domingo, 31 de outubro de 2010


Dinâmica de cianobactérias

19/10/2010
Por Fábio de Castro
Agência FAPESP – Formado pela junção de dois rios altamente poluídos – o Piracicaba e o Tietê –, o Reservatório de Barra Bonita, no interior paulista, tem seus 384 quilômetros quadrados repletos de cianobactérias, algo recorrente nesse tipo de ambiente em todo o mundo.

Por meio de diferentes processos, esses microrganismos – também conhecidos como algas azuis – liberam nas águas imensas quantidades de matéria orgânica dissolvida (MOD), que podem causar eventos indesejáveis como o assoreamento, agravando ainda mais as condições ambientais do reservatório. Por outro lado, podem também promover eventos ecológicos de interesse científico.
Com o objetivo de fundamentar a busca de soluções para esse problema, um grupo de pesquisadores da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) estudou, durante os últimos cinco anos, o destino da MOD e os processos envolvidos com sua liberação por cianobactérias naquele reservatório.

Pesquisadores da UFSCar estudam processos de liberação de matéria orgânica por cianobactérias que pode causar assoreamento. Resultados poderão ajudar a selecionar soluções para casos semelhantes (Foto: Instituto de Biociências - USP)
O estudo, realizado no âmbito de um Projeto Temático apoiado pela FAPESP, foi coordenado por Armando Augusto Henriques Vieira, do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde da UFSCar. Segundo ele, as pesquisas geraram várias publicações e suas conclusões poderão ser extrapoladas para outros reservatórios no país.
“Conhecendo o comportamento da MOD liberada pelas cianobactérias poderemos selecionar prováveis soluções para esse tipo de problema. Os resultados podem ser transpostos para outros casos, porque quase todos os reservatórios no Brasil estão poluídos e eutrofizados – isto é, têm excesso de nutrientes – e em quase todos as cianobactérias predominam”, disse Vieira à Agência FAPESP.

Segundo o pesquisador, os dois rios que formam o Reservatório de Barra Bonita estão altamente poluídos, com uma carga de esgoto industrial e doméstico que leva à eutrofização, facilitando a proliferação das cianobactérias e, consequentemente, de MOD. O aumento da biomassa presente na água leva a uma diminuição do oxigênio, provocando a morte de inúmeros organismos.

“Quando as cianobactérias morrem, elas se decompõem e liberam imensas quantidades de MOD. Descobrimos que parte dessa biomassa pode ser modificada pela radiação ultravioleta do Sol, gerando novos compostos diferentes dos que foram excretados pelos microrganismos”, disse Vieira.
Parte da MOD liberada pelas cianobactérias é reabsorvida não só por outras bactérias, mas também por diferentes organismos eucarióticos. Nessa MOD encontram-se grandes quantidades dos chamados polissacarídeos extracelulares, que podem ser utilizados como fonte de carbono e nitrogênio – já que sempre existe uma porcentagem de proteína associada aos polissacarídeos extracelulares – por populações de algumas espécies de zooplânctons.
“Medimos e quantificamos essas transformações que a matéria orgânica sofre ao longo do tempo. Avaliamos também a atividade enzimática das bactérias, identificando a quantidade e o tipo de enzimas liberadas pelas bactérias no reservatório. Atualmente estamos estudando a diversidade das bactérias que se associam à MOD de cada uma das principais espécies de cianobactérias do reservatório”, disse Vieira.
A maior parte dos dados, de acordo com o cientista, já foi publicada em revistas nacionais e internacionais. O estudo também gerou diversas teses e dissertações com abordagens específicas sobre a atividade das cianobactérias.
“Surgiram diversos problemas interessantes e agora vamos partir para a análise de todos os compostos identificados. Com os dados que reunimos até o momento vamos publicar um livro de divulgação, que será uma síntese de todas as pesquisas”, adiantou Vieira.
Estudando as enzimas e os açúcares presentes na água, os pesquisadores aprofundaram o conhecimento sobre a dinâmica do fluxo de matéria orgânica.

“Alguns polissacarídeos são liberados pelas cianobactérias em estado coloidal, transformando-se em agregados gelatinosos que se grudam continuamente com detritos e outras espécies, formando uma espécie de biofilme flutuante que se torna cada vez maior e no qual há crescimento de bactérias”, afirmou.
Esse processo, segundo o professor, interfere no fluxo vertical da MOD em direção ao fundo do reservatório. "Certas espécies, como algumas diatomáceas, utilizam esse processo como uma maneira para afundar, mantendo-se em ambientes onde o tempo de residência das águas é baixo  – como ocorre em pequenos reservatórios  –, evitando que elas sejam 'lavadas' para fora do reservatório", disse.
Reações solares
A ação da radiação solar sobre o processo de formação da MOD, segundo Vieira, foi um dos aspectos mais surpreendentes do estudo. “Achávamos que a radiação solar aumentaria o ataque bacteriológico sobre a MOD. Mas descobrimos que o processo de radiação e o processo bacteriológico competem entre si”, disse.
Os pesquisadores achavam inicialmente que a MOD acumulada em grandes quantidades seria prontamente atacada por bactérias e transformada em CO2 e que, portanto, apenas uma pequena parcela dessa matéria orgânica dissolvida seria transportada.
“Como o ambiente é turbulento, há uma intensa mistura das águas, fazendo com que a MOD na superfície seja constantemente renovada e exposta à radiação ultravioleta do Sol. Achávamos que essa radiação facilitaria a quebra de moléculas e a decomposição da matéria orgânica. Mas o que ocorre é o contrário: grande parte dessas moléculas se transforma em compostos refratários ao ataque bacteriológico  – ou seja, inibe o ataque de bactérias. A síntese desses compostos se daria por condensação em moléculas maiores e por transformações diretas em compostos refratários por degradação”, explicou.
O impacto ambiental causado pelo acúmulo de cianobactérias é muito grande, de acordo com Vieira. Em torno das barragens, acumulam-se as chamadas manchas verdes, formadas pela exposição das bactérias ao Sol. Nesses locais e nessas condições, as cianobactérias envelhecidas morrem, liberando então grande quantidade de MOD, acompanhada de toxinas que, devido à proximidade dos vertedouros, são exportadas a jusante do reservatório.
"Além disso, o acúmulo de cianobactérias diminui a diversidade de peixes. Até há poucos anos era possível encontrar em grande quantidade, na região de Barra Bonita, peixes como trairão, piranha, lambari e outros. Hoje, eles não são encontrados com facilidade e alguns nem existem mais. Apenas as tilápias predominam”, disse Vieira.

Peixe vivo

O simpático peixe-boi marinho já foi considerado extinto da costa brasileira. Trinta anos depois do início dos trabalhos de recuperação da espécie, ele volta a nadar em mares calmos.

Por Sérgio Túlio Caldas
Foto de Luciano Candisani
Peixe vivo Por viver em águas rasas e iluminadas, o corpo desse mamífero marinho facilita a fixação de algas. Tão grande quanto dócil, o peixe-boi pode ter 4 metros de comprimento e 600 quilos. Seu nome em português provém de sua dieta vegetariana: plantas aquáticas.


São raros os dias em que os jangadeiros do povoado de Lages, em Alagoas, voltam para casa sem comentar que avistaram um peixe-boi nadando livre nas águas tranquilas do rio Tatuamunha. Até mesmo um ou outro filhote brincalhão, acompanhado da mãe, já foi observado no estuário seguindo em direção ao mar. Há três décadas, porém, cenas como essas eram inimagináveis. Naquela época, os cientistas consideravam o peixe-boi marinho (Trichechus manatus manatus) extinto da fauna brasileira. E a maior parte dos moradores daquela faixa do litoral alagoano nem sequer tinha ouvido falar desse rechonchudo mamífero aquático, capaz de chegar a vistosos 4 metros de comprimento e 600 quilos de peso.

