Uma fauna muito, muito grande, que chamamos de Mega
Texto por Thaís Pansani
Quando se fala de Paleontologia, muitos
associam na sua imaginação automaticamente os dinossauros – não os
culpo, pois muitas das indústrias (especialmente a cinematográfica)
apostam, tradicionalmente, na imagem do T. Rex e dos pescoçudos
pra vender seus produtos e conquistar o público. Quantas histórias
contadas vocês já ouviram sobre dinos na televisão? Quantos desenhos com
alguns mais coloridos, outros mais assustadores, nos cinemas? Quantas
camisetas, canecas e até mesmo bichinhos de pelúcia? Até o nome
estegossauro é familiar. Agora, tente se lembrar de quantos filmes sobre
preguiças-gigantes você já viu no cinema? Essa é mais fácil, porque
temos o “Era do Gelo” (pra alegria dos pesquisadores). Mas e se eu te
perguntar quantas pessoas na rua você já viu com uma camiseta de
tigre-dentes-de-sabre ou quantos bichinhos de pelúcias de gliptodontes
(um tipo de tatu gigante com armadura) você já viu? Aposto que não vai
ser tão fácil agora. E se eu disser que o nome toxodonte não é tão
familiar assim (você provavelmente nunca ouviu falar nele, não é
mesmo?). Acontece que há uma história cheia de animais incríveis que
existiram (e infelizmente hoje não existem mais), que vai muito além dos
dinossauros. Nossos queridos dinos, tão popularmente conhecidos,
viveram apenas uma fraçãozinha de tempo no nosso registro geológico da
Terra, ocupando a Era Mesozoica, apenas. Eles viveram durante os
períodos Triássico, Jurássico (esse é famoso!) e Cretáceo, entre
aproximadamente 230 e 66 milhões de anos atrás. Antes e depois desse
período de tempo, temos outras eras, divididas entre muitos outros
períodos, os quais tinham as mais diversas espécies e em que ocorreram
os mais diversos eventos ecológicos, geográficos, geológicos e
ambientais. Sinto que o que falta na Ciência, são mais pesquisadores com
desejo de difundir informações sobre as espécies que estudam para o
público geral. Quem sabe assim, quando se falasse de Paleontologia,
aqueles (ainda uma porção pequena) que conhecem essa ciência passariam a
ter uma visão mais ampla sobre diversidade e evolução da vida ao longo
do tempo geológico. Não desmerecendo a importância dos dinos – nem
paleontológica nem na divulgação científica – , mas quero falar aqui de
uma outra fauna. Com alguns animais tão grandes e impressionantes quanto
os dinossauros e, o mais fascinante, tão recentes, que alguns coexistiram com as primeiras populações humanas.
Na Era Cenozoica (era atual em que
vivemos), a linhagem dos mamíferos se diversificou. Muito do seu sucesso
evolutivo se deu devido à extinção dos dinossauros, no final do período
Cretáceo (período que encerra a era anterior, a Mesozoica). Os animais
que vamos tratar aqui, são especificamente do período Quaternário, a
última subdivisão da Era Cenozoica, que se estende até a atualidade.
Porém, essa fauna incrível, que vocês estão para conhecer, apenas
permaneceu viva até o final do Pleistoceno (cerca de 11 mil anos atrás),
extinta por alguns fatores que vamos apresentar no desenrolar dessa
história.
Considera-se megafauna todo conjunto de
grandes animais. E quando digo grande, são grandes mesmo! Animais com
mais de 50 kg, 100 kg, alguns com mais de 1000 kg. Ao longo da Era
Cenozóica, uma distinta megafauna de mamíferos evoluiu independentemente
em vários cantos do planeta, ocupando os espaços ecológicos deixados
vagos pelos dinossauros. São centenas de organismos fascinantes, mas
dessa vez, eu vou apresentar um pouco sobre a fantástica megafauna
sul-americana:
A
América do Sul permaneceu muito tempo isolada ao longo da Era
Cenozoica, e isso permitiu com que animais muito estranhos e únicos
evoluíssem por aqui nesse intervalo de tempo. A megafauna endêmica de
mamíferos da America do Sul é muito específica e alguns dos seus
principais representantes foram as preguiças-gigantes, os litopternos, os gliptodontes e os pampaterídeos (vamos
conhecer mais sobre eles já já). Assim que o Ístimo do Panamá foi
formado, houve um intercâmbio de animais entre América do Norte e do
Sul, evento conhecido como “O Grande Intercâmbio Biótico Americano” ou
GIBA, para os íntimos. Durante o GIBA, alguns animais típicos da
megafauna de mamíferos endêmica norte-americana como os
tigres-dente-de-sabre, os ursos, os cavalos e os poderosos proboscídeos
vieram parar por aqui. Assim como alguns dos nossos megamamíferos
migraram para lá. Terminou, que no Pleistoceno estavam todos juntos… e
algumas espécies se perderam nesse contexto, mas isso é história para
outra postagem. Vamos nos ater à megafauna endêmica da América do Sul:
As maiores espécies de preguiça-gigante
que existiram na América do Sul podiam chegar a ter 6 metros de
comprimento e alcançar até 4 metros de altura, quando sobre duas patas.
