sexta-feira, 29 de junho de 2018

História de diversificação da linhagem dos tracajás é desvendada

Análise biogeográfica e geológica permitem a paleontólogos reconstruir a história evolutiva dos atuais tracajás amazônicos e de tartaruga que habitou o Brasil há 125 milhões de anos
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
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IMAGE: Fósseis da carapaça de pleuródiros. view more 
Credit: Gabriel Ferreira (FFCLRP-USP)
Publicado na revista Royal Society Open Science, o trabalho de um grupo de paleontólogos vinculados ao Departamento de Biologia da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, Brasil, é a mais abrangente filogenia das tartarugas pleuródiras, grupo que compreende a espécie amazônica conhecida popularmente como tracajá.

O trabalho busca evidências filogenéticas, biogeográficas e morfológicas capazes de entender como teria sido a história biogeográfica dos pleuródiros, explicando a discrepância entre a sua distribuição no registro fóssil e no mundo em que vivemos.

Os pesquisadores construíram uma nova filogenia de Pleurodira com o objetivo de contar a história evolutiva do grupo da forma mais ampla possível, de modo a revelar padrões desconhecidos da distribuição biogeográfica pregressa.

A filogenia foi construída a partir da análise matricial de 245 caracteres morfológicos, estudados em 101 espécies. "Trabalhamos numa matriz de dados morfológicos para Pleurodira incluindo espécies viventes e extintas. Essa matriz foi analisada utilizando parcimônia e com a análise obtivemos uma nova árvore filogenética de Pleurodira", disse Gabriel Ferreira, principal autor do trabalho, realizado dentro do seu doutoramento (http://bv.fapesp.br/pt/bolsas/157703 com bolsa da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP sob a orientação de Max Langer, professor da USP.
"As filogenias de pleuródiros que existiam até o momento eram parciais. Agora, com essa grande filogenia que publicamos, se busca entender melhor a evolução da linhagem ao longo das eras Mesozoica e Cenozoica", disse Langer, que coordena o Projeto Temático "A origem e irradiação dos dinossauros no Gondwana (Neotriássico - Eojurássico)", financiado pela FAPESP.

Os pleuródiros têm a particularidade de dobrar o pescoço para o lado para poder esconder a cabeça no casco. Suas dezenas de espécies estão restritas a ambientes terrestres e de água doce, não tolerando o contato com água salgada.

Atualmente, são encontrados apenas em terras do hemisfério Sul do planeta (América do Sul, África subsaariana, Indonésia, Austrália e Nova Guiné), com exceção de uma espécie isolada na Península Arábica. Todas essas terras - à parte de um trecho do arquipélago da Indonésia - faziam parte do antigo supercontinente Gondwana, que existiu entre 250 milhões e 150 milhões de anos atrás.

Hipótese vicariante

O registro fóssil de Pleurodira está presente em todos os continentes. Os mais antigos registros na América do Norte, Europa e norte da África têm entre 105 milhões e 70 milhões de anos. Na América do Norte e no norte da África, eles sobreviveram até pelo menos 35 milhões de anos atrás.
O mais antigo pleuródiro conhecido viveu no Cretáceo inferior há 125 milhões de anos, quando a África começava a separar da América do Sul. Trata-se do Atolchelys, encontrado no Nordeste do Brasil, pertencente à extinta família dos botremidídeos.
A ampliação da distribuição geográfica dos pleuródiros se deu concomitantemente à separação final da África e América do Sul, entre 105 milhões e 100 milhões de anos atrás, quando se espalharam para o norte da África e Madagascar, para a Europa, América do Norte, Oriente Médio e Índia.
Se há 100 milhões de anos Pleurodira ainda era restrita a habitats terrestres e de água doce, a abertura do Atlântico Sul teria se encarregado de afastar as populações, forçando a sua adaptação a condições diversas para, com o tempo, surgir novos gêneros e espécies.

Evidências requerem nova narrativa evolutiva

A descoberta de muitos gêneros extintos na última década escancarou lacunas na narrativa biogeográfica que a hipótese tradicional mostrou incapaz de preencher. Diferentemente de hoje, os oceanos do Cretáceo superior e do Paleógeno (já avançando na era Cenozoica) não eram um domínio exclusivo das tartarugas criptódiras. Havia também pleuródiros da extinta família dos botremidídeos, que viviam no litoral do Nordeste há pelo menos 110 milhões de anos atrás.

Naquela época, o Atlântico Sul ainda não estava totalmente aberto. Estaria mais tarde, entre 80 milhões e 66 milhões de anos atrás, quando botremidídeos ocupavam ambos os lados do Atlântico. Enquanto Inaechelys habitava o litoral do estado de Pernambuco (Nordeste do Brasil), do outro lado do ainda jovem (e por isto mesmo estreito) Oceano Atlântico viviam a portuguesa Rosasia, assim como Foxemys e Polysternon, encontradas na Espanha e na França. Um outro gênero de botremidídeo marinho, Bothremys, tinha distribuição ainda mais ampla, como indica a localização de seus fósseis em quatro estados norte-americanos, além do Marrocos e Jordânia.
O jovem Atlântico Sul pode não ter sido uma barreira formidável a impedir sua dispersão para outros continentes - pelo menos não enquanto a distância que separava América do Sul e África era relativamente curta, talvez de algumas centenas de quilômetros

"Em contraposição à hipótese tradicional, que sustenta que a distribuição atual de pleuródiros decorre de eventos vicariantes ligados à deriva continental, havia uma segunda hipótese, de que o grupo seria amplamente distribuído e sucessivas extinções acabaram por fazer com que suas linhagens ficassem restritas às áreas em que hoje são encontrados. Imaginamos então uma terceira hipótese, segundo a qual um complexo padrão de dispersões a partir de áreas gonduânicas explicaria a ampla distribuição no passado", disse Ferreira.