As águas que correm limpinhas pelo Tatuamunha estão protegidas hoje por leis federais. O rio integra a Área de Proteção Ambiental da Costa dos Corais, a maior unidade de conservação marinha do país - seus 135 quilômetros de extensão (entre as cidades de Tamandaré, em Pernambuco, e Paripueira, em Alagoas) abrigam manguezais e recifes naturais de ponta a ponta, favorecendo a oferta generosa de nutrientes à fauna marinha. A região foi palco de uma experiência inédita em 2010: a reintrodução na natureza de três filhotes de peixe-boi, com pouco mais de 2 anos de vida. "É a primeira vez que espécimes de cativeiro seguem para o seu ambiente natural", conta a bióloga Fábia Luna, que participou do trabalho. "Eles permanecerão em um cercado no Tatuamunha, e só serão soltos caso se adaptem à vida selvagem." Nascidos no oceanário da sede do projeto que há 30 anos começou a recuperar a espécie no Brasil, na ilha pernambucana de Itamaracá, os filhotes representam uma esperança para a conservação. Os cientistas sabem que cada peixe-boi mantido vivo é um passo importante para a continuidade da espécie que, no passado, foi abundante no litoral brasileiro. Agora, há apenas cerca de 500 deles, limitados a faixas descontínuas nos litorais do Nordeste e do Norte, de Alagoas ao Amapá.

Reintroduzir um animal na natureza, especialmente quando ele corre perigo de extinção, é uma atividade de risco. Há 11 anos acompanhei uma das operações que se tornaria a mais dramática na história do projeto. Aparecida, uma fêmea achada à beira da morte na Paraíba, e que tivera a saúde recuperada em Itamaracá, seria devolvida à natureza na praia de Lages.

O trajeto de 200 quilômetros, da sede ao local da soltura, foi tenso. A bordo da carroceria de um caminhão e acomodada em uma piscina forrada de colchões umedecidos, Aparecida teve a frequência cardíaca e a temperatura medidas a cada minuto pelos tratadores. Seu corpanzil de 2,5 metros recebia camadas de óleo vegetal e borrifos d'água. Todo o monitoramento acontecia sob a fraca luz de lanternas, já que a viagem começara às 3 horas da madrugada para se evitar o sol inclemente do Nordeste. Desde o dia anterior, porém, a fêmea estava sob intenso estresse. Fora pesada e medida, tivera o sangue coletado e recebera marcas de identificação na cauda, além do radiotransmissor. Só no finalzinho da tarde, ela foi solta - havia mais de 36 horas que os pesquisadores e eu não pregávamos os olhos. Quatro dias depois, recebi um telefonema que golpeava o sucesso daqueles esforços. Aparecida teria mordido uma bomba não detonada no fundo do mar, tornando-se assim mais uma vítima da proibida e cruel pesca com explosivos.

A notícia de que peixes-boi ainda resistiam na costa do país veio à tona em 1980, quando os oceanógrafos José Catuetê (falecido em 1987) e Guy Marcovaldi faziam um estudo de campo sobre a situação das espécies marinhas no país. Foi uma descoberta alarmante. Tanto que, no mesmo ano, nasceria o Projeto Peixe-Boi Marinho - hoje um dos mais bem-sucedidos programas de conservação da vida selvagem no Brasil.

A seguir, no início dos anos 1990, o oceanógrafo Régis Pinto de Lima, ex-chefe do projeto, viajou desde o norte da Bahia até o rio Oiapoque, no Amapá, em uma unidade móvel apelidada de Igarakuê (na língua indígena tupi-guarani, "peixe-boi"). Ao longo de 26 meses, mais de 300 comunidades foram visitadas, com atividades de educação ambiental. Muita gente aprendeu, por exemplo, a reconhecer o peixe-boi e a comunicar à sede os casos de encalhe. Desde então, 63 filhotes órfãos já foram resgatados, e apenas 13 deles não resistiram ao socorro. Do restante, 26 foram soltos, 14 estão em reabilitação e dez formam o plantel permanente, que pode ser visitado pelo público nos oceanários em Itamaracá.

Dócil e fácil de avistar no mar ou nos rios, o peixe-boi foi caçado à exaustão até tornar-se o mamífero aquático mais ameaçado do país. Seu desaparecimento gradual teve início no século 16, quando foi abatido aos montes para a retirada de carne, couro e óleo fartos, embarcados nos navios que retornavam à Europa. A pesca indiscriminada não cessou durante séculos. Nos últimos tempos, surgiu mais um problema: a devastação dos mangues, seu berçário e uma das principais fontes de alimentação da espécie.

Glutão e herbívoro, o peixe-boi come, por dia, entre 8% e 13% de seu peso. Para tanto, passa de seis a oito horas contínuas nessa atividade, se satisfazendo entre algas, capim-agulha e folhas de mangue. Só interrompe o processo de alimentação a cada 15 minutos para subir à superfície e respirar. A comida é coletada com a ajuda dos lábios móveis, adaptados para pegar chumaços de plantas. Os vegetais marinhos são duros e, para mastigá-los, o bicho se vale de um sistema de placas rígidas situadas nas partes superior e inferior da boca. "Embaixo d'água é possível ouvi-lo triturando o capim e as algas", me disse certa vez o fotógrafo Luciano Candisani, após voltar de um mergulho na costa alagoana.

Quando sente sede, o animal procura os rios para beber um pouco de água doce. Ali, onde também há mangue, aproveita para comer mais folhas. Estudos realizados na barra de Mamanguape, na Paraíba, comprovam que os estuários junto aos mangues são muito procurados pelas fêmeas grávidas. São perfeitos para dar à luz, já que os litorais do Norte e do Nordeste brasileiros costumam ser abertos, com correntes e ventos fortes. A cada gestação, com duração média de 13 meses, nasce apenas um só filhote. E o pequeno peixe-boi irá desmamar apenas após os 2 anos de idade. Assim, a mãe não terá outra cria num período de pelo menos três anos.

Não bastassem a baixa taxa reprodutiva e as pressões sobre seu hábitat, a espécie convive com outra ameaça: a queda de sua variabilidade genética. Chegou-se a essa conclusão com base em análises de DNA realizadas nos laboratórios da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Uma vez que há poucos bichos livres na natureza, é frequente o acasalamento entre parentes próximos. "A consanguinidade os torna ainda mais vulneráveis a doenças e a alterações climáticas", explica a bióloga Fábia Luna. O estudo avaliou o DNA do peixe-boi marinho e o do peixe-boi-da-amazônia (Trichechus inunguis), outra espécie encontrada no Brasil. Sua população, que habita as águas doces da floresta tropical, apresenta maior variabilidade genética.

Com tais estudos, no futuro os pesquisadores poderão planejar melhor as solturas na natureza. "Animais com maior variabilidade genética serão libertados onde há maior ocorrência de cruzamentos entre parentes", diz Fábia. Ela e outros pesquisadores estão trabalhando em parceria com a Universidade da Flórida e o Projeto Sirenia, nos Estados Unidos, para esquadrinhar a condição genética do peixe-boi marinho em todo o Brasil enquanto o grupo americano mapeia as populações da espécie no mundo.

Em agosto, quando os três filhotes seriam soltos no Tatuamunha, levei minhas filhas Julia, de 12 anos, e Camila, de 10, para ver o peixe-boi em seu hábitat. Nossa jangada, que deslizava entre os manguezais, foi acompanhada durante minutos pelo macho Arani. Com a cabeça fora d'água, ele apoiou as nadadeiras na embarcação, exibindo os olhinhos apertados enquanto abria e fechava os tampões das narinas para respirar. "Que fofo!", se surpreenderam as meninas.