Elas tinham garras enormes que, entre outras coisas, ajudavam na sua
proteção. Além disso, apresentavam uma pelagem espessa com pequenos
ossículos embebidos na pele, formando uma espécie de armadura. O tamanho
e o peso das preguiças-gigantes variava muito entre os gêneros. Nothrotherium,
por exemplo, podia ser considerada uma preguiça-gigante “nanica”, mas
te garanto que eram muito grandes se comparadas as ‘preguicinhas’
atuais, que vemos em cima das árvores. Falando nisso, as preguiças
gigantes eram todas terrícolas, não arborícolas! Nada de ficar de galho
em galho descansando (conseguem imaginar o tamanho de uma árvore pra
conseguir isso?). As preguiças-gigantes perambulavam pelas vegetações
abertas e podiam até fazer tocas com suas garras, seja pra descanso
temporário ou habitação. As preguiças-gigantes foram os mamíferos mais
diversificados da América do Sul (considerando tamanho, peso,
preferências alimentares, etc.), além de o grupo mais amplamente
distribuído geograficamente. Uma espécie específica, Eremotherium laurillardi,
conseguiu alcançar do sul da América do Sul ao norte da América do
Norte, sendo considerada uma espécie “pan-americana”. Pensa no sucesso
para se estabelecer em todo canto das Américas!
Eremotherium, arte de Jorge Blanco.
Algumas preguiças-gigante em escala.
Os Litopternos são bem menos conhecidos,
mas não menos interessantes. Eles eram de tamanho semelhante ao de um
camelo e pesavam cerca de 1 tonelada. Tinham o pescoço comprido, pernas
longas com três dedos e uma estranha narina entre os olhos, que levou
pesquisadores à sugerirem a existência de uma tromba, semelhante à da
anta.
Macrauchenia, um litopterno, arte de Kobrina Olga.
Sabe aquele fusca azul, que a gente não
resiste e dá um soco no coleguinha por conta de uma brincadeira
clássica? (espero que ainda conheçam essa brincadeira e eu não esteja
ficando tão velha). Ele é do tamanho de um glitptodonte, um bicho
parecido com um tatu, com uma carapaça alta, cheias de osteodermos
ornamentados, caudas robustas e garras capazes de cavar tocas que podiam
servir como abrigo, proteção contra o frio ou até mesmo esconderijo de
predadores. Na verdade, assim como as pregiças-gigantes, existiram
diversas espécies de gliptodontes!
Dois gliptodontes lutando. Arte de Peter Schouten.
Toxodontes, por sua vez, possuíam um
tamanho semelhante ao de um hipopótamo, podendo chegar a 2 metros de
altura. Tinham um crânio grande, pescoço achatado, pernas curtas, com
patas dianteiras menores que as posteriores e ouvidos na região acima da
cabeça. Viviam por vezes associados a cursos de água e, supostamente,
tinham hábito semi-aquático. Pelo que se sabe por meio do registro
fossilífero, não chegaram na América do Norte, mas conseguiam sobreviver
graças a seu hábito generalista, alimentando-se de acordo com a sua
localização geográfica.
Toxodonte. Arte de Jorge Blanco.
É incrível imaginar como a evolução
selecionou organismos tão grandes e é tão incrível que ainda se discute
na academia o que os levaram à extinção. Algumas das sugestões são:
doenças; alterações climáticas e ambientais; a relação com os seres
humanos primitivos, afetando direta (ex: pela caça) ou indiretamente
(ex: queimada e derrubada de árvores afetando seus habitats) suas
populações; ou junção de um ou mais desses fatores. Para cada
continente, atribui-se um motivo mais provável para a extinção desses
animais. No caso do sul-americano, por falta de evidências substanciais
da interação entre ser humano/megafauna no registro paleontológico
(diferente de na América do Norte, que esses indícios são bem mais
comuns), é pressuposto que variações climáticas e na dinâmica da
vegetação tenham sido os principais fatores que levaram esses organismos
à extinção. Entretanto, vale salientar que a Paleontologia é uma
ciência relativamente nova, principalmente no continente sul-americano.
