeitado na comunidade científica internacional, Villy Christensen, professor da Universidade da Colúmbia Britânica, apresentou resultados iniciais, mas impressionantes, de seu projeto Nereus, cujo nome homenageia o deus grego que previa o futuro e morava no mar Egeu.
Segundo Christensen, as melhores estimativas atuais são de que há nos oceanos cerca de 2 bilhões de toneladas de peixe, ou seja, cerca de 300 quilos para cada habitante do planeta. No entanto, pelo menos metade disso está em zonas muito profundas dos mares, é constituída de espécies pequenas demais em tamanho e, por isso, é inviável para exploração comercial e consumo humano.
E na outra metade, de peixes que medem pelo menos 90 centímetros e são apropriados para alimentação de pessoas, houve um declínio da biomassa de 55% de 1970 até agora. “É uma mudança dramática e global”, disse.
Christensen defendeu que se invista mais em pesquisa sobre a vida marinha e especialmente sobre o impacto do aquecimento global sobre ela para que decisões políticas apropriadas possam ser tomadas, mas – apesar da necessidade de mais estudos – ele acha que o que já se sabe é suficiente para muita preocupação com o futuro.

Por exemplo, há a previsão de que o aumento da temperatura das águas vai fazer com que muitas espécies de animais marinhos procurem as águas mais frias das regiões mais próximas dos polos, o que poderia beneficiar os habitantes dessas áreas.

Mas William Cheung, que trabalha no mesmo projeto Nereus, argumenta que essa conclusão otimista pode ser apressada e errada: diferenças de quantidade de oxigênio em águas frias e quente e a crescente acidificação dos oceanos, outra consequência das mudanças climáticas, também comprometem negativamente a produtividade marítima.
Lisa Levin, do Instituto de Oceanografia Scripps, da Califórnia, em outra atividade da conferência da AAAS, corroborou indiretamente a fala de Cheung. Levin mostrou conclusões de sua pesquisa, segundo as quais o aquecimento dos oceanos produzidos pelas mudanças climáticas está causando a expansão de zonas submarinas de baixo oxigênio, o que afeta negativamente a produção pesqueira de diversas regiões, inclusive as da costa da Colúmbia Britânica.

Levin chama o fenômeno de “compressão de habitat” e disse que ele afeta áreas que se estendem por mais de 150 mil quilômetros em torno das beiradas dos oceanos. Segundo suas previsões, até o ano de 2050, peixes que habitam nessas regiões podem perder 50% na variação da profundidade em que vivem.
Os canadenses são bastante sensíveis para este tipo de problema por já terem visto como podem ser socialmente dramáticos os seus efeitos. Há cerca de 20 anos, a escassez da produção de bacalhau na região de Newfoudland, na costa leste do país, provocou o fim de 40 mil empregos. Diversas espécies de peixe – como o do bacalhau atlântico daquela cidade – estão sendo consideradas como ameaçadas de extinção e sua pesca está sendo restringida ou totalmente proibida.

Patentes genéticas
Os efeitos dos problemas dos oceanos são percebidos em vários países. O professor Rashid Sumaila, também da Universidade da Colúmbia Britânica, apresentou aos participantes da conferência da AAAS estudos que conduziu no México que apontam redução de até 20% em poucos anos na produção de pesca de diversas espécies de peixes e moluscos.
Os efeitos de mudanças nos oceanos na vida do planeta discutidos na reunião da AAAS em Vancouver não se limitaram aos atuais e aos do futuro.

Peter DeMonocal, biólogo marinho da Universidade Columbia de Nova York, mostrou sua pesquisa, de acordo com a qual grandes diferenças de temperatura nos oceanos Índico e Pacífico que ocorreram há 2 milhões de anos foram responsáveis por alterações de padrões de chuva na África oriental que desertificaram vastas áreas daquele pedaço do mundo.

Mesmo quando as notícias sobre a exploração, a atividade e as mudanças nos oceanos apresentadas no encontro da AAAS são inegavelmente positivas, elas não deixaram de trazer junto com elas algum tipo de preocupação.
Por exemplo, Carlos Duarte, diretor do Instituto de Oceanos da Universidade da Austrália Ocidental, relatou como um grande tesouro de recursos genéticos está sendo descoberto e permitirá aplicações em diversos setores da economia, como medicamentos para combater dores, câncer, regenerar tecidos e ossos ou para gerar biocombustíveis.
De acordo com Duarte, desde 2009 cerca de 5 mil patentes genéticas de organismos marinhos foram requeridas e é previsto um aumento de 12% ao ano desta quantidade. Duarte também afirmou que a vida marinha tem uma diversidade muito superior à da terrestre e que pode levar até mil anos para que todas as suas espécies sejam descobertas e catalogadas.

Tudo isso pode ser ótimo, mas também pode provocar ainda mais problemas se não houver uma regulamentação bem concebida e cumprida rigorosamente para evitar excessos na pesquisa e exploração desses recursos, que agravariam ainda mais os efeitos das mudanças climáticas.
Além disso, há a questão de quem vai usufruir materialmente dessas descobertas. Apenas dez países têm 90% dos pedidos de patentes genéticas de organismos marinhos e três deles (Estados Unidos, Alemanha e Japão) têm 70%.

Isso pode fazer com que o fosso entre países ricos e pobres aumente ainda mais, com as inevitáveis tensões sociais decorrentes, e causar atritos diplomáticos capazes de prejudicar eventuais compromissos em decisões sobre problemas críticos, como os das mudanças climáticas.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Um tesouro no deserto chileno

Pesquisadores do Museu Paleontológico de Caldera descobrem 70 fósseis de baleias em pleno Atacama. A descoberta está sendo registrada por meio de imagens em 3D.
Por: Mariana Rocha
 
Publicado em 23/02/2012 | Atualizado em 23/02/2012
Um tesouro no deserto chileno
Dentre os 20 esqueletos completos de baleias encontrados no deserto do Atacama, os pesquisadores identificaram uma recém-nascida. (foto: Rodrigo Terreros e Jorge Arévalo) 
 
Durante a duplicação da rodovia Pan-americana, rede de estradas que atravessa o continente, 70 fósseis de baleias com até oito metros de comprimento vieram à superfície. Entre eles, pelos menos 20 esqueletos completos do mamífero marinho foram encontrados no deserto do Atacama, no Chile, considerado o mais seco do mundo. A descoberta intrigou os pesquisadores do museu paleontológico de Caldera, comuna da região, que trabalham agora na identificação do material.

