Os efeitos danosos da caça ilegal
Proibida no país desde os anos 1960, a atividade reduziu a população
de várias espécies de animais e elevou o risco de desequilíbrio
ambiental
ANDRÉ JULIÃO e RICARDO ZORZETTO |
ED. 249 | NOVEMBRO 2016
Podcast: André Antunes
00:00 / 11:07
O biólogo André Antunes, primeiro autor desse trabalho, calculou o
número de animais abatidos no período ao combinar as informações
disponíveis nos registros comerciais e portuários com as anotadas nos
chamados manifestos de carga, relações detalhadas dos materiais
transportados pelos navios que partiam do interior da Amazônia para o
porto de Manaus.
Com os dados coletados durante o doutorado no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Antunes, em colaboração com outros pesquisadores do Brasil, da Nova Zelândia, da Inglaterra e dos Estados Unidos, conseguiu reconstituir a história do comércio de peles na Amazônia ocidental durante boa parte do século XX e ter uma ideia mais clara de seu impacto sobre as populações das espécies mais caçadas.
“A maior parte dos registros se perdeu”, conta o biólogo, atualmente pesquisador da Wildlife Conservation Society, organização não governamental com foco na conservação da fauna na Amazônia e em outras regiões do mundo. “A sorte é que os dados que restaram são muito detalhados.” Em alguns casos, porém, os documentos não informavam de que animal eram as peles transportadas; em outros, declaravam apenas o peso do material – e de certos períodos não há informação. Essa descontinuidade nos registros exigiu modelagem computacional para estimar, com base na tendência geral e em probabilidade estatística, o número de peles de cada espécie comercializado no período.
Em pouco mais de 60 anos, calculam os pesquisadores, foram abatidos na Amazônia pelo menos 13,9 milhões de mamíferos terrestres de seis espécies: caititu (Pecari tajacu), veado-mateiro (Mazama americana), queixada (Tayassu pecari), jaguatirica (Leopardus pardalis), gato-maracajá (Leopardus wiedii) e onça-pintada (Panthera onca). Entre esses, os caititus, talvez por serem mais numerosos, parecem ter sido a caça preferida: 5,4 milhões morreram de 1904 a 1969. No mesmo período, os caçadores abateram 804 mil jaguatiricas e gatos-maracajá, além de 183 mil onças-pintadas, o maior felino das Américas – quase 8 mil onças foram mortas em 1969, dois anos após a proibição da caça no país.
As estimativas também apontam a morte de 1,9 milhão de mamíferos aquáticos, como o peixe-boi (Trichechus inunguis), e outros que passam parte do tempo na água e parte em terra, como as capivaras (Hydrochoerus hydrochaeris), as ariranhas (Pteronura brasiliensis) e as lontras (Lontra longicaudis). Também morreram 4,4 milhões de jacarés-açu (Melanosuchus niger), um dos maiores predadores da Amazônia, com seus 4,5 metros de comprimento em média, cobiçados pelo couro negro. “A extração de sua pele motivou o aparecimento de grandes curtumes em Manaus e Belém”, conta Antunes.
Analisando como a caça evoluiu na Amazônia ao longo desse tempo, eles concluíram que as espécies aquáticas descritas no estudo estiveram muito próximas de desaparecer em boa parte da região: deixaram de ser vistas por muito tempo nas áreas em que costumavam ser abundantes, de acordo com relatos de moradores. Já as populações de espécies terrestres se recuperaram razoavelmente bem, como indica a produção estável de peles ao longo das décadas. Seria um sinal de resiliência diante da pressão de caça.