Não haveria adjetivo melhor para definir aquele bicho de 300 quilos e ares de bonachão, cujo carisma aos poucos conquistou os moradores dos vilarejos litorâneos - eles se tornaram aliados do programa conservacionista. O alagoano Jilvan Fortunato, o "Caraveia", é um ex-pescador que ingressou como monitor no projeto, na década de 1990. Sem nunca ter visto o animal antes, aprendeu a se aproximar dele e a fixar em sua cauda um radiotransmissor para monitoramento remoto. Hoje desligado do programa, Caraveia está à frente de uma ONG voltada à preservação de praias, rios e matas de um trecho da Costa dos Corais, onde mora com a família. "Minha vida é o peixe-boi", me conta ele, ao avistar, na foz do estuário, o "velho" Aldo, um exemplar que quase morreu encalhado numa praia do Ceará, mas, após ser reabilitado, vive solto na região desde 1998. "Não há nada melhor do que navegar pelo Tatuamunha e topar com um peixe-boi bem gordo. Em liberdade."
Fonte: National Geographic Brasil


Grandes migrações

Fome? Desejo de procriar? As razões e o sentido dos espetaculares deslocamentos de fauna na América do Norte

Por David Quammen
Foto de Joel Sartore
Grandes migrações No passado, dezenas de milhões de bisões vagavam pelas Grandes Planícies em busca de pastagens. No fim do século 19, a maioria havia sido dizimada. Os 500 mil bisões remanescentes se encontram em cativeiro, como estes, em Dakota do Sul

As migrações dos animais são um fenômeno bem mais grandioso e mais estruturado que um simples deslocamento no espaço. Elas representam uma viagem coletiva cuja recompensa só muito depois pode ser usufruída pelos participantes. Também sugerem premeditação e obstinação em escala épica, codificadas pelos cientistas como "instinto herdado". O biólogo Hugh Dingle assinalou cinco características que se aplicam, em diversos graus e combinações, a todas as migrações. Elas são deslocamentos que conduzem os animais para longe de seus hábitats; tendem a ser feitas em linha reta, não em ziguezague; envolvem comportamentos especiais (como superalimentação), antes de seu início e à chegada; requerem alocações especiais de energia. E, além disso, os migradores exibem comprometimento com uma missão maior, que os deixa invulneráveis às tentações no caminho e os leva a enfrentar desafios que fariam desistir outras espécies. 

Uma andorinha-do-mar-ártica que parte do Alasca rumo à Terra do Fogo, por exemplo, ignora o cheiro dos arenques oferecidos por um observador de aves em seu barco na baía de Monterey. As gaivotas aproximam-se para devorar esse festim imprevisto, mas as andorinhas-do-mar prosseguem imperturbáveis em sua jornada. Por que é assim? "Os animais migradores não reagem a estímulos sensoriais de recursos que provocariam reações imediatas em outras circunstâncias", é a explicação árida e cautelosa proposta por Dingle. Em termos mais simples: essas criaturas estão empenhadas em chegar o mais rápido possível a seu destino. Outra maneira, menos científica, seria dizer que a andorinha resiste a todas as distrações porque naquele momento está sendo impelida por uma percepção instintiva de algo que nós, seres humanos, consideramos admirável: um propósito maior.

A andorinha-do-mar-ártica intui que pode se alimentar mais tarde. Pode descansar mais tarde. Pode se acasalar mais tarde. Mas agora seu foco implacável está na viagem: seu único objetivo é chegar logo ao destino. Alcançar algum litoral pedregoso no Ártico serve a esse propósito mais amplo, tal como foi moldado pela evolução: encontrar um lugar, um momento e um conjunto de circunstâncias em que possa assegurar que seus filhotes eclodam dos ovos e sobrevivam.

Esse processo é tão complexo quanto versátil, e cada biólogo o define de uma maneira. Joel Berger, que pesquisa a antilocabra e outros mamíferos terrestres de grande porte, adota o que considera uma definição simples e prática: "Deslocamento de uma área que lhes serve de abrigo sazonal para outra com a mesma função e vice-versa". Em geral, o motivo desses movimentos de ida e volta sazonais é a busca de recursos que não são encontrados o ano todo na mesma área. Por outro lado, também podemos considerar como migração os deslocamentos verticais diários do zooplâncton no oceano - na coluna d'água, eles sobem à noite em busca de alimento e descem durante o dia para escapar aos predadores. Assim como a movimentação dos filhotes de pulgões que, uma vez esgotadas as folhas novas de uma planta alimentícia, voam em seguida até outra planta hospedeira, e nenhum pulgão jamais retorna ao ponto de onde partiu.

Hugh Dingle, perito em insetos, propõe uma definição mais intricada que a de Berger, citando aquelas cinco características (persistência, linearidade, concentração inabalável, comportamentos específicos anteriores à partida e à chegada e armazenamento de energia) que distinguem a migração de outras formas de deslocamento. Por exemplo, os pulgões tornam-se sensíveis à luz azul (do céu) quando chega o momento de partir em sua jornada, e ficam sensíveis à luz amarela (refletida pelas folhas novas) quando é hora de pousar. As aves costumam engordar de propósito com uma superalimentação antes de iniciar um longo voo migratório. A conveniência dessa definição, argumenta Dingle, é que chama atenção ao que há de comum entre o fenômeno dos gnus e grous-canadenses e o dos pulgões, ajudando a orientar os pesquisadores a um entendimento de como todos esses fenômenos são resultantes da evolução por meio da seleção natural.

A migração das cascavéis nas Grandes Planícies do oeste do Canadá é um exemplo peculiar mas esclarecedor. Dennis Jørgensen, um jovem biólogo canadense, pesquisou os deslocamentos da cascavel-da-pradaria (Crotalus viridis viridis) nas cercanias da cidade de Medicine Hat, na província de Alberta, perto do limite setentrional de seu âmbito, e constatou que as épocas migratórias mais intensas das serpentes ocorrem na primavera e no outono. Em média, a viagem de ida e volta de seus animais tinha 8 quilômetros, embora um estudo anterior tivesse detectado cascavéis se deslocando por até 53 quilômetros. No Arizona, por outro lado, elas não precisam percorrer distâncias tão grandes. A lógica por trás das migrações locais tem a ver com as temperaturas baixas no inverno (sempre incômodas aos répteis) e à escassez de bons locais para se entocar e sobreviver ao período de hibernação.

"Não existem muitas tocas que possam assegurar a sobrevivência delas durante o inverno nessa região", conta Jørgensen. Uma toca ideal deve ficar nas profundezas do solo, onde a terra é quente, mas ser acessível desde a superfície, através de túneis ou fendas naturais. Tais refúgios são raros e distantes uns dos outros. "Por causa disso, o que vemos são grandes aglomerados de serpentes em tocas comunitárias." Imagine uma massa enroscada de um milhar de serpentes, amontoadas, sossegadas e reluzentes em seu refúgio subterrâneo, todas esperando pelos primeiros sinais da primavera. Quando sobe a temperatura na superfície e é transposto um limiar determinado, elas deixam a toca e ficam por um tempo tomando sol. Mas as cascavéis também estão famintas. E o que fazem em seguida? Elas se dispersam a fim de encontrar alimento e se acasalar. Por isso migram de maneira radial - em todas as direções possíveis a partir da toca -, como fogos de artifício em formato de estrela.

Jørgensen usou pequenos transmissores de rádio, implantados cirurgicamente, para mapear essa dispersão, rastreando as rotas individuais de 28 cascavéis diferentes no decorrer de 2004 e 2005. Em um esplêndido dia de verão, ele me leva a uma dessas tocas, no barranco inclinado à beira do rio Saskatchewan Sul. No barranco havia profundas frestas subterrâneas nas quais cerca de 60 cascavéis passaram o inverno. Da margem do rio seguimos em direção a um terreno mais elevado e começamos a refazer a rota migratória de um dos animais estudados, uma fêmea que ele identificara com a letra E.

Não muito longe dali há três afloramentos rochosos arredondados e musgos, com um buraco na parte inferior. Em 8 de maio, a cascavel E chegara ali, diz Jørgensen, onde descansou, tomou sol, só retomando a jornada em 27 de maio. Ela subiu esse íngreme socalco (assim como nós), por entre os arbustos de artemísia e a lama cinza, e depois deslizou e desceu pela encosta, cruzou essa estrada de terra, atravessou essa ravina úmida cheia de varas-de-ouro e sumagreiras (abrimos caminho através delas) e refez a escalada. De volta ao topo do socalco, nos esgueiramos entre pedaços de arame farpado e adentramos uma plantação irrigada com pivôs centrais. O ar do meio-dia, quente e espesso, cheira como peixe assado em forno.
 Após cruzar duas plantações em um único dia, a corajosa senhora E então preferiu o caminho mais seguro ao longo de uma cerca, onde a vegetação rasteira era mais densa e jamais perturbada por discos de arado ou por lâminas de ceifadeira. No fim de junho, ela estava avançando 200 metros por dia, ainda acompanhando a cerca, em meio a uma mixórdia de pedras, ervas e tocas de roedores. Nessa altura, Jørgensen e eu paramos à sombra de um choupo para descansar. Em uma caminhada de quatro horas, que nos deixou empapados de suor, havíamos percorrido oito semanas de migração de uma cascavel.