Mas há uma explicação. Segundo a bióloga brasileira Carolina Gutstein, que participa do estudo, Caldera foi, há 7 milhões de anos, um fundo marinho com alta biodiversidade.
Caldera, comuna localizada na região do Atacama, foi, há 7 milhões de anos, um fundo marinho com alta biodiversidade
O achado impulsionou os cientistas a tentar descobrir o que causou a morte desses animais e a extinção do oceano na região. “Dois fatores podem justificar a presença desses fósseis: os intensos movimentos tectônicos que marcam o Chile e as grandes transgressões e regressões marítimas do período Mioceno”, afirma Gutstein.
Os frequentes terremotos que atingem o país podem ter provocado a subida de rochas sedimentárias do fundo do oceano pré-histórico, originando um cemitério de baleias. Já o Mioceno, compreendido entre cinco e 23 milhões de anos atrás, é marcado por um intenso dinamismo, com fases de aumento e diminuição do nível do mar.
O cenário do período também é caracterizado por movimentos horizontais da crosta terrestre, como os que originaram a Cordilheira dos Andes. Com tantas mudanças no ambiente, é fácil imaginar como os mares poderiam se formar ou desaparecer no curso de alguns milhares de anos.
Carolina Gutstein em pesquisa de campo
A brasileira Carolina Gutstein participa da escavação dos fósseis de baleias e estuda a relação entre os esqueletos de golfinhos encontrados no Atacama e os que habitam a costa brasileira. (foto: Rodrigo Terreros e Jorge Arévalo)
Além de buscar a história desses fósseis, os cientistas procuram uma maneira de preservá-los. Obedecendo a lei chilena que protege monumentos nacionais, a obra da rodovia foi interrompida por mais de um ano após o achado, permitindo que a escavação fosse realizada de forma adequada.
Após a visita em novembro passado da ministra de bens nacionais Catalina Parot ao local das escavações, surgiu a ideia de se criar um museu específico para o achado, já que o prédio atual em que se encontram os fósseis – localizado na estação de trem de Caldera – corre grande risco em caso de tsunami. “Projetos dessa índole têm sido apresentados às autoridades há quase 10 anos, mas sem muito sucesso”, conta a pesquisadora, que espera que o estudo sirva como um estímulo para a construção do novo prédio.
Para registrar a memória desse tesouro paleontológico, um grupo do Instituto Smithsonian está produzindo imagens digitais dos fósseis. Com a ajuda de um scanner acoplado a um braço mecânico, eles criam fotografias em 3D altamente detalhadas, que podem ser impressas para a geração de réplicas em tamanho real.
“Além de réplicas exatas, podemos obter o posicionamento de cada um dos ossos no deserto. Essa informação, junto a outros dados, permitirá entender como se formou o acúmulo dos esqueletos de baleias, além de outros animais também encontrados, como focas e golfinhos.”
Em relação aos fósseis em si, os pesquisadores já descobriram que se trata de parentes das baleias Jubarte e Minke. O próximo passo é tentar descobrir a que espécies pertencem.

Para saber mais sobre a digitalização, veja abaixo um vídeo que mostra, além do scanner, uma pausa para o lanche durante o árduo trabalho da equipe

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Evidence of a neo-sex chromosome in birds

I Pala, S Naurin, M Stervander, D Hasselquist, S Bensch and B Hansson
Neo-sex chromosomes often originate from sex chromosome–autosome fusions and constitute an important basis for the study of gene degeneration and expression in a sex chromosomal context. Neo-sex chromosomes are known from many animal and plant lineages, but have not been reported in birds, a group in which genome organization seems particularly stable. Following indications of sex linkage and unexpected sex-biased gene expression in warblers (Sylvioidea; Passeriformes), we have conducted an extensive marker analysis targeting 31 orthologues of loci on zebra finch chromosome 4a in five species, representative of independent branches of Passerida. We identified a region of sex linkage covering approximately the first half (10Mb) of chromosome 4a, and associated to both Z and W chromosomes, in three Sylvioidea passerine species. Linkage analysis in an extended pedigree of one species additionally confirmed the association between this part of chromosome 4a and the Z chromosome. Markers located between 10 and 21Mb of chromosome 4a showed no signs of sex linkage, suggesting that only half of the chromosome was involved in this transition. 

No sex linkage was observed in non-Sylvioidea passerines, indicating that the neo-sex chromosome arose at the base of the Sylvioidea branch of the avian phylogeny, at 47.4–37.6 millions years ago (MYA), substantially later than the ancestral sex chromosomes (150 MYA). We hypothesize that the gene content of chromosome 4a might be relevant in its transition to a sex chromosome, based on the presence of genes (for example, the androgen receptor) that could offer a selective advantage when associated to Z-linked sex determination loci.

Microevolution of sympatry: landscape genetics of hedgehogs Erinaceus europaeus and E. roumanicus in Central Europe

B Bolfíková and P Hulva
We used the mitochondrial control region and nuclear microsatellites to assess the distribution patterns, population structure, demography and landscape genetics for the hedgehogs Erinaceus europaeus and Erinaceus roumanicus in a transect of the mid-European zone of sympatry. E. roumanicus was less frequent and restricted to regions with lower altitudes. Demographic analyses suggested recent population growth in this species. A comparison of patterns in the spatial variability of mitochondrial and nuclear DNA indicated less sex-biased dispersal and higher levels of gene flow in E. roumanicus. No evidence of recent hybridisation or introgression was detected. We interpreted these results by comparing with phylogeographic and palaeontological studies as well as with the occurrence of hybridisation in the Russian contact zone. We propose that Central Europe was colonised by E. roumanicus by the beginning of the Neolithic period and that there was a subsequent reinforcement stage as well as the formation of a zone of sympatry after the complete reproductive isolation of both species.

http://www.nature.com/hdy/journal/v108/n3/full/hdy201167a.html?WT.ec_id=HDY-201203

Occasional males in parthenogenetic populations of Asobara japonica (Hymenoptera: Braconidae): low Wolbachia titer or incomplete coadaptation?