Dois fatores ajudam a explicar a vulnerabilidade maior dos animais aquáticos. O primeiro é que algumas espécies de mamíferos que passam ao menos parte do tempo na água costumam apresentar uma baixa taxa reprodutiva. Ariranhas e peixes-boi, por exemplo, não geram muitos filhotes a cada gestação – e as gestações ocorrem a intervalos longos. Outro fator é que os mamíferos aquáticos parecem estar mais expostos aos seres humanos. “Na Amazônia, as ocupações humanas historicamente se localizaram à beira dos rios”, explica Antunes. “O acesso por embarcações facilita a obtenção de animais aquáticos e o transporte de suas peles, enquanto os bichos que vivem nas matas de terra firme têm mais refúgio e estão longe das comunidades ribeirinhas”, conta.
Ao confrontar a tendência de caça com fatos históricos do século XX, os autores do trabalho identificaram as causas econômicas que impulsionaram a exploração comercial da fauna silvestre amazônica. Por volta de 1910, a economia da região entrou em colapso com a disseminação da produção de látex na Malásia, que levou à perda de competitividade do produto brasileiro. O comércio de peles, até então reduzido e focado na exploração do veado-mateiro, tornou-se uma alternativa de geração de renda para parte dos 500 mil imigrantes que haviam chegado à região nas décadas anteriores e para os indígenas que participaram do ciclo da borracha.
De 1930 a 1960, a caça comercial passou a ser uma das principais atividades extrativistas da Amazônia. Só em 1967, com a Lei da Fauna, a prática tornou-se proibida. Mesmo assim, segundo Antunes, a edição de portarias que permitiam liquidar os estoques intensificou o comércio ilegal de peles na região no início dos anos 1970.
O encolhimento das populações
Apesar da interdição em vigor há quase cinco décadas, a caça continua a ser praticada em todo o país. Um dos ambientes em que o prejuízo se torna evidente é a Mata Atlântica. Um estudo sobre os mamíferos silvestres no maior remanescente contínuo dessa floresta, na porção leste do estado de São Paulo, indica que, onde a caça persiste, ela causa a extinção local de animais de grande porte, como o queixada e a anta (Tapirus terrestris). Esses grandes mamíferos desempenham um papel fundamental na dispersão de sementes, na fertilização do solo e na renovação da floresta.
Nesse trabalho, coordenado pelo biólogo Mauro Galetti, professor do Departamento de Ecologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro, os pesquisadores percorreram por volta de 4 mil quilômetros em 13 áreas na serra do Mar e registraram a densidade de 44 espécies de mamíferos e a biomassa total de oito delas. “Ter muitos mamíferos não basta”, afirma o ecólogo Ricardo Bovendorp, pesquisador que atualmente faz um estágio de pós-doutorado na Unesp. “É preciso que haja animais grandes, como antas e queixadas, que não têm substitutos para as funções ecológicas que exercem no ecossistema”, explica o pesquisador, um dos autores do artigo que descreveu os resultados em uma edição recente da Animal Conservation.
Uma das causas da caça disseminada de animais silvestres é a falta de proteção efetiva em áreas de proteção ambiental. “No Parque Estadual da Ilha do Cardoso, no litoral sul, dois dos 34 queixadas que estamos monitorando com radiocolar foram caçados”, afirma Galetti.
A equipe da Unesp observou ainda que áreas de caça intensa podem abrigar um número semelhante de mamíferos do que regiões nas quais não se matam animais. A diferença é que, onde se caça, praticamente só são encontrados animais de pequeno porte, como saguis e roedores, o que pode acarretar um desequilíbrio ambiental irreversível. “Sem grandes mamíferos, as plantas com sementes grandes correm o risco de desaparecer”, conta a ecóloga Carolina Bello, aluna de doutorado de Galetti. No final de 2015, ela e Galetti publicaram na Science Advances um estudo mostrando que a redução da fauna na Mata Atlântica afeta a capacidade da floresta de retirar carbono da atmosfera.
