As metamorfoses da Mata Atlântica
Levantamento indica predomínio de animais pequenos e resistência à fragmentação florestal
Publicado originalmente por Carlos Fioravanti - Revista Pesquisa Fapesp (Edição 267 mai. 2018)
04/06/2018
Mico-leão-de-cara-preta, o macaco mais raro na Mata Atlântica, com 34 registros
Os
animais de grande porte escassearam e os pequenos se tornaram
dominantes, mas praticamente não houve extinções globais na Mata
Atlântica, de acordo com estudos realizados a partir da base de dados
Atlantic Series, cuja elaboração reuniu cerca de 400 biólogos, ecólogos e
engenheiros florestais do Brasil e de outros países. Ao juntar
informações de coleções biológicas de museus, artigos científicos,
coletas de campo, bases on-line, dissertações de mestrado, teses de
doutorado, relatórios técnicos e inventários de campo que haviam sido
publicados ou não, os pesquisadores observaram também a resiliência –
capacidade de adaptação – das espécies de mamíferos de grande e pequeno
porte e de aves à extrema fragmentação da Mata Atlântica. A floresta que
acompanha o litoral, entrando no interior de São Paulo e Minas Gerais,
ocupa cerca de 15% da área estimada há cinco séculos, quando começou a
colonização europeia, e se encontra dividida em centenas de pedaços, a
maioria com menos de 1 quilômetro quadrado.
“Mesmo com uma redução de 85% da área da
Mata Atlântica, não houve uma extinção em massa, pelo menos não ainda”,
diz o biólogo Mauro Galetti, professor da Universidade Estadual Paulista
(Unesp), campus de Rio Claro, e um dos coordenadores do trabalho.
“Houve extinções locais, como a do macaco mono carvoeiro (Brachyteles
arachnoides), que ocorria em boa parte da Mata Atlântica e hoje é
raríssimo, mas encontramos poucas extinções globais entre as 2 mil
espécies já examinadas.” Três espécies de aves – a coruja-marrom, a
caburé-de-pernambuco (Glaucidium moorerorum), o pararu (Claravis geoffroyi) e o tietê-de-coroa (Calyptura cristata)
– não são avistadas há mais de 20 anos e provavelmente já
desapareceram. Entre os anfíbios, a única espécie considerada extinta é a
perereca Phrynomedusa fimbriata, vista apenas no alto da serra de
Paranapiacaba em 1896 e descrita em 1923.
Bichos grandes mais rarosOs
estudos da Atlantic Series registraram uma redução das populações de
mamíferos e aves de grande porte. A onça-pintada, a queixada ou
porco-do-mato (Tayassu pecari), o cachorro-do-mato-vinagre (Speothos venaticus), a harpia (Harpia harpyja),
os tucanos e os gaviões florestais tornaram-se raros na Mata Atlântica,
à medida que perderam território ou foram caçados. Em consequência,
ressalta o ecólogo Milton Ribeiro, professor da Unesp em Rio Claro,
espécies de árvores de grande porte tendem a escassear, porque dependem
de animais avantajados para levar suas sementes também grandes para
áreas em que possam germinar com baixa competição com outras árvores da
mesma espécie.
O biólogo Fernando Lima, pesquisador da
Unesp e do Instituto de Pesquisas Ecológicas (Ipê), com colegas de
outras instituições do Brasil e da Argentina, encontrou grupos de pelo
menos 50 onças-pintadas apenas em matas da serra do Mar, do alto Paraná e
Paranapanema (oeste de São Paulo) e de Missiones, na Argentina. “As
populações de onças não chegam a 300 indivíduos, são poucas e estão
muito isoladas, o que prejudica a continuidade da espécie”, diz. Por
serem escassas, as onças deixaram de exercer o papel de predador de topo
da cadeia ecológica. Em consequência, os competidores de porte médio
como a onça-parda e a jaguatirica (Leopardus pardalis) ganham espaço, com efeitos imprevisíveis sobre as populações das habituais presas, como capivaras (Hydrochoerus hydrochaeris) e porcos selvagens como catetos (Pecari tajacu) e queixadas (Tayassu pecari).
A Atlantic Series reúne informações sobre
as áreas de ocorrência e a abundância de – até agora – 296 espécies de
mamíferos (de grande e pequeno porte, morcegos e primatas), 832 de aves,
528 de anfíbios e 279 de borboletas, com dezenas de milhares de
registros geográficos para cada grupo. Os trabalhos científicos
resultantes dessa base de dados estão sendo publicados na revista
científica Ecology; as listas de espécies com suas áreas de ocorrência e
abundância integram os anexos de cada trabalho e um site criado pelo grupo da Unesp.