B M Reumer, J J M van Alphen and K Kraaijeveld
Wolbachia are endosymbiotic bacteria known to manipulate the reproduction of their hosts. Some populations of the parasitoid wasp Asobara japonica are infected with Wolbachia and reproduce parthenogenetically, while other populations are not infected and reproduce sexually. Wolbachia-infected A. japonica females regularly produce small numbers of male offspring. Because all females in the field are infected and infected females are not capable of sexual reproduction, male production seems to be maladaptive. We investigated why these females nevertheless produce males. We tested three hypotheses: high rearing temperatures could result in higher offspring sex ratios (more males), low Wolbachia titer of the mother could lead to higher offspring sex ratios and/or the Wolbachia infection is of relatively recent origin and not enough time has passed to allow complete coadaptation between Wolbachia and host. In all, 33% of the Wolbachia-infected females produced males and 56% of these males were also infected with Wolbachia. Neither offspring sex ratio nor male infection frequency was significantly affected by rearing temperature or Wolbachia concentration of the mother. The mitochondrial DNA sequence of one of the uninfected populations was identical to that of two of the infected populations. Therefore, the initial Wolbachia infection of A. japonica must have occurred recently. Mitochondrial sequence variation among the infected populations suggests that the spread of Wolbachia through the host populations involved horizontal transmission. We conclude that the occasional male production by Wolbachia-infected females is most likely a maladaptive side effect of incomplete coevolution between symbiont and host in this relatively young infection.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Descoberta de lago na Antártida pode ajudar a encontrar vida extraterrestre

 

 
Lago pode ter a água mais pura do planeta. (Foto: AFP)Moscou, 15 fev (EFE) - A descoberta do lago Vostok, localizado na Antártida e que fica a quatro mil metros sob o gelo, é o primeiro passo para encontrar vida em outros planetas, como Marte, onde as condições são parecidas com as do continente gelado, disse à Agência Efe o chefe da expedição antártica russa.

"Na estação russa de Vostok, a temperatura chega a 89,2 graus negativos, e em Marte é de 90 graus abaixo de zero", afirmou Valery Lukin, subdiretor do Instituto de Pesquisas Árticas e Antárticas (IIAA).
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Cientistas russos atingem lago Vostok
Lago pode revelar novas vidas
Putin recebe água do lago Vostok


O cientista russo destacou que "os equipamentos usados para perfurar o gelo que cobria o lago e desenhados com esse único fim pelo Instituto de Engenharia de Minas de São Petersburgo foram um sucesso, por isso essa tecnologia poderia ser utilizada agora para explorar outros planetas".
"O lago da vida", como foi batizado pela comunidade científica, e que tem cerca de 300 quilômetros de comprimento, 50 quilômetros de largura e quase mil metros de profundidade em algumas regiões, pode ter a água mais pura do planeta, espécies desconhecidas ou muito antigas".

"Provavelmente é a água mais antiga e pura do planeta. Não temos provas concretas, mas sim informações de que a superfície é estéril, apesar de esperarmos encontrar formas de vida como termófilos e extremófilos (microorganismos que vivem em condições extremas) no fundo do lago", comentou.
Lukin revelou que a expedição russa, cujas perfurações demoraram mais de 20 anos para alcançar a superfície do lago, encontraram "rastros do DNA de termófilos" a 3,6 quilômetros de profundidade, por isso é provável que haja vida nessa massa de água líquida formada há 40 milhões de anos.
"Se não encontrarmos nada, isso também seria uma descoberta. Mas se acharmos algum organismo, poderemos estudar a evolução de espécies que não tiveram nenhum contato durante milhares de anos com a atmosfera terrestre", disse.
O cientista também está convencido de que o Vostok será um "polígono promissor" para estudar as zonas polares de Marte e o satélite de Júpiter, o Europa, que abriga uma camada de gelo e, possivelmente, água.
"E se houver água, significa que também pode haver vida", disse, citado pelas agências russas.
De acordo com Lukin, os resultados da investigação no lago serão fundamentais também para o estudo da mudança climática na Terra durante os próximos séculos, pois o Vostok foi e continua sendo uma espécie de termostato isolado do resto da atmosfera e da superfície da biosfera.
Vários expedicionários russos vão hibernar na estação, mas ninguém tocará o lago até dezembro, quando a expedição será retomada.

"Se tudo correr bem, traremos amostras de água congelada à Rússia em maio de 2012. Aí saberemos se o Vostok é o lar de novos microorganismos, bactérias ou nada", disse.
O chefe da expedição antártica reconhece que alguns cientistas ocidentais se mostraram "céticos" com a descoberta e com o risco de que os russos infectem o lago, saturado de oxigênio com níveis de concentração 50 vezes superiores aos da água doce.
"Há muita disputa. Muitos países queriam ser os primeiros. Usamos equipamentos especiais de perfuração para não danificar o ecossistema do Vostok e respeitamos todos os protocolos internacionais da Antártida", garantiu Lukin.
Para a demonstração, o IIAA informou em seu relatório que 40 litros de água do lago foram bombeados à superfície, porém congelaram no caminho.
Os russos desenharam uma máquina dragadora térmica que utiliza fluido de silicone não contaminante depois que a secretaria do Sistema do Tratado Antártico pôs impedimentos à expedição russa por temer a contaminação do lago com o querosene usado pela perfuradora.
"Nem tudo se faz com dinheiro. Sem conhecimento, entusiasmo e capacidade, é impossível. Tenho certeza de que nem a revista britânica 'Nature' nem a americana 'Science' publicarão nossas conquistas, mas isso não importa", declarou.

Lukin garante que a Rússia é, pela primeira vez, líder mundial em algum campo científico desde que Yuri Gagarin se tornou o primeiro astronauta da história, em abril de 1961.
"É preciso reconhecer que a casualidade jogou a nosso favor. Os soviéticos não sabiam quando abriram a estação em 1957, e que justo debaixo dela havia um lago", confessa.