Essa foi a área na qual E passara boa parte daquele verão, acasalando-se ao menos uma vez e alimentando-se de roedores para aguentar a volta para casa, a passagem de outro inverno enfurnada na toca e o período de gravidez. Era um hábitat produtivo mas perigoso, com todos os equipamentos agrícolas que podiam fatiar uma serpente como se ela fosse uma abobrinha e o intenso tráfego de veículos rurais. As mudanças sofridas por essa paisagem não favoreciam os deslocamentos das cascavéis por longas distâncias. Então, naquele momento, como se fosse a personificação de todas essas mudanças na memória de um único ser humano, Aldo Pederzolli surge com seu quadriciclo motorizado.

Pederzolli é o dono daquelas terras e havia acolhido com prazer a pesquisa de Jørgensen. Com 80 anos, estava em excelente forma física. Quando somos apresentados, e ele sabe o motivo da minha presença ali, diz: "Simplesmente adoro as cascavéis". Não está sendo irônico. Com uma quantidade suficiente de boas serpentes, acrescenta, não é preciso se preocupar com os esquilos. Em sua juventude, recorda Pederzolli, costumava ver cascavéis velhas gordas, com um diâmetro assim, toda vez que semeava um campo maninho. Mas agora não topa mais com cobras tão grandes. Havia uma toca perto do rio, comentou pensativo, e elas se deslocavam por 10 quilômetros até uma área de pradaria cheia de esquilos. Agora não tem mais nada disso.

Embora seja só uma hipótese, Dennis Jørgensen desconfia que a seleção natural - nesse caso, a morte das mais aventureiras - pode estar levando as cascavéis a abandonar o comportamento migratório e adquirir hábitos mais sedentários.

Biodiversidade biológica é mais que mera variedade de espécies. Também são relevantes a diversidade dos ecossistemas, os comportamentos e os processos que conferem complexidade, beleza, robustez, flexibilidade e interconectividade às comunidades vivas do planeta. O fim das longas migrações empreendidas por algumas espécies seria uma perda lamentável. Isso foi salientado por Joel Berger tanto em relação às espécies migradoras de todo o mundo como a uma criatura mais próxima dele: a antilocabra (Antilocapra americana), o único mamífero ungulado endêmico na América do Norte.

Muitas vezes a antilocabra é confundida com o antílope, mas na verdade pertence a uma família distinta. Sua velocidade extrema (é o mais veloz mamífero terrestre do Novo Mundo), suficiente para escapar a qualquer dos predadores da América do Norte, reflete uma adaptação para fugir do extinto guepardo do Pleistoceno. Além disso, a antilocabra também percorre longas distâncias. Uma de suas populações migra centenas de quilômetros através das Grandes Planícies, entre a região centro-norte do estado de Montana até o sul das províncias canadenses de Saskatchewan e Alberta. Outra população segue uma estreita e tênue rota entre o seu âmbito estival no Parque Nacional Grand Teton, passando por um divisor de águas nas cabeceiras do rio Gros Ventre, e descendo até as planícies ao sul de Pinedale, em Wyoming, na bacia do rio Green. Ali as antilocabras se juntam a milhares de outras recém-chegadas de Wyoming, tentam se manter distantes dos poços de gás natural e das equipes de prospecção e enfrentam os meses frígidos.

As antilocabras do Grand Teton são notáveis pela rota invariável de sua migração e pelos gargalos que ela apresenta em três pontos críticos, conhecidos como Trappers Point (Ponto dos Caçadores), Red Hills (Colinas Vermelhas) e Funnel (Funil). Se não conseguirem passar por esses três gargalos durante a migração da primavera, as antilocabras não têm acesso à abundância de nutrientes das pastagens de verão no Parque Nacional Grand Teton; e, se não conseguirem atravessar de novo esses pontos no outono, rumando ao sul até as planícies ventosas, correm o risco de morrerem tentando sobreviver ao inverno no vale de Jackson Hole ou então de ficarem presas nas neves profundas do divisor de águas. Em um dia claro de novembro, na companhia da bióloga Renee Seidler, vou conhecer de perto os detalhes do dilema enfrentado pelas antilocabras.

Renee lida com questões relativas aos hábitats nos campos de gás que proliferam entre Pinedale e Rock Springs, uma área que recebe e mantém cerca de 20 mil antilocabras a cada inverno. No topo de um morro em Trappers Point, há uma placa informando que os caçadores de peles e os membros dos povos indígenas Nez Perce e Crow se reúnem ali para fazer trocas. Olhando para baixo, veem-se as manifestações modernas de crescimento e comércio: a rodovia 191 e o povoado de Cora Junction. Ali há meia centena de casas, trailers e outros edifícios, entre os quais um salão de reuniões de testemunhas de jeová, tudo aninhado em uma trama regular de ruas e travessas, quintais cercados, cães, galinhas, pneus velhos, barcos sobre trailers e um Chrysler verde enferrujado da década de 1940. Bem por ali, diz Renee, apontando para um intervalo nas moitas de artemísia, é o local pelo qual provavelmente tem de passar a maioria das antilocabras.

Seguimos cerca de 30 quilômetros ao norte por uma estrada secundária, acompanhando as várzeas com salgueiros do trecho superior do rio Green e reconhecendo a rota migratória. As antilocabras, dependentes da visão a distância e da velocidade para se manter a salvo dos predadores, não gostam de várzeas com salgueiros, explica Renee. Também não gostam de mata fechada, e é por isso que preferem atravessar por essas áreas elevadas e abertas entre o rio e os bosques, pois assim podem ver ao longe e correr se necessário. Em seguida alcançamos um local onde morros com florestas se erguem em ambos os lados do rio, formando um V suave e deixando um corredor de terreno desimpedido com apenas 150 metros de largura. "Este é o Funnel", diz Renee. É um terreno particular, recortado de caminhos, cercas e os portões em arco de gente rica o bastante para ter uma casa de veraneio na cabeceira do rio Green.

Outra cerca, mais uma casa, um ou dois cães latindo poderiam fazer diferença para pior. E é a mesma situação tanto no Trappers Point como aqui no Funnel: o aumento das atividades humanas está criando as condições para uma crise nas migrações das antilocabras, ameaçando bloquear seu caminho para o Grand Teton.

Os cientistas peritos em conservação, como Joel Berger, assim como os biólogos e técnicos do Serviço de Parques Nacionais e outros órgãos oficiais, estão empenhados em preservar não só as espécies e os hábitats mas também o comportamento migratório dos animais. A Floresta Nacional Bridger-Teton já reconheceu a rota das antilocabras do Grand Teton, boa parte da qual passa por florestas nacionais, como o primeiro corredor migratório protegido em âmbito federal. Porém, nem o Serviço Florestal nem o Serviço Nacional de Parques dos Estados Unidos podem controlar o que ocorre nos gargalos situados em terrenos particulares ou mesmo nas áreas sob a alçada do Departamento de Administração de Terras e que abrigam os campos de prospecção de gás ao sul de Pinedale. E, no caso de outras espécies migradoras, não são menores as dificuldades - devido a maior quantidade de jurisdições, divisas e perigos ao longo do caminho.

Imagine, por exemplo, que você é um grou-canadense-menor (Grus canadensis canadensis), iniciando sua migração de primavera no sudoeste do Texas. Talvez tenha de sobrevoar um canto dos estados do Novo México e Oklahoma, e depois Kansas, Nebraska, Dakota do Sul, Dakota do Norte (em quase todos é permitida a caça aos grous), atravessando a fronteira com o Canadá e entrando na província de Saskatchewan. Depois teria que desviar para nordeste através de Alberta e Colúmbia Britânica, passando pelo território de Yukon e por todo o Alasca, até por fim cruzar o estreito de Bering e chegar às áreas de reprodução no nordeste da Rússia. Seria uma viagem de 8 mil quilômetros. Ao longo do caminho, você precisaria descansar e alimentar-se, entre outros locais, no rio Platte, em Nebraska, perto do vilarejo de Kearney. Nesse caso, você teria companhia. Cerca de 500 mil grous a caminho do norte fazem escala ali todos os anos.