O impacto da caça nas populações dos grandes mamíferos não é exclusivo do Brasil. Galetti e o ecólogo brasileiro Carlos Peres, professor da Universidade de East Anglia, na Inglaterra, participaram de um estudo internacional que avaliou o estado de preservação de 301 espécies de mamíferos de diferentes regiões do mundo que correm o risco de extinção por causa da caça. A matança de animais para a alimentação ou a retirada de marfim, chifres ou ossos – os dois últimos, com fama medicinal na Ásia – vem dizimando algumas populações, segundo o trabalho publicado em outubro na revista Royal Society Open Science. “Só os elefantes africanos perderam metade de sua população nos últimos 30 anos devido à caça e à perda de hábitat”, conta Peres.
De acordo com o levantamento, a maioria dos mamíferos ameaçados pela caça está em regiões com grandes desigualdades sociais. Nesses locais, os animais silvestres servem como fonte de renda e de proteína e são capturados por meio de armadilhas, o que amplia os danos. Estudos realizados na África Central mostram que um quarto dos animais pegos em armadilhas apodrece na natureza ou é consumido por outros animais. Outro terço escapa com ferimentos e pode morrer horas ou dias depois. Um levantamento anterior feito em uma área de conservação do Zimbábue verificou que 1,4 mil grandes mamíferos apanhados em armadilhas apodreceram entre 2005 e 2009. Além do desperdício, essa forma de caça muitas vezes resulta na captura de fêmeas, que podem estar prenhes, e de indivíduos jovens, que teriam uma longa vida reprodutiva pela frente – situações muito danosas para algumas espécies.
Permissão controlada
Diante desse cenário, os pesquisadores defendem que, em algumas regiões, a proibição total seja mais nociva do que permitir a captura de animais sob condições específicas e rigorosa fiscalização. A ideia não é nova. Na maior parte dos Estados Unidos a caça do veado-galheiro (Odocoileus virginianus) é permitida e sua população se mantém estável. “Esse é um dos mamíferos de grande porte mais bem estudados no mundo, até porque se precisa ajustar as cotas de abate sustentável”, afirma Peres, que também colaborou com o estudo da Science Advances.
Peres e Antunes propõem que, no Brasil, alguns mecanismos poderiam permitir que populações tradicionais da Amazônia fossem autorizadas a caçar determinadas espécies de animais, apenas com a finalidade de subsistência – a Lei dos Crimes Ambientais, de 1998, permite a caça em situações excepcionais, como a de extrema necessidade; outra lei, que em 2000 estabeleceu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, garante o acesso das populações tradicionais aos recursos naturais, como forma de valorizar o seu conhecimento e a sua cultura.
Os pesquisadores ressaltam, no entanto, que essa permissão só poderia ocorrer mediante um manejo bastante criterioso e continuado, em regiões largamente cobertas por florestas e sem estradas, de preferência em unidades de conservação. Esse modelo, afirmam, só seria aplicável a algumas regiões da Amazônia. “Na Mata Atlântica contemporânea, seria inimaginável”, afirma Peres.
A ideia seria fazer algo nos moldes do manejo do pirarucu (Arapaima gigas) realizado em partes da Amazônia. A captura do pirarucu, um dos maiores peixes de água doce do mundo, é proibida na região. Mas o manejo comunitário feito em algumas reservas de desenvolvimento sustentável e territórios indígenas vem tornando possível a pesca sustentável e o aumento da população (ver Pesquisa FAPESP nº 248). Os pesquisadores propõem algo semelhante para a caça. Peres sugere que seria possível estipular as espécies permitidas para a caça – por exemplo, aquelas com alta taxa reprodutiva – ou restringir a captura apenas a machos adultos. “Desse modo”, sugere Antunes, “talvez se torne possível suprir a necessidade de populações tradicionais e manter estável a população dessas espécies de animais”.
Artigos científicos
ANTUNES, A. P. et al. Empty forest or empty rivers? A century of commercial hunting in Amazonia. Science Advances. 12 out. 2016.
GALETTI, M. et al. Defaunation and biomass collapse of mammals in the largest Atlantic forest remnant. Animal Conservation. No prelo.