De qualquer forma, não faltaram elogios aos cientistas russos, que chegaram ao lago às 18h25 (de Brasília) do dia 5 de fevereiro, em particular por parte do primeiro-ministro russo, Vladimir Putin - que foi presenteado com uma amostra de água do Vostok em um frasco de vidro hermeticamente fechado -, e do departamento de Estado americano.

O Vostok tem uma superfície de 15,6 quilômetros quadrados, parecida com a do Baikal, a maior reserva de água doce do mundo, e é o maior lago subterrâneo entre os mais de 100 que se encontram sob o continente.

 

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Indesejáveis, mas nem sempre
Debate sobre definição e controle de plantas e animas exóticos esquenta em São Paulo
© Eduardo Cesar
Lírio-do-brejo: mais rápida para se reproduzir do que as espécies nativas      

Um problema antigo – o das espécies de animais e plantas exóticas invasoras – começa a ser combatido. Após quase dois anos de debates entre especialistas de órgãos do governo, instituições de pesquisa, organizações não governamentais e empresas, o Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) do estado de São Paulo publicou em 9 de novembro a lista com as 14 espécies de animais com potencial invasor como o javali, a lebre-europeia e o caramujo-africano. No mesmo dia o conselho autorizou a formação de um grupo de trabalho com representantes do governo e da sociedade civil para definir as formas de controle da população desses bichos e propor uma lista de espécies de plantas exóticas invasoras (por definição, uma espécie exótica invasora encontra-se fora de sua área de distribuição natural, não tem predadores e prolifera com relativa facilidade a ponto de prejudicar a sobrevivência de espécies nativas). Provavelmente não será fácil eliminar os animais indesejados nem aprovar uma relação viável de plantas indesejadas.

Uma das barreiras para a eliminação dos animais da lista é que a Constituição paulista proíbe a caça. Esse fato coloca aos advogados e promotores públicos o desafio de cumprir a lei sem ferir outras leis. Dois javaporcos – resultantes do cruzamento de javalis com porcos domésticos – apreendidos por ordem judicial estão sendo criados em um centro de recuperação de animais silvestres da Universidade do Vale do Paraíba (Univap), em São José dos Campos. O plano de José Evaristo Merigo, administrador do criadouro, era abater os animais em um matadouro municipal autorizado e distribuir a carne para comunidades carentes, conforme orientação do Ibama, mas a promotoria não autorizou, já que os animais estão sub judice. “Não posso deixar os bichos fugirem”, aflige-se Merigo.

Em um estudo de 2007 na revista Natureza & Conservação, André Deberdt e Scherezino Scherer, ambos do Ibama, registraram animais soltos em nove estados (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás e Bahia), destruindo plantações e fontes de água e cruzando com o porco doméstico. Os pesquisadores observaram que os animais se alimentavam de pinhões (Araucaria angustifolia), até mesmo de sementes enterradas, no Rio Grande do Sul, prejudicando a regeneração de araucárias. A caça, autorizada em alguns estados, não foi o bastante para acabar com os porcões.

O grupo de trabalho deverá também buscar e propor formas adequadas de controle de espécies invasoras às vezes poucos visíveis, como os invertebrados, que continuam a ganhar espaço. É o caso de duas espécies de coral agora vistas como invasoras, que há 30 anos se limitavam a trechos do litoral do Rio de Janeiro. De acordo com um estudo de janeiro de 2011 na Coral Reefs, elas formaram colônias ao longo de 130 quilômetros da costa em direção a São Paulo.

As plantas são outro problema, porque algumas chamadas de invasoras são importantes economicamente, a exemplo do capim braquiária (Urochloa decumbens), bastante usado como pastagem para gado no Brasil. “Ninguém seria inconsequente a ponto de propor a eliminação da braquiária”, diz Cristina Azevedo, diretora do departamento de proteção da biodiversidade da Secretaria do Meio Ambiente (SMA) do estado de São Paulo.

Outra missão do grupo de trabalho será apresentar espécies nativas que possam substituir as plantas exóticas invasoras como o lírio-do-brejo, planta nativa da Ásia, que forma touceiras em córregos e áreas úmidas e tem um time de defensores porque, em razão do perfume intenso, é bastante usada em velórios. Cristina soube disso depois de uma conversa com representantes de funerárias que a procuraram para pedir que tirassem essa planta da lista que a SMA estava preparando.

“Cabe a nós, pesquisadores, apresentar alternativas, temos muitas espécies nativas”, afirma Dalva Matos, pesquisadora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Ela acompanha a construção e desconstrução das listas desde o primeiro debate realizado na capital paulista em 22 de maio de 2009, logo após a Organização das Nações Unidas ter reconhecido as espécies invasoras como um problema mundial. Calcula-se que 480 mil espécies exóticas que se espalharam mundialmente possam causar prejuízos anuais de US$ 1,4 trilhão, o equivalente a 5% da economia global.


 Mico-de-tufo-preto, invasor apenas se fora do cerrado 

Câncer da terraTrazidas nos intestinos de aves e de mamíferos e na bagagem de colonizadores, as espécies invasoras agora inquietam. Ávidas por luz, água e nutrientes, ocupam sem controle espaços livres ou tomados por comunidades de espécies nativas. Como um câncer da terra, escaparam do controle, se é que um dia puderam ser controladas. Poderão, agora? Os especialistas acreditam que sim, mas países mais ricos e organizados, como os Estados Unidos e a Inglaterra, ainda lutam arduamente para se livrar dessas pragas. Por vezes, a única saída para erradicar espécies danosas ao ambiente, cogitada nos Estados Unidos, é matar todos os organismos de um lago ou rio tomado por espécies invasoras de peixes e depois repovoar o lugar apenas com espécies nativas.

O governo do Reino Unido, um arquipélago do tamanho do estado de São Paulo, iniciou em 1981 uma campanha nacional para eliminar o ratão-do-banhado, roedor nativo da América do Sul e agora na lista de São Paulo. A eliminação dos animais – o último deles, acredita-se, foi morto em 1989 – e a recuperação ambiental custaram £ 3 bilhões (R$ 8 bilhões), mas recentemente os ingleses viram que os caramujos, outra espécie exótica, estão fora de controle e destruindo seus preciosos jardins.