Os estudos evidenciam as espécies mais
abundantes e as mais raras. No primeiro caso, entre os mamíferos de
grande porte registrados por armadilhas fotográficas, o mais comum nas
matas é o cachorro doméstico (Canis familiaris). No segundo caso estão, entre os macacos, o mico-leão-de-cara-preta (Leontopithecus caissara), com 34 registros, e o macaco-prego-dourado (Sapajus flavius), com 44 registros em toda a Mata Atlântica.
Dos trabalhos, emergem também as relações
entre os animais e as plantas. Em junho de 2017, o primeiro dos seis
artigos já publicados apresentou 8.320 interações, em geral ligadas à
alimentação, entre 331 animais (aves, mamíferos, peixes, anfíbios e
répteis) e 788 espécies de plantas. Um dos destaques foi um tipo de
árvore encontrada em encostas e margens de córregos, a capororoca (Myrsine coriacea).
Essa espécie tinha o maior número de dispersores: seus frutos atraem 83
espécies de animais, como gralhas, jacus, bugios, sabiás e outras aves.
O macaco muriqui (Brachyteles arachnoides) e o sabiá-laranjeira (Turdus rufiventris)
despontaram como os frugívoros com as dietas mais diversificadas, por
se alimentarem dos frutos, respectivamente, de 137 e 121 espécies de
plantas. “A elucidação das relações entre fauna e flora, como
frugivoria, herbivoria, dispersão e polinização, é fundamental para
sustentar a definição de grupos funcionais de espécies a serem usadas na
restauração florestal”, comenta o biólogo Ricardo Rodrigues, da Escola
Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo
(Esalq-USP), que não participou desse trabalho.
O ecológo Jean Paul Metzger, professor do
Instituto de Biociências da USP e um dos coautores desse trabalho,
ressalta que essa base é também uma matéria-prima farta para estudos
sobre variação das populações, áreas de ocorrência de espécies e
interações entre comunidades de animais e plantas. “A partir da reunião
desses dados, podemos testar uma série de novas hipóteses, como a
relação entre as extinções da fauna e a das árvores de grande porte,
levando à redução da biomassa da floresta”, sugere.
“Com os dados da Atlantic Series”,
acrescenta Galetti, “tentaremos entender como as espécies sobrevivem
mesmo diante de uma altíssima fragmentação”. Segundo ele, a capacidade
de os animais se adaptarem a espaços menores, com luminosidade e clima
diferentes dos habituais, a chamada plasticidade fenotípica e
comportamental, tem sido pouco estudada. A onça-parda (Puma concolor)
consegue viver em florestas, em plantações de eucalipto ou entre
canaviais e alimentar-se de animais de todo tipo – de camundongos a
bois. Em contrapartida, a onça-pintada (Panthera onca), embora
possa viver em matas fechadas ou abertas como o Cerrado e a Caatinga,
precisa de grandes espaços e de animais de grande porte como anta e
porcos-do-mato que possa caçar.
Gradualmente, a Mata Atlântica se
transforma em uma floresta de animais de pequeno porte, que se tornam
hiperdominantes. A hiperdominância é uma situação em que poucas espécies
respondem por pelo menos metade dos exemplares de determinado tipo de
ser de uma área. Entre as 124 espécies de pequenos mamíferos, as
predominantes são o gambá (Didelphis aurita) e o ratinho-do-arroz (Oligoryzomys nigripes).
“A hiperdominância é um reflexo da fragmentação, porque as espécies
desse tipo se adaptam a áreas pequenas, mas não sabemos até que ponto”,
diz Galetti. “A possibilidade de ser um padrão geral de florestas
tropicais abre um enorme campo de pesquisas, para entender como uma
espécie se torna hiperdominante.” Um estudo da Science de 2013 indicou
que, entre as cerca de 16 mil espécies de árvores da Amazônia, 227 (1,4%
do total) são hiperdominantes, enquanto outras 11 mil respondem por
apenas 0,1% do total.
Dois séculos de registros de avesCoordenado
pela bióloga Erica Hasui, professora da Universidade Federal de
Alfenas, Minas Gerais, o artigo sobre aves, publicado em fevereiro deste
ano, oferece uma visão retrospectiva mais ampla que os outros trabalhos
da Atlantic Series. Ele reúne 183.814 registros de 832 espécies obtidos
entre 1815 e 2017 em 4.122 localidades. Com base nessas informações,
Erica e o biólogo Luis Fábio Silveira, curador das coleções
ornitológicas do Museu de Zoologia da USP, verificaram que a jacutinga (Aburria jacutinga),
que nos anos 1800 se espalhava pelas matas de quase todo o sudeste,
hoje vive apenas nos maiores fragmentos de Mata Atlântica, localizados
principalmente em São Paulo.