Há a possibilidade de que existam evidências que ainda não investigamos
ou encontramos, por falta de cientistas trabalhando com o tema ou por
falta de exploração de novas áreas, coletas e/ou organização de dados.
Estudar a megafauna pleistocênica possui
uma série de importâncias. A começar pela compreensão da grandiosidade
que esse termo “megafauna” carrega. Estamos falando de animais de grande
porte que viveram espalhados pelo mundo todo até muito recentemente.
Esses organismos passaram por evento de extinção significativo, que
concentrou os seus únicos remanescentes atuais nas savanas africanas.
Atualmente estamos passando por um processo muito semelhante de perda de
espécies, o que significa, que estudar os efeitos da extinção desses
animais no passado pode ser muito importante. Além disso, entender a
diversidade e como eles se organizavam em comunidades pode nos ajudar a
reconstruir todo um cenário ambiental de uma determinada época e/ou de
um determinado local. Tente fechar os olhos e imaginar como era a sua
cidade há 30 anos atrás. Agora, volte um pouco mais no tempo e tente
imaginar há 300 anos atrás. 3 mil anos atrás. 30 mil anos atrás. Expanda
sua imaginação para todo seu estado ou a região. Será que o Brasil era
desse exato jeitinho, caracterizado pelas mesmas florestas e cursos de
rios e sensação térmica há 40 mil anos atrás? Um dos maiores desafios
dos paleoecólogos é reconstituir um ambiente do passado com as
informações presenteadas pelos fósseis. A partir da dieta inferida pela
análise dos dentes da maioria dos animais da megafauna, por exemplo,
conseguimos deduzir qual o tipo de vegetação que predominava no ambiente
em que este animal viveu, do que ele se alimentava, quão generalista
ele era, etc. Fechamos os olhos e conseguimos imaginar um palco em que
as cortinas se abrem e temos campos de matas abertas e clima muito mais
seco do que o atual, algo completamente diferente do que existe hoje na
Mata Atlântica, por exemplo. Onde preguiças terrícolas andavam
tranquilamente por uma vegetação mais aberta e menos úmidas e alguns
tatus-gigantes migravam em busca de comida e temperaturas mais amenas.
Conseguimos também imaginar a dinâmica das populações desses animais,
como se reproduziam ou interagiam com as outras espécies. Além disso,
conseguimos associar fatores que tenham contribuído para com que o
espetáculo de diversidade deste palco imaginário tenha sido encerrado e
estabelecer associações com o que ocorre atualmente em nossa
biodiversidade, nossas taxas de extinções e as consequências ambientais e
ecológicas que o nosso modo de vida pode e já está acarretando. Afinal,
vivemos em um constante conflito de uma nova época, que alguns
cientistas já denominam como “Antropoceno”. E que talvez possa ter um
desfecho diferente, se conseguirmos aprender com o passado.
Há muito a ser descoberto em nossas
cavernas mineiras, nossos tanques nordestinos e demais sitios
fossilíferos espalhados pelo Brasil – muitos ainda desconhecidos.
Acredito que há ainda muitas espécies a serem descritas, muitos
paradigmas a serem derrubados e conclusões que nem sequer começamos a
imaginar. Não é preciso uma distância de 100 ou mais milhões de anos
para nos sensibilizarmos com a maravilha que é um mundo que não existe
mais. Parece que foi ontem (em escalas de tempo geológico), mas o
panorama que configurava a megafauna sul-americana há pouco mais de 10
mil anos atrás foi completamente diferente do que temos hoje. E isso não
é tão apaixonante quanto imaginar grandes dinossauros? Espero que, ao
final deste texto, a resposta seja sim, e que só não se tinha esse
sentimento ainda por culpa nossa – de nós, paleontólogos, que nos
esquecemos de enaltecer as outras facetas da Paleontologia.
Sobre a autora:
Thaís
Pansani é bióloga formada pela UFSCar Sorocaba, atualmente é mestranda
em Ecologia e Recursos Naturais pela UFSCar São Carlos e trabalha com
megafauna pleistocênica sul-americana e suas relações ecológicas e
paleobiogeográficas.
Referências:
Cartelle, 1994. Tempo Passado.
Cartelle, 2000. Preguiças terrícolas, essas desconhecidas.
Ghilardi et al. 2011. Megafauna from the
Late Pleistocene-Holocene deposits of the Upper Ribeira karst area,
southeast Brazil. Quaternary International, 245: 369-378.
Oliveira et al. 2017. Quaternary mammals
from central Brazil (Serra da Bodoquena, Mato Grosso do Sul) and
comments on paleobiogeography and paleoenvironments. Revista Brasileira
de Paleontologia, 20(1):31-44.
O mastodonte e a macrauquênia
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