A nova filogenia conduz à conclusão de que Araripemys e Euraxemys - pleuródiros do Cretáceo encontrados na Chapada do Araripe (Nordeste do Brasil) pertencente a famílias extintas - eram parentes dos pelomedusóides, o grupo ancestral que deu origem às três famílias que atualmente compõem o grupo dos pleuródiros: botremidídeos, podocnemidídeos e pelomedusídeos.
Com efeito, a melhor árvore filogenética obtida indica que, durante o Cretáceo inferior quando viveram Araripemys e Euraxemys, as duas principais linhagens de pleuródiros já existiam. Eram os panquelídeos (grupo que engloba todos os quelídeos) e os panpelomedusóides (botremidídeos, podocnemidídeos e pelomedusídeos e as demais famílias extintas).
A nova árvore sugere que Atolchelys, o mais antigo pleuródiro conhecido (e o mais antigo botremidídeo), que viveu no Cretáceo inferior há 125 milhões de anos (no estado brasileiro das Alagoas), divide um ancestral comum com Araripemys e Euraxemys, que viveram há 110 milhões de anos no atual território do estado brasileiro de Ceará.
Apesar do escasso registro fóssil para o Cretáceo inferior (conhece-se meia dúzia de espécies), a nova árvore filogenética sugere que, naquele período, um grande número de linhagens de quelídeos e dos ancestrais dos pelomedusídeos já se encontravam estabelecidas.
A grande extinção do fim do Cretáceo que eliminou os dinossauros parece não corresponder a um período crítico de extinção ou diversificação dos pleuródiros. Faz sentido, dado que, entre os vertebrados terrestres, quem menos sofreu com a megaextinção foram as tartarugas.
A história biogeográfica do panpelomedusóides, em contraste, foi dominada pela ocorrência de áreas de endemismo para cada grupo, com vários eventos de dispersão para outras áreas. A exceção é a família dos pelomedusídeos, que sempre foi endêmica à África continental.
Atualmente, alguns pelomedusídeos são encontrados em Madagascar, na península arábica, no arquipélago de Seychelles e em outras pequenas ilhas, mas a ausência de registros fósseis -além de remanescentes muito escassos e fragmentários na África continental - impossibilita um relato mais detalhado da história biogeográfica dos pelomedusídeos. Os pesquisadores supõem que os panpelomedusídeos sempre estiveram restritos ao continente africano e só recentemente se dispersaram de forma transoceânica para outras áreas.
Os resultados também mostram que os ancestrais de Araripemys, Euraxemys e dos panpodocnemidídeos originalmente habitavam a África, dispersando-se para a América do Sul durante o Cretáceo inferior. Os ancestrais de podocnemidídeos permaneceram na América do Sul, enquanto os ancestrais de botremidídeos retornaram ao continente africano.
Os botremidídeos se diversificaram bastante na África, mas vários representantes se dispersaram independentemente para outras áreas: pelo menos uma vez para a Europa, Índia, Madagascar e de volta para a América do Sul, e pelo menos três vezes para a América do Norte.
Os resultados destacam a grande capacidade de dispersão dos botremidídeos, graças aos seus hábitos marinhos. Os botremidídeos foram o grupo mais bem distribuído de tartarugas pleuródiras durante o Cretáceo e o Paleoceno, quando então começaram a declinar em diversidade até sua completa extinção em torno de 50 milhões de anos atrás.
A nova árvore filogenética de pleuródiros permitiu aos pesquisadores detectar e diferenciar eventos vicariantes, eventos de dispersão e eventos fundadores ocorridos nos últimos 125 milhões de anos. As hipóteses anteriores não explicavam satisfatoriamente a distribuição dos pleuródiros ao longo do tempo.
"Nossa terceira hipótese, que presume um padrão complexo de dispersões para a América do Norte, Europa e Ásia, a partir de áreas gonduânicas (América do Sul e África) é a melhor explicação dos padrões de distribuição passados e presente", disse Ferreira.
"Além disso, percebemos que os grupos que possuíam diversidade acima do normal entre os pleuródiros eram justamente aqueles que se diversificaram em ambientes distintos, isto é, os que se tornaram tartarugas marinhas", disse.
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Sobre a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)
A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) é uma das principais agências públicas brasileiras de fomento à pesquisa. A FAPESP apoia a pesquisa científica e tecnológica por meio de Bolsas e Auxílios a Pesquisa que contemplam todas as áreas do conhecimento. Em 2016, a FAPESP desembolsou R$ 1,137 bilhão, custeando 24.685 projetos, dos quais 53% com vistas à aplicação de resultados, 39% para o avanço do conhecimento e 8% em apoio à infraestrutura de pesquisa. Saiba mais em: http://www.fapesp.br.

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