RIPPLE, W. J. et al. Bushmeat hunting and extinction risk to the world’s mammals. Royal Society Open Science. v. 3 (20). set. 2016.
CAMPOS-SILVA, J. V e PERES, C. A. Community-based management induces rapid recovery of a high-value tropical freshwater fishery. Scientific Reports. 12 out. 2016.
Com os dados coletados durante o doutorado no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Antunes, em colaboração com outros pesquisadores do Brasil, da Nova Zelândia, da Inglaterra e dos Estados Unidos, conseguiu reconstituir a história do comércio de peles na Amazônia ocidental durante boa parte do século XX e ter uma ideia mais clara de seu impacto sobre as populações das espécies mais caçadas.
“A maior parte dos registros se perdeu”, conta o biólogo, atualmente pesquisador da Wildlife Conservation Society, organização não governamental com foco na conservação da fauna na Amazônia e em outras regiões do mundo. “A sorte é que os dados que restaram são muito detalhados.” Em alguns casos, porém, os documentos não informavam de que animal eram as peles transportadas; em outros, declaravam apenas o peso do material – e de certos períodos não há informação. Essa descontinuidade nos registros exigiu modelagem computacional para estimar, com base na tendência geral e em probabilidade estatística, o número de peles de cada espécie comercializado no período.
Em pouco mais de 60 anos, calculam os pesquisadores, foram abatidos na Amazônia pelo menos 13,9 milhões de mamíferos terrestres de seis espécies: caititu (Pecari tajacu), veado-mateiro (Mazama americana), queixada (Tayassu pecari), jaguatirica (Leopardus pardalis), gato-maracajá (Leopardus wiedii) e onça-pintada (Panthera onca). Entre esses, os caititus, talvez por serem mais numerosos, parecem ter sido a caça preferida: 5,4 milhões morreram de 1904 a 1969. No mesmo período, os caçadores abateram 804 mil jaguatiricas e gatos-maracajá, além de 183 mil onças-pintadas, o maior felino das Américas – quase 8 mil onças foram mortas em 1969, dois anos após a proibição da caça no país.
As estimativas também apontam a morte de 1,9 milhão de mamíferos aquáticos, como o peixe-boi (Trichechus inunguis), e outros que passam parte do tempo na água e parte em terra, como as capivaras (Hydrochoerus hydrochaeris), as ariranhas (Pteronura brasiliensis) e as lontras (Lontra longicaudis). Também morreram 4,4 milhões de jacarés-açu (Melanosuchus niger), um dos maiores predadores da Amazônia, com seus 4,5 metros de comprimento em média, cobiçados pelo couro negro. “A extração de sua pele motivou o aparecimento de grandes curtumes em Manaus e Belém”, conta Antunes.
Analisando como a caça evoluiu na Amazônia ao longo desse tempo, eles concluíram que as espécies aquáticas descritas no estudo estiveram muito próximas de desaparecer em boa parte da região: deixaram de ser vistas por muito tempo nas áreas em que costumavam ser abundantes, de acordo com relatos de moradores. Já as populações de espécies terrestres se recuperaram razoavelmente bem, como indica a produção estável de peles ao longo das décadas. Seria um sinal de resiliência diante da pressão de caça.
Dois fatores ajudam a explicar a vulnerabilidade maior dos animais aquáticos. O primeiro é que algumas espécies de mamíferos que passam ao menos parte do tempo na água costumam apresentar uma baixa taxa reprodutiva. Ariranhas e peixes-boi, por exemplo, não geram muitos filhotes a cada gestação – e as gestações ocorrem a intervalos longos. Outro fator é que os mamíferos aquáticos parecem estar mais expostos aos seres humanos. “Na Amazônia, as ocupações humanas historicamente se localizaram à beira dos rios”, explica Antunes. “O acesso por embarcações facilita a obtenção de animais aquáticos e o transporte de suas peles, enquanto os bichos que vivem nas matas de terra firme têm mais refúgio e estão longe das comunidades ribeirinhas”, conta.