No Brasil, esse problema começou a ser delineado há poucos anos. Em 2006, um grupo do Ministério do Meio Ambiente (MMA) reconheceu a existência de 543 organismos exóticos invasores com potencial para alterar o ambiente terrestre, marinho, a agropecuária ou a saúde humana no país. Há várias contagens. Em um estudo de julho de 2011 na Revista Brasileira de Botânica, Rafael Zenni e Sílvia Ziller, do Instituto Hórus, apresentam 117 espécies apenas de plantas reconhecidas como invasoras, já estabelecidas ou com potencial de invasão no país.

Sementes escondidas

Vários estados, como Paraná, Santa Catarina, Espírito Santo, Minas Gerais e Pernambuco, já aprovaram suas listas de espécies malditas e põem em campo projetos piloto de erradicação. O problema é que as sementes de gramíneas como o capim anoni (Eragrostis plana), que cobre 2 milhões de hectares de pastos degradados no Rio Grande do Sul, podem permanecer no solo por 24 anos.

“Temos de monitorar o banco de sementes do solo, não só a vegetação”, alerta Dalva. Ela e sua equipe de São Carlos verificaram que, no cerrado, uma samambaia nativa, a Pteridium arachnoideum, solta longas raízes, os rizomas, que liberam compostos capazes de inibir o crescimento de outras plantas. Uma solução seria revirar a terra e tirar o máximo possível de rizomas, já que a aplicação de calcário no solo pode não ser plenamente eficiente.

A relação paulista de seres indesejados era imensa, mas foi reduzida à medida que avançavam os debates entre os representantes do governo, de empresas e de ONGs que formam o Consema. Das 42 espécies de animais, incluindo a iguana, o pardal, a cabra doméstica e a lagartixa, só passaram as 14 sobre as quais não havia dúvida de que eram exóticas, invasoras e consensualmente prejudiciais para a sobrevivência de outras espécies ou para a agricultura (veja a lista).

A lista inicial, que deve ser reavaliada pelo grupo de trabalho, continha 22 espécies de plantas consideradas invasoras. Lá estavam açaí, abacateiro, mangueira, goiabeira, mamona, eucalipto, pínus, jaqueira e chuchu. Nenhuma, porém, passou pela votação dos representantes de órgãos de governo e da sociedade civil que formam o Consema.

Como os donos de floriculturas tinham feito com o lírio-do-brejo, os agrônomos saíram em defesa do açaizeiro, trazido para a Região Sudeste para produzir palmito como alternativa a uma palmeira nativa ameaçada de extinção, a juçara. O açaí é nativo da Amazônia e classificado como uma espécie exótica invasora na mata atlântica porque cresce mais rapidamente, produz mais frutos e atrai mais polinizadores que a juçara.

Não há espaço para conceitos inflexíveis. Como resultados dos próximos debates, talvez as espécies sejam consideradas com potencial de invasão de acordo com o ambiente em que estiverem: a jaqueira, por exemplo, pode ser prejudicial para outras espécies quando se espraia na mata atlântica, mas raramente é danosa em outros ambientes naturais. Ou talvez sejam mal-vistas apenas quando se espalharem onde não são bem-vindas. É o caso dos pinheiros (Pinus elliottii) que ocuparam áreas de cerrado do interior paulista, transformando-as em densas áreas de pinheiros, com visível perda de biodiversidade.

Outro problema que começou a ser debatido é o das espécies nativas que não são invasoras, mas que, na avaliação do grupo de São Carlos, deveriam ser controladas. É o caso do taquaruçu ou bambu-gigante (Guadua tagoara), nativo da mata atlântica, mas com potencial invasor. Esse bambu cresce sobre árvores e, depois de florescer, morre, quebrando galhos. Segundo Dalva, as sementes que brotam nas áreas próximas podem atrair muitos ratos, que comem as mudas de bambus e depois se espalham por plantações ou casas próximas.

Artigos científicos

1. DEBERDT, A.J. e SCHERER, S.B. O javali asselvajado: ocorrência e manejo da espécie no Brasil. Natureza & Conservação. v. 5, n. 2, p. 31-44. out. 2007.

2. ZENNI, R.D. e ZILLER, S.R. An overview of invasive plants in Brazil. Revista Brasileira de Botânica. v. 34, n. 3, p. 431-46. jul-set. 2011.


Os mamíferos da discórdia
Estudo contesta visão de que a maioria das espécies típicas do cerrado e da caatinga se originou nas florestas
© Maria Elina Bichuette
Marsupiais do gênero Cryptonanus: exemplo de mamíferos endêmicos do cerrado  
Há algumas décadas, a fauna de mamíferos do cerrado e da caatinga costumava ser descrita como uma versão empobrecida dos animais que habitavam as duas grandes florestas nacionais, a amazônica ao norte e a mata atlântica, na porção litorânea do país. A definição se amparava na constatação de que muitas das espécies presentes nos dois biomas vizinhos eram também compartilhadas com as densas matas adjacentes. Até as chamadas espécies endêmicas do cerrado e da caatinga, aquelas que só eram encontradas nessas áreas de vegetação predominantemente aberta, e em mais nenhuma outra, descenderiam de linhagens ancestrais associadas às florestas.

Um estudo recente, feito por três biólogos, questiona essa visão e sustenta exatamente o contrário: cerca de 80% das espécies endêmicas conhecidas de mamíferos do Brasil Central e semiárido do Nordeste têm suas raízes em regiões de vegetação aberta do continente sul-americano, do tipo savana, com poucas árvores e mais gramíneas, como o próprio cerrado e seu vizinho chaco, área plana e relativamente seca que se estende por partes dos territórios do Paraguai, Bolívia e Argentina, além de um pequeno trecho no centro-oeste nacional.