E lá permanecem por duas, três, às vezes quatro semanas. Alguns seguem adiante à medida que outros chegam, mantendo a quantidade média de grous, nos meses de março e abril, em torno de 300 mil indivíduos. Eles pernoitam nos baixios com correntes suaves do rio Platte, com os calcanhares mergulhados na água fresca, ou então nos bancos de areia, onde podem notar com antecedência a aproximação de qualquer eventual predador. Toda manhã alçam voo em ondas imensas e graciosas e vão aos campos próximos, onde passam os dias recolhendo restos de cereais que sobraram das colheitas, assim como minhocas e outros invertebrados. Essa escala prolongada não é exceção na concentração inabalável dos animais migradores, tal como definida por Hugh Dingle; é parte integral da programação, repetida por gerações de grous. Durante a parada, um grou-canadense-menor de 2,75 quilos acrescenta cerca de 700 gramas de gordura a seu peso. (O grou-canadense-maior, outra subespécie também vista no rio Platte, é mais pesado.) Essa gordura é essencial para que as aves completem a travessia entre Nebraska e a Rússia. Portanto, elas dependem do hábitat dessa escala - os baixios, os bancos de areia, a segurança, os cereais e os invertebrados - para que possam concluir seu árduo ciclo anual.

Ao observar esse hábitat, numa manhã no fim de março, vejo onda após onda de grous levantar voo do rio. Cada grupo eleva-se sem jeito da água, readquirindo sua elegância à medida que as asas se firmam no ar e depois se põem em formação e partem decididos em busca do alimento diário. Ao mesmo tempo, comunicam-se uns com os outros por meio de um trinado chiante característico. Há talvez 60 mil grous apenas no campo de visão de meu binóculo. É um espetáculo de extraordinária riqueza.

Eu também havia testemunhado o retorno dos grous, em um fim de tarde anterior, quando pousavam no rio durante o crepúsculo e se acomodavam nos baixios onde passariam a noite. Mas achei as revoadas matinais mais emocionantes. Talvez porque as aves, ao raiar do dia, partiam com um objetivo preciso, e não estavam apenas voltando para descansar - afinal, tinham de ganhar peso para enfrentar outro longo trecho de seu périplo. Esse os conduziria a uma região na qual poderiam se multiplicar em segurança. Seus esforços prodigiosos, sua resistência a distrações teriam como resultado novas cortes de grous-canadenses, ampliando e rejuvenescendo a espécie. Quase escrevi "perpetuando a espécie", mas não, disso não podemos ter certeza. Nada do que vive é perpétuo.

O que pude ver, sobrevoando o Platte, foram a sabedoria acumulada e o caráter decisivo da evolução. Se nós, seres humanos, pudermos alcançar a mesma sabedoria e convocar a mesma decisão, talvez sejamos capazes de permitir que eles continuem em sua jornada por mais um tempo.
Fonte: National Geographic Brasil


Grandes migrações - As manadas perdidas no sul do Sudão

A guerra civil do Sudão acabou em 2005. E com a paz veio a boa nova de que a região sul do país ainda fervilha de animais africanos emblemáticos.

Por Mathew Teague
Foto de George Steinmetz
Grandes migrações - As manadas perdidas no sul do Sudão Os elefantes levantam a cinza de uma queimada nas terras do Sudd. Tais incêndios, muitas vezes ateados por pastores, ressaltam uma nova ameaça à fauna silvestre: a perda de habitats.


Na cidade de Juba, em um velho edifício colonial com paredes rachadas e fornecimento de eletricidade intermitente, dois ex-militares - o tenente-general Fraser Tong e o major-general Philip Chol Majak - estão explicando a situação. "Bandos organizados, com por volta de 50 homens, costumam vir montados em cavalos", conta Tong. "Estão se concentrando nos elefantes e nos grandes mamíferos com casco. Com a carne fazem charque, guardam o marfim e levam embora tudo em camelos."

 Tong é o subsecretário responsável pela fauna silvestre no sul do Sudão, e seu gabinete fica em Juba, a capital dessa região semiautônoma. Um de seus funcionários graduados é Majak, que comanda as operações em campo e cuja unidade militar ficou famosa por derrubar jatos MiG com lançadores portáteis de mísseis durante a última guerra civil no país, que teve início em 1983. Cinco anos atrás, um acordo pôs fim ao conflito, mas Majak já está empenhado em um novo combate. "Precisamos proteger esses animais", diz ele.

É perceptível o sentimento de urgência em sua voz. Como todos no sul do Sudão, ele mantém um vínculo profundo com a fauna. É um vínculo mais arraigado do que podem achar os forasteiros, pois, durante gerações, assaltantes vindos de outras partes buscaram ali dois outros recursos: escravos e marfim. As pessoas e os elefantes tiveram destinos parecidos, quase intercambiáveis, sendo arrebanhados nas mesmas incursões.

Tal ligação consolidou-se ainda mais durante a guerra civil. Em meio às explosões de bombas e minas, os indivíduos que não fugiram para os países vizinhos tiveram de buscar refúgio no mato. E o mesmo fizeram os elefantes e outros animais migradores. Eles tornaram-se outras vítimas deslocadas pela guerra. Os animais mais sedentários - como os búfalos e as girafas - foram quase todos dizimados. Os soldados abatiam e comiam os animais, mas seguiam regras: não atiravam nos machos e procuravam restringir o volume de caça de modo que nenhuma espécie se extinguisse. Como a guerra se arrastou por muito tempo e quando enfim cessaram as hostilidades, ninguém sabia quantos animais haviam sobrado nem quantos voltariam à região.

Dois anos depois, três indivíduos - o biólogo americano Paul Elkan, que dirige o programa da Wildlife Conservation Society (WCS) no Sudão, J. Michael Fay, também vinculado à WCS, e Malik Marjan, oriundo do Sudão meridional - sobrevoaram inúmeras vezes a região, contabilizando os animais pela primeira vez depois de décadas. "Foi algo assombroso", lembra-se Elkan. "Três quartos de milhão de antílopes cob-comuns. Quase 300 mil gazelas Mongalla. Mais de 150 mil antílopes tiang. Seis mil elefantes."

Os levantamentos aéreos realizados pela WCS foram desde então ampliados, visando a monitoração dos animais, dos rebanhos e da atividade humana em boa parte do Sudão meridional. Pouco tempo atrás, Elkan seguiu em seu Cessna para o norte de Juba, acompanhando o Nilo Branco, e depois voando para leste. Durante horas sobrevoamos terras intocadas, onde rios surgem na estação das chuvas e na seca os incêndios florestais alastram-se sem controle. "É uma das maiores savanas intactas na África", avalia Elkan.

O biólogo aponta o bico do avião na direção de uma manada de antílopes. Algumas espécies quase desapareceram - é possível que apenas cinco zebras tenham escapado à sanha dos caçadores -, mas, à sombra do plátano, uma leoa se aproximava das gazelas. Viam-se pegadas de elefantes em marcha para o horizonte.

Pousamos em um campo de terra em Nyat, perto da fronteira com a Etiópia, onde chefes de povoados próximos haviam se reunido para saber a respeito dos projetos de conservação da fauna. Elkan anuncia-lhes uma novidade: o governo do sul do Sudão proibira a caça. Um dos chefes ergue a mão: "E o que vamos comer?"

Há muita diferença, responde Elkan, entre um homem que sai de sua choça pela manhã carregando uma lança - como ocorre ali há milhares de anos - e um caçador armado de fuzil automático que abate os bichos para vender a carne. "Os guardas-florestais podem fazer vista grossa à caça de subsistência feita longe dos principais corredores de migração da fauna silvestre", diz Elkan. Mas a caça com fins comerciais deve parar.

A WCS e o governo americano estão colaborando com as autoridades locais, visando a criação de uma área delimitada de quase 200 mil quilômetros quadrados - dois parques nacionais, uma reserva de fauna, concessões para exploração petrolífera e terras comunitárias. Se for bem administrada, essa região, com a sua abundância de animais selvagens, vai atrair turistas, gerando assim uma atividade econômica inédita.

Os sudaneses meridionais travaram uma longa e sangrenta guerra para assegurar sua autonomia. Agora os animais - seus companheiros sobreviventes - também merecem desfrutar da paz.

Publicado em 11/2010
Fonte: National Geographic Brasil 


Jane - 50 anos em Gombe

Em 1960, uma jovem intrépida e sem educação científica montou acampamento para observar chimpanzés na Reserva de Caça Gombe Stream, na Tanganica, atual Tanzânia. Hoje o nome de Jane Goodall é sinônimo de conservação, e inspira um dos mais longos e pormenorizados estudos de uma espécie na natureza.

