A origem das borboletas
Baseados na análise de genes e fósseis, estudos estimam que esses insetos surgiram entre 120 e 100 milhões de anos atrás
Com voo leve, formas variadas e cores em geral vistosas, as
borboletas talvez estejam entre os raros insetos que, em vez de repulsa,
despertam deslumbramento nas pessoas – exceto, claro, nas que sofrem de
motefobia. Os biólogos as adoram por uma série de razões. As borboletas
se destacam na paisagem, são fáceis de capturar e funcionam como
indicadores da saúde de um ambiente. Também permitem realizar estudos
evolutivos que tentam desvendar como elas se diversificaram tanto – há
quase 19 mil espécies atuais – e quais fatores ambientais podem ter
influenciado o surgimento de novas espécies desses insetos e de plantas e
animais com os quais interagem. Para lidar com as duas últimas
questões, há quase um século tenta-se desvendar quando surgiram as
borboletas.
Apenas nos últimos anos, os especialistas no assunto, do Brasil e do
exterior, começaram a se aproximar de uma idade mais precisa. As
primeiras borboletas, possivelmente mais parecidas com mariposas, teriam
surgido entre 120 milhões e 100 milhões de anos atrás. O trabalho mais
recente a estabelecer uma cronologia robusta para essa origem foi
publicado em janeiro deste ano na Systematic Biology por um grupo do qual participou o entomologista André Lucci Freitas, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
No estudo, os pesquisadores chegaram a uma data intermediária: 107,6
milhões de anos – mesmo assim, com uma margem de erro grande (de 130
milhões a 90 milhões de anos), comum nos estudos de filogenia desse
grupo de insetos.
“Uma dificuldade é que quase não existem fósseis de borboletas em bom
estado e com idade bem definida para indicar a data mínima de origem de
diferentes grupos e servir como ponto de referência na genealogia”,
explica Freitas. A razão para a escassez de fósseis é que eles só se
formam em condições especiais: a borboleta tem de ser aprisionada na
resina de uma árvore ou morrer em terreno lamacento e ser logo recoberta
por sedimentos, que, solidificados, preservam seu corpo ou a impressão
dele.
Construir uma árvore evolutiva até os fundadores de um grupo de
plantas ou animais é uma viagem complexa rumo ao passado. Parte-se das
espécies atuais, que são sucessivamente agrupadas de acordo com o grau
de semelhança genética e de formas externas e estruturas. A abordagem
segue o raciocínio de que, quanto mais semelhantes, mais próximas as
espécies. Segundo Freitas, foram 15 anos de trabalho para reunir os
dados apresentados no artigo da Systematic Biology.
Os
pesquisadores examinaram as características anatômicas de 994 espécies
de borboletas existentes hoje (quase 5% do total) e usaram a taxa de
alterações (mutações) acumuladas em 10 genes para agrupá-las em 39
subfamílias e, depois, em 7 famílias. Conhecida como relógio molecular, a
técnica que avalia o parentesco entre espécies a partir do ritmo de
acúmulo das mutações não é exata. Como a taxa de mutações pode variar
muito à medida que diminui a proximidade entre as espécies, os
pesquisadores usaram, sempre que possível, a idade dos fósseis para
calibrar o relógio molecular. Com essa referência externa, eles tentavam
assegurar que as informações fornecidas pelos genes tinham algum
fundamento na realidade.
O entomólogo Rienk de Jong, do Centro Naturalis de Biodiversidade, em
Leiden, Holanda, analisou os 49 fósseis conhecidos de borboleta e
selecionou os 12 mais bem conservados, que permitiam identificar a
família ou subfamília a que pertenciam e tinham idade definida com mais
segurança. Entre os escolhidos, está o mais antigo de que se tem
notícia: o de Protocoeliades kristenseni, encontrado em
sedimentos datados em 55 milhões de anos de uma ilha da Dinamarca, e
descrito por Jong em 2016. Com asas de 2,3 centímetros, esse fóssil foi
posicionado próximo ao ponto de surgimento da família Hesperiidae,
composta por cerca de 3.500 espécies de borboletas de corpo robusto e
antenas com ponta em forma de agulha de crochê.
Também foi incluído o
fóssil de Neorinella garcie, uma borboleta que viveu entre 28
milhões e 23 milhões de anos atrás. Achado em Taubaté, interior de São
Paulo, foi descrito em 1993 pelo paleoentomólogo Rafael Martins Neto e
colaboradores. Era um pouco maior do que P. kristenseni, com uma faixa mais clara e uma marca em forma de olho nas asas anteriores.
Recentemente, a equipe da entomóloga Marianne Espeland, do Museu de
Pesquisa Zoológica Alexander Hoening, na Alemanha, analisou cerca de 350
regiões gênicas de 207 espécies desses insetos. Publicados em 2018 na Current Biology,
os resultados jogavam a origem das borboletas para 119 milhões de anos
atrás. “As diferenças entre esse trabalho e o nosso não são alarmantes e
são difíceis de avaliar, já que usamos menos marcadores moleculares e
mais espécies”, relata Jong, coautor do artigo da Systematic Biology.
Para ele, o importante é que tanto o trabalho deste ano quanto o de
Marianne Espeland mantêm a filogenia proposta em 2012 pelos grupos de
Maria Heikkilä, da Universidade de Helsinque, na Finlândia, e Niklas
Wahlberg, da Universidade de Lund, na Suécia. “Isso sugere que estamos
chegando ‘perto da verdade’”, diz Jong.
Vistos em conjunto, os estudos indicam que as borboletas surgiram em
meados do Cretáceo, período geológico que durou de 145 milhões a 66
milhões de anos atrás. Nessa fase da história da Terra, alguns
supercontinentes começavam a se separar e as plantas com flores a se
diversificar. Os dinossauros dominavam a terra firme e os pterossauros
os ares. Das 39 subfamílias de borboletas atuais, oito sobreviveram à
extinção do final do Cretáceo, que eliminou os dinossauros. As demais
teriam surgido a seguir, entre 65 milhões e 50 milhões de anos atrás.
“Trabalhos como esse são fundamentais para ajudar a compreender como as
espécies foram se separando com o tempo”, comenta a entomóloga Karina
Silva-Brandão, da Universidade Federal do ABC (UFABC), que estuda a
diversificação das borboletas. “As datas que apresentam serão usadas em
outros estudos destinados a compreender as causas da especiação.”
Projeto
História natural, filogenia e conservação de lepidópteros neotropicais (nº 11/50225-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Programa Biota; Pesquisador responsável André Victor Lucci Freitas (IB-Unicamp); Investimento R$ 265.559,41.
Artigo científico
CHAZOT, N. et al. Priors and Posteriors in bayesian timing of divergence analyses: The Age of Butterflies Revisited. Systematic Biology. 25 jan. 2019.
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