Ao confrontar a tendência de caça com fatos históricos do século XX, os autores do trabalho identificaram as causas econômicas que impulsionaram a exploração comercial da fauna silvestre amazônica. Por volta de 1910, a economia da região entrou em colapso com a disseminação da produção de látex na Malásia, que levou à perda de competitividade do produto brasileiro. O comércio de peles, até então reduzido e focado na exploração do veado-mateiro, tornou-se uma alternativa de geração de renda para parte dos 500 mil imigrantes que haviam chegado à região nas décadas anteriores e para os indígenas que participaram do ciclo da borracha.
De 1930 a 1960, a caça comercial passou a ser uma das principais atividades extrativistas da Amazônia. Só em 1967, com a Lei da Fauna, a prática tornou-se proibida. Mesmo assim, segundo Antunes, a edição de portarias que permitiam liquidar os estoques intensificou o comércio ilegal de peles na região no início dos anos 1970.
O encolhimento das populações
Apesar da interdição em vigor há quase cinco décadas, a caça continua a ser praticada em todo o país. Um dos ambientes em que o prejuízo se torna evidente é a Mata Atlântica. Um estudo sobre os mamíferos silvestres no maior remanescente contínuo dessa floresta, na porção leste do estado de São Paulo, indica que, onde a caça persiste, ela causa a extinção local de animais de grande porte, como o queixada e a anta (Tapirus terrestris). Esses grandes mamíferos desempenham um papel fundamental na dispersão de sementes, na fertilização do solo e na renovação da floresta.
Nesse trabalho, coordenado pelo biólogo Mauro Galetti, professor do Departamento de Ecologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro, os pesquisadores percorreram por volta de 4 mil quilômetros em 13 áreas na serra do Mar e registraram a densidade de 44 espécies de mamíferos e a biomassa total de oito delas. “Ter muitos mamíferos não basta”, afirma o ecólogo Ricardo Bovendorp, pesquisador que atualmente faz um estágio de pós-doutorado na Unesp. “É preciso que haja animais grandes, como antas e queixadas, que não têm substitutos para as funções ecológicas que exercem no ecossistema”, explica o pesquisador, um dos autores do artigo que descreveu os resultados em uma edição recente da Animal Conservation.
Uma das causas da caça disseminada de animais silvestres é a falta de proteção efetiva em áreas de proteção ambiental. “No Parque Estadual da Ilha do Cardoso, no litoral sul, dois dos 34 queixadas que estamos monitorando com radiocolar foram caçados”, afirma Galetti.
A equipe da Unesp observou ainda que áreas de caça intensa podem abrigar um número semelhante de mamíferos do que regiões nas quais não se matam animais. A diferença é que, onde se caça, praticamente só são encontrados animais de pequeno porte, como saguis e roedores, o que pode acarretar um desequilíbrio ambiental irreversível. “Sem grandes mamíferos, as plantas com sementes grandes correm o risco de desaparecer”, conta a ecóloga Carolina Bello, aluna de doutorado de Galetti. No final de 2015, ela e Galetti publicaram na Science Advances um estudo mostrando que a redução da fauna na Mata Atlântica afeta a capacidade da floresta de retirar carbono da atmosfera.
O impacto da caça nas populações dos grandes mamíferos não é exclusivo do Brasil. Galetti e o ecólogo brasileiro Carlos Peres, professor da Universidade de East Anglia, na Inglaterra, participaram de um estudo internacional que avaliou o estado de preservação de 301 espécies de mamíferos de diferentes regiões do mundo que correm o risco de extinção por causa da caça. A matança de animais para a alimentação ou a retirada de marfim, chifres ou ossos – os dois últimos, com fama medicinal na Ásia – vem dizimando algumas populações, segundo o trabalho publicado em outubro na revista Royal Society Open Science. “Só os elefantes africanos perderam metade de sua população nos últimos 30 anos devido à caça e à perda de hábitat”, conta Peres.