A ideia é defendida por Ana Paula Carmignotto, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Mario de Vivo, curador da seção de mamíferos do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), e Alfredo Langguth, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), num artigo que será um dos capítulos do livro Bones, clones, and biomes – The history and geography of recent neotropical mammals, a ser lançado em meados deste ano pela editora da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos. “Conseguimos demonstrar que muitas das espécies endêmicas de áreas abertas do cerrado e da caatinga não se originaram, como as pessoas pensavam, de espécies irmãs das florestas vizinhas”, afirma Vivo, cujos estudos foram basicamente financiados por um projeto temático feito no âmbito do programa Biota-FAPESP. “Elas, na verdade, pertencem a linhagens de formação aberta, com ramificações em outros biomas desse tipo na América do Sul.”

A hipótese se mostra mais plausível para a fauna típica de mamíferos do cerrado, onde, como no vizinho chaco, a presença de vastas áreas abertas era ainda mais expressiva por volta de 10 mil anos atrás do que é atualmente. A existência por um longo período de tempo dessa grande zona de savana no coração da América do Sul funcionou, de acordo com os pesquisadores, como o berço de boa parte das espécies mais típicas do cerrado.

No caso da caatinga, o papel das áreas abertas como origem de espécies singulares de mamíferos é aparentemente menos palpável, mas não totalmente desprezível. No que é hoje o semiárido nordestino, houve uma floresta tropical há alguns milhares de anos. O dado explica por que as matas do passado, e as de hoje, parecem realmente ter sido mais importantes para o desenvolvimento das poucas espécies únicas de mamíferos da caatinga, bioma onde esse grupo de animais é menos diversificado que no cerrado. Ainda assim, os três autores do artigo dizem que é um exagero creditar às florestas toda a cota de endemismo da caatinga.

Para chegar a essas conclusões, o trio de pesquisadores fez uma grande revisão da literatura científica publicada sobre o tema e também foi a campo estudar alguns animais específicos do cerrado e da caatinga e sua distribuição geográfica. O resultado do trabalho gerou uma lista atualizada não só das espécies presentes exclusivamente nos dois biomas, mas de todos os seus mamíferos conhecidos. A biodiversidade encontrada foi maior do que se esperava.

De acordo com o trabalho, o cerrado, cujo território abrange cerca de 2 milhões de quilômetros quadrados e abarca o pantanal, possui 227 espécies de mamíferos, 33 a mais do que encontrara o último inventário, de 2002. Com menos da metade da área e mais seca, a caatinga, segundo o novo estudo, conta com 153 espécies de mamíferos, 10 a mais do que elencara o levantamento anterior, de 2008 (veja infográfico).
Os morcegos e os roedores são as duas ordens de mamíferos com maior número de espécies conhecidas em ambos os biomas. Os primeiros representam mais de um terço das espécies do cerrado e mais da metade das da caatinga. Os segundos respondem por outro terço das espécies do cerrado e um quarto das da caatinga. Em seguida, com um número bem menor de espécies, destacam-se os carnívoros e os marsupiais (veja quadro).

É interessante notar que 120 espécies de mamíferos estão presentes tanto na caatinga como no cerrado. “A maior parte dos mamíferos desses dois biomas é compartilhada entre si ou com a floresta amazônica, a mata atlântica ou o chaco”, afirma Ana Paula Carmignotto. “Essa questão sempre foi destacada em outros estudos e pouco se falava das espécies endêmicas.” Segundo Vivo, muitos trabalhos davam a entender que as áreas abertas da América do Sul não tinham gerado nada de original em termos de novas formas de mamíferos. Quase tudo visto era como uma ramificação de linhagens que evoluíram nas matas fechadas. 

Morcego da espécie Xeronycteris vieirai: endêmico da caatinga
 

A impressão, falsa segundo o trio de autores, talvez decorra da constatação de que o universo dos mamíferos exclusivos do Brasil Central é realmente pequeno e concentrado. Os pesquisadores contaram 25 espécies exclusivas do cerrado (21 de roedores, 2 de marsupias, 1 de primata e 1 de morcego) e 8 da caatinga (5 de roedores, 1 de primata, 1 de marsupial e 1 de morcego). Falar de endemismo de mamíferos no cerrado e na caatinga é, portanto, quase sinônimo de falar de roedores. A distribuição geográfica das espécies encontradas nos dois biomas e os estudos filogenéticos, que traçam seu possível parentesco e relação evolutiva com animais de outras regiões, levaram os biólogos a defender dois padrões de endemismo.

O primeiro compreende espécies de mamíferos hoje típicas do cerrado ou da caatinga que derivaram de gêneros originários da floresta amazônica ou da mata atlântica. Os exemplos clássicos podem ser encontrados sobretudo na ordem dos primatas. O Callithrix penicillata, popularmente denominado sagui-de-tufo-preto ou mico-estrela, é um macaco que vive somente no cerrado, mais precisamente em trechos arbóreos desse ecossistema. É a única das mais de 20 espécies do gênero Callithrix que habita uma zona de savana, fora da floresta equatorial ou da mata litorânea. O mesmo ocorre com o Callicebus barbarabrownae, o guigó-da-caatinga, espécie hoje ameaçada de extinção cuja origem deve ter sido a vizinha mata atlântica. Alguns roedores, marsupiais e morcegos (como o Lonchophylla dekeyseri) do cerrado e da caatinga também se encaixam nessa situação.

O segundo padrão de endemismo é o de linhagens de animais que há muito tempo estão associadas a biomas de vegetação predominantemente aberta, como o próprio cerrado e a caatinga no passado remoto e o chaco. “A maioria dos mamíferos endêmicos do cerrado e da caatinga pertence a essa categoria”, afirma Vivo. As três espécies de roedores do cerrado do gênero Juscelinomys estão nessa situação. Esse também é o caso de duas espécies endêmicas de roedores do gênero Thalpomys, duas do gênero Wiedomys e uma do gênero Kunsia, entre outras.
A história evolutiva dos pequenos marsupais do gênero Thylamys é ainda mais surpreendente. Existem nove espécies do animal na América do Sul, cinco encontradas em áreas de vegetação aberta da região dos Andes. As duas espécies endêmicas do Brasil –  a Thylamys karimii, popularmente denominada catita e encontrada no cerrado e na caatinga, e a Thylamys velutinus, a catita-anã-de-rabo-gordo, presente apenas no cerrado – exibem os traços mais antigos (basais) do gênero e não teriam relações de parentesco com marsupiais originários de áreas florestais. “É um caso raro”, comenta Ana Paula. “Na maioria da vezes, a diversificação dos grupos de mamíferos associados às formações abertas da América do Sul ocorreu nos Andes e depois as linhagens se dispersaram e se diferenciaram aqui.”