Por David Quammen
Foto de Martin Schoeller
Jane - 50 anos em Gombe Jane Goodall

Na manhã de 14 de julho de 1960, ela chegou a uma praia pedregosa na costa leste do lago Tanganica. Foram seus primeiros passos na então chamada Reserva de Caça Gombe Stream, uma pequena área protegida que o governo colonial britânico havia demarcado nos idos de 1943. Trazia uma barraca, pratos de flandres, uma caneca sem asa, um binóculo tosco, um cozinheiro africano chamado Dominic, e - como acompanhante, por insistência de pessoas que temiam por sua segurança na selva da Tanganica pré-independente - sua mãe. Vinha estudar os chimpanzés. Ou pelo menos tentar. Quem não a conhecia bem apostava em seu fracasso. Mas uma pessoa, o paleontólogo Louis Leakey, que a recrutara para a tarefa em Nairóbi, acreditava que ela podia ter êxito.

Um grupo de moradores acampados na praia perto de redes de pesca recebeu os recém-chegados e os ajudou a descarregar o equipamento. Por volta das 5 da tarde, alguém anunciou ter visto um chimpanzé. "Lá fomos nós", escreveu Jane depois em seu diário. Foi só um vislumbre distante, vago. "Ele se afastou quando alcançamos o bando de pescadores que o fitava. Escalamos a encosta, mas não o vimos mais." Apesar disso, ela registrou um amontoado de ramos curvados e amassados numa árvore próxima: um ninho de chimpanzé. Esse dado, o primeiro ninho, foi o ponto de partida de uma saga, ainda em andamento e completando agora 50 anos, que viria a ser uma das mais importantes da biologia moderna: o contínuo e minucioso estudo do comportamento dos chimpanzés de Gombe, empreendido por Jane Goodall e outros.

A história da ciência registra alguns dos grandes momentos e detalhes icônicos dessa saga, fascinante como um conto de fada. A jovem senhorita Goodall não tinha credenciais científicas quando começou nem ao menos diploma universitário. Era uma brilhante e motivada inglesa, formada em secretariado, que sempre amara os animais e sonhava em estudá-los na África. Provinha de uma família de mulheres fortes, pouco dinheiro e homens ausentes. Suas primeiras semanas em Gombe foram atribuladas, tateando à procura de uma metodologia, perdendo tempo por causa de uma febre que provavelmente era malária, caminhando muitos quilômetros pela selva montanhosa e avistando poucos chimpanzés. Finalmente, um macho idoso, de barbicha grisalha, deu-lhe uma chance - fez um hesitante e surpreendente gesto de confiança. Jane batizou-o de David Greybeard (David, o Barba Grisalha). Em parte graças a ele, Jane fez três observações que abalaram as confortáveis certezas da antropologia física: chimpanzés comem carne (presumia-se que fossem vegetarianos), usam ferramentas (talos de planta para pescar cupim no ninho) e as fabricam (removendo as folhas do caule), sendo esta última uma característica supostamente única da premeditação humana. Foi um avanço enorme na pesquisa científica: cada uma dessas descobertas reduziu ainda mais a diferença percebida entre a inteligência e a cultura do Homo sapiens e do Pan troglodytes.

A observação sobre a confecção de ferramentas era a mais revolucionária das três e causou furor entre os antropólogos, pois uma definição quase canônica da nossa espécie era "homem, o fabricante de ferramentas". Louis Leakey vibrou com a notícia de Jane e escreveu a ela: "Agora vamos ter de redefinir ‘ferramenta’, redefinir ‘homem’ ou aceitar os chimpanzés como seres humanos". Essa frase memorável marcou uma nova fase, fundamental em nossa concepção, do que constitui a essência humana. Outro aspecto interessante a lembrar é que essas três descobertas mais celebradas, independentemente de trazerem mudanças de paradigmas, foram todas feitas por Jane durante seus quatro primeiros meses em campo. Ela decolou rápido.

O mais extraordinário em Gombe, porém, não é o fato de Jane Goodall ter "redefinido" a espécie humana, e sim ter instituído um novo padrão, muito superior, ao estudo do comportamento de grandes primatas na natureza: a ênfase nas características individuais tanto quanto nas coletivas. Jane criou um programa de estudo, um conjunto de protocolos e princípios éticos, um foco intelectual - na prática, ela estabeleceu uma relação entre o mundo científico e uma comunidade de chimpanzés. O projeto Gombe ampliou-se em muitas dimensões, atravessou crises, evoluiu em função de objetivos que nem ela nem Louis Leakey haviam antevisto e por fim adotou métodos (mapeamento por satélite, endocrinologia, genética molecular) e abordou questões que nos levam muito além do campo do comportamento animal. Por exemplo: técnicas de análise molecular, aplicadas a amostras de fezes e urina que podem ser coletadas sem a necessidade de capturar e manusear os animais, trazem revelações sobre as relações genéticas entre os chimpanzés e a presença de germes patogênicos em alguns deles. Uma dilacerante ironia, contudo, ronda o coração desse triunfo da ciência em seu cinquentenário: quanto mais aprendemos sobre os chimpanzés de Gombe, mais razões temos para nos preocupar com sua sobrevivência.

Duas revelações nos últimos tempos, em especial, são inquietantes. Uma envolve a geografia; a outra, doenças. A mais querida e mais bem estudada população de chimpanzés do planeta está isolada em uma ilha de hábitat que é pequena demais para sua viabilidade no longo prazo. E, pior, agora parece que uma versão símia da aids está matando alguns dos primatas de Gombe.

A questão do método de estudo dos chimpanzés e do que se pode inferir das observações de seu comportamento absorve Jane desde o início da carreira. Começou a ganhar foco depois de sua primeira temporada em campo, quando Louis Leakey lhe anunciou sua próxima ideia brilhante: conseguir para Jane admissão em um programa de PhD em etologia na Universidade de Cambridge.
O doutorado parecia despropositado em dois sentidos. Primeiro, Jane não tinha diploma universitário. Segundo, ela sempre desejara ser naturalista ou talvez jornalista - jamais cientista. "Eu nem sabia o que era etologia", me disse Jane pouco tempo atrás. "Demorou até eu descobrir que significava simplesmente o estudo do comportamento." Aceita em Cambridge, ela viu-se em conflito com as certezas então prevalecentes em sua área de estudo. "Fiquei chocada quando me disseram que eu tinha feito tudo errado. Tudo." Jane já tinha 15 meses de dados de campo, a maior parte coletada à custa de paciente observação de indivíduos que ela conhecia pelos apelidos, como David Greybeard, Mike, Olly e Fifi. Essa personificação foi malvista em Cambridge; atribuir individualidade e emoção a animais não humanos era antropomorfismo, não etologia. "Lembrei-me de meu primeiro professor na infância, que me ensinou que isso não era verdade", conta ela. Seu primeiro professor fora seu cachorro, Rusty. "É impossível compartilhar a vida de modo significativo com qualquer tipo de animal dotado de cérebro razoavelmente bem desenvolvido e deixar de perceber que eles têm personalidade." Ela transgrediu a visão predominante - transgredir é uma característica de Jane - e, em 9 de fevereiro de 1966, tornou-se doutora Jane Goodall.

Em 1968, a reserva de caça também se graduou, tornando-se o Parque Nacional Gombe, na Tanzânia. Na época, Jane recebia subvenção da National Geographic Society. Era esposa, mãe e famosa, graças em parte a seus artigos para a revista e a sua bela presença em um filme para televisão, Miss Goodall and the Wild Chimpanzees. Para conseguir verba e dar continuidade a seu acampamento em Gombe, ela o transformou em uma instituição, o Centro de Pesquisa Gombe Stream (GSRC, na sigla em inglês). No início dos anos 1970, ela começou a receber pesquisadores - estudantes e pós-graduados - para ajudá-la na coleta de dados dos chimpanzés e em outros estudos em Gombe. Sua influência sobre a primatologia moderna, trombeteada aos quatro ventos por Leakey, é mais discretamente indicada pela longa lista de ex-alunos de Gombe que mais tarde se destacaram nos meios científicos, entre eles Richard Wrangham, Caroline Tutin, Craig Packer, Tim Clutton-Brock, Geza Teleki, William McGrew, Anthony Collins, Shadrack Kamenya, Jim Moore e Anne Pusey. Esta última, hoje titular na cátedra de antropologia evolucionária da Universidade Duke, é também diretora do Centro de Estudos de Primatas do Instituto Jane Goodall (fundado em 1977). Uma de suas tarefas é zelar pelos 22 abarrotados arquivos de dados de campo - cadernos, páginas de diários e listas de verificação, alguns em inglês, outros em suaíli -, produto de 50 anos de estudos de campo em Gombe.