De acordo com o levantamento, a maioria dos mamíferos ameaçados pela caça está em regiões com grandes desigualdades sociais. Nesses locais, os animais silvestres servem como fonte de renda e de proteína e são capturados por meio de armadilhas, o que amplia os danos. Estudos realizados na África Central mostram que um quarto dos animais pegos em armadilhas apodrece na natureza ou é consumido por outros animais. Outro terço escapa com ferimentos e pode morrer horas ou dias depois. Um levantamento anterior feito em uma área de conservação do Zimbábue verificou que 1,4 mil grandes mamíferos apanhados em armadilhas apodreceram entre 2005 e 2009. Além do desperdício, essa forma de caça muitas vezes resulta na captura de fêmeas, que podem estar prenhes, e de indivíduos jovens, que teriam uma longa vida reprodutiva pela frente – situações muito danosas para algumas espécies.
Permissão controlada
Diante desse cenário, os pesquisadores defendem que, em algumas regiões, a proibição total seja mais nociva do que permitir a captura de animais sob condições específicas e rigorosa fiscalização. A ideia não é nova. Na maior parte dos Estados Unidos a caça do veado-galheiro (Odocoileus virginianus) é permitida e sua população se mantém estável. “Esse é um dos mamíferos de grande porte mais bem estudados no mundo, até porque se precisa ajustar as cotas de abate sustentável”, afirma Peres, que também colaborou com o estudo da Science Advances.
Peres e Antunes propõem que, no Brasil, alguns mecanismos poderiam permitir que populações tradicionais da Amazônia fossem autorizadas a caçar determinadas espécies de animais, apenas com a finalidade de subsistência – a Lei dos Crimes Ambientais, de 1998, permite a caça em situações excepcionais, como a de extrema necessidade; outra lei, que em 2000 estabeleceu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, garante o acesso das populações tradicionais aos recursos naturais, como forma de valorizar o seu conhecimento e a sua cultura.
Os pesquisadores ressaltam, no entanto, que essa permissão só poderia ocorrer mediante um manejo bastante criterioso e continuado, em regiões largamente cobertas por florestas e sem estradas, de preferência em unidades de conservação. Esse modelo, afirmam, só seria aplicável a algumas regiões da Amazônia. “Na Mata Atlântica contemporânea, seria inimaginável”, afirma Peres.
A ideia seria fazer algo nos moldes do manejo do pirarucu (Arapaima gigas) realizado em partes da Amazônia. A captura do pirarucu, um dos maiores peixes de água doce do mundo, é proibida na região. Mas o manejo comunitário feito em algumas reservas de desenvolvimento sustentável e territórios indígenas vem tornando possível a pesca sustentável e o aumento da população (ver Pesquisa FAPESP nº 248). Os pesquisadores propõem algo semelhante para a caça. Peres sugere que seria possível estipular as espécies permitidas para a caça – por exemplo, aquelas com alta taxa reprodutiva – ou restringir a captura apenas a machos adultos. “Desse modo”, sugere Antunes, “talvez se torne possível suprir a necessidade de populações tradicionais e manter estável a população dessas espécies de animais”.
Artigos científicos
ANTUNES, A. P. et al. Empty forest or empty rivers? A century of commercial hunting in Amazonia. Science Advances. 12 out. 2016.
GALETTI, M. et al. Defaunation and biomass collapse of mammals in the largest Atlantic forest remnant. Animal Conservation. No prelo.
RIPPLE, W. J. et al. Bushmeat hunting and extinction risk to the world’s mammals. Royal Society Open Science. v. 3 (20). set. 2016.
CAMPOS-SILVA, J. V e PERES, C. A. Community-based management induces rapid recovery of a high-value tropical freshwater fishery. Scientific Reports. 12 out. 2016.
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