O biológo Cleber Alho, professor titular aposentado da Universidade de Brasília (UnB) e hoje docente da pós-gradução da Universidade Anhanguera-Uniderp, do Mato Grosso do Sul, discorda da ideia de que a maioria das espécies endêmicas do cerrado e da caatinga seja derivada de linhagens de animais originários de áreas abertas. “Não sei como poderia justificar a possível origem de espécies endêmicas (desses dois biomas) em ambientes abertos”, afirma Alho. Ele cita exemplos de primatas, roedores e morcegos do cerrado cujas linhagens seriam provenientes de áreas com florestas.

Em sua maioria, as espécies mencionadas por Alho são as mesmas que Ana Paula, Vivo e Langguth admitem ser mesmo originárias de matas, embora sustentem que esses casos são a exceção, e não a regra da história evolutiva da fauna endêmica de mamíferos do centro do Brasil. Uma discordância explícita diz respeito às origens de uma espécie extinta de roedor, Juscelinomys candango, o rato-candango encontrado apenas durante a construção de Brasília em 1960 e, desde então, nunca mais visto. “Ele também dependia de hábitat florestado”, diz Alho. Vivo e seus colegas acham que não.

Outros pesquisadores acreditam que as ideias expostas no capítulo do livro sobre os mamíferos endêmicos do Brasil Central não devem ser descartadas sem estudos mais aprofundados. “É um trabalho muito interessante e acho que eles podem ter razão”, afirma o biólogo Rui Cerqueira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “A hipótese deles é bastante razoável.” Segundo o pesquisador fluminense, a noção de que a fauna de mamíferos do cerrado e da caatinga seria uma versão empobrecida dos animais florestais está realmente ultrapassada e mais estudos sobre a questão, sobretudo no semiárido nordestino, onde as coletas de animais são pouco frequentes, precisam ser feitos.

Artigo científico

CARMIGNOTTO, A. P. et al. Mammals of the Cerrado and Caatinga – Distribution Patterns of the Tropical Open Biomes of Central South America. Capítulo do livro Bones, clones, and biomes – The history and geography 
of recent neotropical mammals. No prelo.

O Projeto

Systematics evolution and conservation of eastern Brazilian Mammals –
n° 1998/05075-7
Modalidade
Projeto Temático
Co­or­de­na­dor
Mario de Vivo – USP
Investimento
R$ 529.250,05 (FAPESP)

A primeira fratura
Movimentação de Gondwana quase transformou o Nordeste brasileiro em parte da África
© Nasa / Corbis / Glowimages
Mapa mundi reconstrói passado; detalhes na próxima página
Por pouco, uma boa porção do que hoje é o Nordeste brasileiro não se tornou parte da África durante a movimentação dos grandes blocos rochosos que formam os continentes, a chamada deriva continental. A hipótese de que o Nordeste pudesse ter se partido surgiu nos anos 1960 e ganhou agora o reforço de evidências obtidas por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e da Universidade de Brasília (UnB).

Nesse cenário, que chegou a ser geologicamente esboçado, mas acabou interrompido por razões ainda não totalmente compreendidas, a América do Sul teria uma área bem menor, e o continente africano uma forma que lembraria mais um triângulo do que o atual “L” de cabeça para baixo. “O Carnaval de Salvador teria de ser brincado do outro lado do oceano”, comenta David Lopes de Castro, geofísico da UFRN e um dos quatro autores do estudo.

A pesquisa, publicada no Journal of Geodynamics, retrata a evolução da chamada bacia Potiguar, formação localizada na costa do Ceará e do Rio Grande do Norte, a última parte da América do Sul a se desprender da África.

Como se sabe, ao longo do tempo geológico, os continentes estão numa dança constante, ora se juntando, ora se afastando, em razão da dinâmica das placas tectônicas. Essas placas rígidas, de até 100 quilômetros de espessura, deslizam vagarosamente carregando consigo o que há em cima delas, como se fossem imensas balsas navegando sobre o interior pastoso da Terra.

Cerca de meio bilhão de anos atrás, África, América do Sul, Austrália, península Arábica, Índia e Antártida estavam reunidas num supercontinente que os geólogos batizaram de Gondwana.

“Na região que hoje é o noroeste africano e o nordeste sul-americano havia uma cadeia de montanhas, não muito diferente dos Andes”, diz Francisco Hilário Bezerra, coautor da pesquisa, também da UFRN.

A região era instável, como seria de esperar de um pedaço de terra em via de se dividir em dois. A separação completa entre América do Sul e África aconteceu cerca de 100 milhões de anos atrás. O racha deu origem à bacia Potiguar, do lado sul-americano, e à bacia Benue, do lado africano. No meio, nasceu o oceano Atlântico.

Decifrando a divisão

O que o grupo brasileiro se propôs a fazer foi buscar as peças do quebra-cabeça dos dois lados do oceano, a fim de descrever principalmente as características geológicas do lado de cá.

Os pesquisadores trabalharam com dados gravimétricos e magnetométricos. Apesar dos nomes complicados, são técnicas que se baseiam em conceitos simples. O primeiro diz respeito a variações no campo gravitacional da Terra, o segundo, no campo magnético.

Pode parecer estranho, mas a massa terrestre – responsável pelo campo gravitacional – não está igualmente distribuída em todo o globo. Por conta disso, há flutuações regionais e, analisando-as, os geofísicos conseguem calcular o que há por baixo do solo.

A mesma coisa se dá com relação ao campo magnético. Dependendo da composição das rochas sob o solo, ele aparece com maior ou menor intensidade. “Depende da intensidade de magnetização de cada rocha”, explica David Castro.