Essa jornada de cinco décadas sofreu uma traumatizante interrupção. Na noite de 19 de maio de 1975, três jovens americanos e uma holandesa foram sequestrados por soldados rebeldes que haviam atravessado o lago Tanganica vindos do Zaire. Os quatro reféns acabaram sendo libertados, mas já não parecia prudente o Centro de Pesquisa Gombe Stream receber pesquisadores estrangeiros - como Anthony Collins me explicou.

Collins era na época um jovem biólogo britânico interessado em babuínos, a outra espécie de primata na berlinda em Gombe. Além de seus estudos, há quase 40 anos ele continua a exercer funções administrativas no Instituto Jane Goodall e no próprio GSRC. Collins recorda aquele 19 de maio de 1975 como "o dia em que o mundo mudou, no que diz respeito a Gombe". Os pesquisadores estrangeiros não puderam mais trabalhar em Gombe; a própria Jane precisou de uma escolta militar durante alguns anos. "O lado positivo foi que a responsabilidade pela coleta de dados passou diretamente, no dia seguinte, aos pesquisadores tanzanianos", diz ele. Cada um deles havia recebido no mínimo um ano de treinamento em coleta de dados, mas ainda trabalhavam, em parte, como rastreadores: ajudavam a localizar os chimpanzés, identificar plantas e garantir que os mzungu (brancos) voltassem em segurança ao acampamento antes de escurecer. Depois do sequestro, os tanzanianos deram um passo à frente "e o bastão foi passado a eles", diz Collins. Hoje o chefe dos pesquisadores de chimpanzés em Gombe é Gabo Paulo, que supervisiona as observações de campo e a coleta de dados, feitas por Methodi Vyampi, Magombe Yahaya, Amri Yahaya e outros 20 tanzanianos.

Conflitos humanos que transbordavam dos países vizinhos não foram as únicas calamidades que afetaram Gombe. A política dos chimpanzés também teve suas violências. A partir de 1974, a comunidade Kasekela (principal alvo dos estudos em Gombe) desferiu uma série de ataques sangrentos contra um subgrupo menor, batizado de Kahama. Esse período de agressões, conhecido nos anais de Gombe como Guerra dos Quatro Anos, causou a morte de alguns indivíduos, a aniquilação do subgrupo Kahama e a anexação de seu território pelos kasekelas. Enquanto as lutas entre machos pela posição alfa são políticas e físicas, entre as fêmeas foram registrados casos de mães que mataram o bebê de uma rival. "Quando cheguei a Gombe", escreveu Jane, "pensava que os chimpanzés fossem mais gentis que nós. O tempo me desenganou. Eles podem ser tão terríveis quanto os seres humanos."

Gombe nunca foi um éden. Doenças também causaram estragos. Em 1966 ocorreu um surto de uma moléstia virulenta (provavelmente pólio, contraída de seres humanos) e seis chimpanzés morreram. Outros seis ficaram paralíticos. Dois anos depois, David Greybeard e mais quatro primatas sumiram, vitimados por algum germe do aparelho respiratório (influenza? pneumonia bacteriana?). Mais nove chimpanzés morreram, no começo de 1987, de pneumonia. Esses episódios, que refletem a suscetibilidade dos chimpanzés a patógenos trazidos pelos seres humanos, ajudam a explicar a grande preocupação dos cientistas de Gombe com o tema das doenças infecciosas.

Essa preocupação aumentou com as mudanças na paisagem fronteiriça do parque. Ao longo de décadas, o povo dos vilarejos vizinhos esforçou-se para levar uma vida comum - cortando lenha e plantando nas encostas íngremes, queimando o mato durante a estação seca para obter cinza fertilizante. Mas, no começo dos anos 1990, o desmatamento e a erosão haviam transformado o Parque Nacional Gombe numa ilha ecológica, cercada em três lados pelo impacto humano e no outro pelo lago Tanganica. Nessa ilha viviam apenas uns 100 chimpanzés. Por todos os critérios da biologia conservacionista, isso não basta para constituir uma população viável no longo prazo - não garante sua sobrevivência contra os efeitos negativos da endogamia nem quando vier
o ataque do próximo vírus perigoso. Era preciso fazer alguma coisa, Jane concluiu, além de continuar o estudo de uma benquista população de grandes primatas que podia estar condenada. E era preciso fazer algo também pelas pessoas, não só pelos chimpanzés.

Em uma cidade próxima, ela conheceu George Struden, um agricultor nascido na Alemanha, e com ele criou o projeto Educação e Reflorestamento da Bacia do Lago Tanganica (Tacare, na sigla em inglês), cuja primeira iniciativa, em 1995, foi a construção de três viveiros em 24 vilarejos. Os objetivos eram reverter o desmatamento das encostas, proteger as vertentes nos povoados e talvez, por fim, religar Gombe a trechos de mata fora do parque, ajudando os moradores a plantar árvores. Existe uma pequena população de chimpanzés em um retalho de floresta chamado Kwitanga, a 16 quilômetros de Gombe. Uns 80 quilômetros a sudeste, um ecossistema conhecido como Masito-Ugalla sustenta mais de 500 desses primatas. Se qualquer uma dessas áreas pudesse ser conectada a Gombe por corredores reflorestados, os chimpanzés seriam beneficiados com o aumento do fluxo gênico e das populações. Por outro lado, poderiam ser prejudicados por doenças contagiosas.

De qualquer ângulo, vencer esse desafio é quase impossível. Com cautela e paciência, Jane e sua equipe alcançaram alguns êxitos alentadores nos aspectos de cooperação da comunidade, diminuição das queimadas e regeneração da floresta natural.

Na segunda manhã da minha visita a Gombe, em uma trilha não muito acima da casa em que Jane viveu de tempos em tempos desde os anos 1970, encontro um grupo de chimpanzés. Os animais perambulam pela encosta em busca do café da manhã. Eles deslocam-se sobretudo no chão, mas ocasionalmente sobem em alguma árvore do gênero Vitex para comer frutinhas roxas. Parecem indiferentes à minha presença e a dos pesquisadores tanzanianos. Entre eles há alguns indivíduos cujos nomes, ou pelo menos a história familiar, são conhecidos. Lá estão Gremlin (filha de Melissa, que era uma jovem fêmea quando Jane chegou), Gaia, filha de Gremlin (com um bebê agarrado ao pelo), Golden, irmã mais nova de Gaia, Pax (filho do famigerado canibal Passion) e Fudge (filho de Fanni, neto de Fifi, bisneto de Flo, a querida matriarca de nariz feioso, famosa por figurar nos primeiros livros de Jane). Lá está também Titan, um macho de 15 anos, grandalhão. As regras do Parque Nacional Gombe mandam que não nos aproximemos de nenhum chimpanzé, mas em geral o difícil é impedir que eles se aproximem de nós. Quando o robusto Titan vem andando todo confiante pela trilha em nossa direção, nos esprememos nas laterais e deixamos que o fanfarrão passe a centímetros de nós. Depois de toda uma vida de familiaridade com pesquisadores humanos inofensivos munidos de cadernos e folhas de verificação, nossa presença lhe causa o maior tédio.

Outro reflexo da despreocupação deles: Gremlin defeca na trilha não muito longe de nós, e depois Golden faz o mesmo. Quando eles se afastam, um pesquisador chamado Samson Shadrack Pindu calça luvas amarelas de látex, pega uma pequena pá de plástico e vai até o local. Agacha-se, recolhe um bocado do excremento esverdeado e fibroso de Gremlin e o transfere para um tubo de amostra. Registra nele a hora, a data, o local e o nome de Gremlin. O tubo contém um líquido estabilizador chamado RNAlater, que preserva qualquer RNA (por exemplo, o de um retrovírus) para análises genéticas posteriores. Esse tubo, e outros como ele, representando uma amostra fecal mensal do maior número possível de chimpanzés, irá para o laboratório de Beatrice Hahn na Universidade do Alabama em Birmingham. Há dez anos ela estuda o vírus da imunodeficiência símia em Gombe.