Esse inventário contém apenas 12 registros
de harpia, em grandes áreas de Mata Atlântica: o mais antigo foi em
Cantagalo, no Rio de Janeiro, em 1850, e o mais recente em Iporanga, no
interior de São Paulo, em 1992. Há também registros do final do século
XIX de espécies hoje raras em áreas da cidade de São Paulo, como o
não-pode-parar (Phylloscartes paulista), um pássaro de até 10
centímetros de comprimento, acinzentado, com peito amarelado, que foi
observado nos bairros de Santo Amaro e do Ipiranga, respectivamente, em
1897 e 1899.
Até o final do ano outros levantamentos
dessa série deverão ser publicados, tratando de anfíbios, borboletas,
primatas, formigas, polinizadores e árvores. Diante dessa produção
científica, o ecólogo finlandês Otso Ovaskainen, da Universidade de
Helsinque, na Finlândia, que em 2015 motivou os biólogos brasileiros a
reunirem seus dados, comentou: “É fantástico que todos esses dados
estejam agora acessíveis para pesquisadores que trabalham com ecologia
tropical. Eles são especialmente relevantes para entender o impacto dos
seres humanos sobre os ecossistemas, por meio, por exemplo, da
fragmentação florestal e da defaunação”, disse. “A possibilidade de
combinar essas informações de modos diferentes é animadora.”
Projetos
1. Consequências ecológicas da defaunação na Mata Atlântica ( nº 2014/01986-0 ); Modalidade Projeto temático; Pesquisador responsável Mauro Galetti (Unesp); Investimento R$ 1.425.755,832. Novos métodos de amostragem e ferramentas estatísticas para pesquisa em biodiversidade: integrando ecologia de movimento com ecologia de população e comunidade (nº 2013/50421-2 ); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Milton Cezar Ribeiro (Unesp) ; Investimento R$ 1.292.448,933. Conservação da biodiversidade em paisagens fragmentadas no Planalto Atlântico de São Paulo (Brasil) (nº 1999/05123-4); Modalidade Projeto temático; Pesquisador responsável Jean Paul Walter Metzger (USP) ; Investimento R$ 1.323.617,08
1. Consequências ecológicas da defaunação na Mata Atlântica ( nº 2014/01986-0 ); Modalidade Projeto temático; Pesquisador responsável Mauro Galetti (Unesp); Investimento R$ 1.425.755,832. Novos métodos de amostragem e ferramentas estatísticas para pesquisa em biodiversidade: integrando ecologia de movimento com ecologia de população e comunidade (nº 2013/50421-2 ); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Milton Cezar Ribeiro (Unesp) ; Investimento R$ 1.292.448,933. Conservação da biodiversidade em paisagens fragmentadas no Planalto Atlântico de São Paulo (Brasil) (nº 1999/05123-4); Modalidade Projeto temático; Pesquisador responsável Jean Paul Walter Metzger (USP) ; Investimento R$ 1.323.617,08
Artigos científicos
BELLO, C. et al. Atlantic frugivory: a plant–frugivore interaction data set for the Atlantic Forest. Ecology, v. 98, n. 6, p. 1729, mar. 2017.
BELLO, C. et al. Atlantic frugivory: a plant–frugivore interaction data set for the Atlantic Forest. Ecology, v. 98, n. 6, p. 1729, mar. 2017.
BOVENDORP, R. S. et al. Atlantic small‐mammal: a dataset of communities of rodents and marsupials of the Atlantic forests of South America. Ecology, v. 98, n. 8, p. 2226, ago. 2017.
LIMA, F. et al. Atlantic-camtraps: a dataset of medium and large terrestrial mammal communities in the Atlantic Forest of South America. Ecology, v. 98, n. 11, p. 2979, nov. 2017.
MUYLAERT, R. D. L. et al. Atlantic bats: a data set of bat communities from the Atlantic Forests of South America. Ecology, v. 98, n. 12, p. 3227, dez. 2017.
GONÇALVES, F. et al. Atlantic mammal traits: a data set of morphological traits of mammals in the Atlantic Forest of South America. Ecology, v. 99, n. 2, p. 498, fev. 2018.
HASUI, E. et al. Atlantic birds: a data set of bird species from the Brazilian Atlantic Forest. Ecology, v. 99, n. 2, p. 497, fev. 2018.
STEEGE, Hans ter et al. Hyperdominance in the Amazonian tree flora. Science, v. 342, n. 6156, 1243092, out. 2013.
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