“As rochas sedimentares que formam a bacia Potiguar têm campo magnético de baixa intensidade e isso gera o contraste com as rochas do embasamento”, conta.

Os dados brutos, em sua maioria, não foram coletados pelos próprios cientistas. Do lado brasileiro, muitas das informações vieram de levantamentos pregressos feitos pela Petrobras e repassados aos pesquisadores pela Agência Nacional do Petróleo (ANP). Já do lado africano, as informações vieram de bancos de dados internacionais de acesso livre. Ainda assim, o grupo precisou coletar alguns dados gravimétricos. O esforço consistiu em levar um gravímetro – dispositivo um pouco maior que um computador convencional – pelas estradas do Rio Grande do Norte e do Ceará e fazer medições em diversos pontos das viagens. “Nós o colocamos no chão, fazemos a medida e seguimos em frente”, diz Castro.

A linha vermelha marca a área onde provavelmente ocorreu o início da separação entre África e América do Sul, que gerou as fraturas sobre as quais se assentam as bacias Potiguar, Jatobá e Tucano-Recôncavo, no Nordeste brasileiro
 
Muitos dos dados fornecidos pela ANP foram coletados por aerolevantamentos – em sobrevoos de avião, são tomadas medidas que ajudam a estimar o campo geomagnético da região. No entanto, os pesquisadores optaram por não utilizar dados gravimétricos coletados por satélites nas regiões continentais. Embora eles ofereçam uma cobertura muito mais ampla de todo o globo, a resolução não seria suficiente para dar o nível de precisão que eles buscavam para o detalhamento da constituição da bacia Potiguar e suas adjacências.

Em média, os pesquisadores tomavam uma medida a cada quilômetro (alguns dos dados obtidos com a ANP têm espaçamento ainda menor, de 500 metros). Reunindo todas essas informações, eles puderam estimar a configuração do subsolo daquela área. Com a gravimetria, é possível verificar as características de rochas a até 50 quilômetros de profundidade. No caso da magnetometria, o alcance é menor, mas ainda assim impressionante: cerca de 20 quilômetros.

Os dados das duas técnicas foram então combinados para produzir o levantamento da região – por vezes chegando a mapear a rocha até a interface entre a crosta da Terra e a camada imediatamente inferior, o manto. Com isso, os pesquisadores conseguiram identificar o alinhamento preciso da bacia Potiguar com outras duas, adjacentes e situadas mais ao sul, a bacia Jatobá e a Tucano-Recôncavo. Juntas, suas bordas traçam uma linha no sentido norte-sul, que vai do limite entre o Ceará e o Rio Grande do Norte ao nordeste da Bahia.
Fratura profundaCom a análise precisa dos dados da Potiguar, eles conseguiram identificar o alinhamento e a presença de uma fratura muito profunda – acredita-se que esse seja o sinal mais claro de que Gondwana originalmente começou a se partir naquela região, em vez de mais para o leste, como acabou ocorrendo milhões de anos mais tarde.

A pergunta que não quer calar, diante dessa evidência surpreendente de um quase-racha continental, é: por que ele não foi até o fim? Ninguém tem uma resposta exata, mas especula-se que aquela região pudesse ser mais resistente à quebra que o local onde de fato ocorreu, centenas de quilômetros a leste. Além disso, alguns geólogos sugerem que a tensão iniciada mais para dentro do continente sul-americano acabou se transferindo para outras falhas, levando ao rompimento em outro ponto. Contudo, ainda não há evidências conclusivas que expliquem a interrupção da quebra na borda da bacia Potiguar. É razão, portanto, para seguir pesquisando.

O trabalho do grupo brasileiro, do qual participa o geólogo Reinhardt Fuck, da UnB, aprofundou uma linha de pesquisa estabelecida em meados dos anos 1990 pelo pesquisador Roland Raymond Trompette, que já foi professor da Universidade de São Paulo e hoje trabalha no Centro Nacional de Pesquisa Científica da França. O estudo brasileiro valida os resultados do francês e dá mais detalhes da geologia da região, além de mostrar como se encaixam as peças do quebra-
-cabeça que acabaram ficando em lados opostos do Atlântico.

Quando dois continentes se separam, a divisão não é muito diferente das criadas pelo homem com suas fronteiras. Assim como o Muro de Berlim dividiu famílias e até casas na capital alemã após a Segunda Guerra Mundial, a separação entre a América do Sul e a África apartou regiões-irmãs, constituídas por formações geológicas que começam num lado do Atlântico e terminam no outro.

Por essa razão, não foi surpresa quando o novo mapeamento revelou falhas geológicas com continuidade linear da América até a África. Chama a atenção o fato de que, em 130 milhões de anos, as coisas quase não tenham mudado, ainda que um oceano tenha nascido entre os dois continentes.

A bacia Potiguar tem interesse especial não só pela curiosidade científica, mas também pelo potencial econômico – trata-se de uma região com consideráveis reservas de petróleo. Daí a abundância de dados colhidos pela Petrobras. “A bacia é o que se convencionou chamar de um campo de petróleo maduro, e as grandes reservas já foram descobertas”, diz Castro.

Para ele, o estudo pode ajudar em futuras prospecções, mas não só na América do Sul. “É possível, a partir dos resultados, procurar as mesmas situações geológicas na África. Dizem que por lá também tem o pré-sal, tal como cá.”

Uma contribuição dos novos resultados é realimentar a pesquisa básica. Ou seja, tudo começa com prospecção científica, passa à exploração econômica, que agora, com os dados colhidos, leva tudo de volta à ciência. E assim o ciclo prossegue.

“O que estamos buscando são os detalhes finos, tentar entender a história evolutiva da região”, diz. “E, de forma genérica, também é importante para prosseguir com a busca por mais petróleo, pois passamos a conhecer melhor os mecanismos que o geram e o acumulam.”

Artigo científicoCASTRO, D.L. et al. Influence of Neoproterozoic tectonic fabric on the origin of the Potiguar Basin, northeastern Brazil and its links with West Africa based on gravity and magnetic data. Journal of Geodynamics. v. 54, p. 29-42. mar. 2012.