O vírus da imunodeficiência símia dos chimpanzés, tecnicamente conhecido como SIVcpz, é o precursor e a origem do HIV-1, o vírus responsável pela maioria dos casos de aids no mundo (há também o HIV-2). Apesar do nome, nunca fora constatado que o SIVcpz houvesse causado danos ao sistema imunológico de chimpanzés selvagens, até que os conhecimentos de genética molecular da doutora Beatrice encontraram os dados de observações de longos períodos em Gombe. Pensava-se que o SIVcpz fosse inócuo aos chimpanzés, e essa suposição levara à questão de como ou por que ele causava uma pandemia letal entre os seres humanos. Será que umas poucas mutações fatídicas teriam transformado um inofensivo vírus de chimpanzé em assassino de seres humanos? Essa perspectiva teve de mudar depois da publicação de um artigo na revista Nature em 2009. Seu principal autor é Brandon F. Keele (que na época trabalhava no laboratório de Beatrice) e entre os coautores estão Beatrice Hahn e Jane Goodall. O artigo de Keele informava que chimpanzés SIV-positivos em Gombe apresentavam entre dez e 16 vezes mais risco de morte em determinada idade que os chimpanzés SIV-negativos. E três carcaças de chimpanzes SIV-positivos tiveram seus tecidos examinados (em laboratório, em nível molecular) e mostraram sinais de danos análogos aos da aids. Ou seja: uma doença semelhante à aids parece estar matando os chimpanzés de Gombe.

De todos os laços, características em comum e semelhanças que ligam nossa espécie à deles, essa revelação talvez seja a mais inquietante. "É assustador saber que os chimpanzés parecem estar morrendo mais cedo", me diz Jane. "Há quanto tempo isso está ocorrendo? De onde vem? Como afeta outras populações?" Pelo bem da sobrevivência dos chimpanzés de toda a África, essas questões demandam estudos urgentes.

Essa funesta descoberta também pode ser imensamente importante à pesquisa da aids em seres humanos. Anthony Collins ressalta que, embora o SIV seja encontrado em comunidades de chimpanzés de outras áreas, "nenhuma delas é uma população em estudo, habituada a observadores humanos, e nenhuma nos deu informações genealógicas ininterruptas por tanto tempo nem é tão dócil que nos permita obter amostras de cada indivíduo todo mês". E acrescenta: "É muito triste que o vírus esteja aqui, mas isso pode nos trazer conhecimento. E compreensão".

Os avançados métodos da genética molecular trazem mais que medonhas revelações sobre doenças. Eles também nos dão a empolgante capacidade de investigar alguns antigos mistérios sobre a dinâmica social e a evolução dos chimpanzés. Por exemplo: quem são os pais em Gombe? A maternidade é óbvia, e as íntimas relações entre mães e bebês foram bem estudadas pela própria Jane, além de Anne Pusey e outros. Mas, como as fêmeas tendem a se acasalar promiscuamente com vários machos, é bem mais difícil determinar a paternidade. E a questão de identidade paterna relaciona-se a outra: como a competição entre os machos por status na hierarquia - toda aquela espalhafatosa demonstração de valentia para obter e manter a posição de macho alfa - se correlaciona com o êxito reprodutivo? Uma jovem cientista, Emily Wroblewski, analisou o DNA de amostras fecais coletadas pela equipe de campo e chegou a uma resposta. Ela concluiu que os machos de posição mais elevada realmente têm mais filhos - mas os machos subalternos também não se saem nada mal. A estratégia consiste em investir na relação: passar um período exclusivo como casal, viajar na companhia da fêmea e acasalar-se - o mais das vezes com uma fêmea das mais jovens, que são menos desejáveis.

Jane previra essa conclusão duas décadas antes, com base em dados de observação. "O macho que consegue iniciar e manter uma relação de parceria com uma fêmea fértil", escreveu ela, "provavelmente tem mais chance de ser pai do filho dela do que teria na situação grupal, mesmo se ele fosse o alfa."

Imperativos maiores impeliram Jane a encerrar sua carreira como bióloga de campo em 1986. Desde então, ela atua como defensora e conferencista itinerante, uma mulher movida por um sentimento de missão pública. Que missão? Sua primeira causa, nascida de seus anos em Gombe, foi melhorar o péssimo tratamento infligido aos chimpanzés mantidos em laboratórios de pesquisas médicas. Combinando firmeza e indignação moral com sua simpatia e disposição para interagir com afabilidade, ela conseguiu alguns acordos favoráveis. Também fundou santuários para chimpanzés que podem ser libertados do cativeiro, entre eles muitos órfãos que perderam a mãe para a caça. Esse trabalho despertou sua preocupação com a conduta humana em relação a outras espécies. Ela criou um programa que incentiva jovens do mundo todo a militar em projetos para despertar o interesse pelos animais, o meio ambiente e a comunidade humana. Durante esse período, ela tornou-se exploradora associada da National Geographic Society. Atualmente, passa cerca de 300 dias por ano na estrada, dando inúmeras entrevistas e palestras em escolas, fazendo conferências, conversando com autoridades, angariando fundos para mover as engrenagens do Instituto Jane Goodall. De vez em quando foge para alguma floresta ou pradaria, talvez com alguns amigos, para observar chimpanzés, grous-canadenses ou furões, e restaurar sua energia e sanidade.

Cinquenta anos atrás, Louis Leakey mandou-a estudar os chimpanzés, por achar que o comportamento deles poderia lançar alguma luz sobre os ancestrais humanos, seu tema de estudo. Jane desconsiderou essa parte da incumbência e estudou os chimpanzés por si mesmos, pelo interesse que eles mereciam, por seu valor. Ao longo do caminho, criou instituições e oportunidades que frutificaram no trabalho de outros cientistas, e foi um luminoso exemplo pessoal que atraiu jovens à ciência e ao conservacionismo. Vale lembrar que o significado de Gombe, depois de meio século, é maior que a vida e o trabalho de Jane Goodall. Mas não se engane: a vida e o trabalho dela foram grandiosos.

3 tempos no mar do Japão

As águas nas ilhas japonesas variam entre frias, temperadas e tropicais. Mas a vida marinha é sempre extraordinária.

Por Juli Berward
Foto de Brian Skerry
3 tempos no mar do Japão Um cardume de peixes-morcego procura petiscos de plâncton perto da superfície no mar subtropical das ilhas Bonin. A cor turquesa permeia a água no fim de tarde, quando os raios vermelhos do sol se dispersam e incidem com meios de intensidade


A luz do sol escoa por fendas no gelo. Os blocos mais grossos, cravejados de algas, fulguram em verde-esmeralda. Os personagens desse reino gelado começam a aparecer: uma lesma azul, um peixe róseo cuja cauda lembra um leque de gueixa, um peixe com espinhos alaranjado saído de um episódio de Pokémon.




É esse o mundo submarino à espera do fotógrafo Brian Skerry. De roupa de mergulho seca e 14,5 quilos de lastro, ele se arrasta pela praia na orla da cidade pesqueira de Rausu, no nordeste do Japão, até calçar as nadadeiras e submergir o rosto devagar para se acostumar com a água a -1,7ºC. Seus lábios adormecem. De câmera em punho, Skerry mergulha entre as banquisas, camadas superficiais de gelo no mar de Okhotsk, que contorna a península Shiretoko.

Muitos imaginam o Japão como um compacto aglomerado de grandes ilhas, mas, se olharmos o mapa, a ideia é bem outra. O território japonês abrange 2,4 mil quilômetros e contém mais de 5 mil ilhas. Essa vasta comunhão de terra e oceano abriga três ecossistemas distintos. No gélido norte, gigantescos caranguejos-rei e águias-do-mar com asas de 2 metros de envergadura frequentam os mares da remota península Shiretoko. Nas frescas águas centrais da península Izu e da baía Toyama, a poucas horas de carro dos arranha-céus de Tóquio, enxameiam lulas cintilantes e crescem florestas de coral mole. No cálido sul, peixes-borboleta e tubarões-touro compartilham recifes de coral nas ilhas Bonin.

As correntes oceânicas são essenciais a essa diversidade marinha. Elas banham a costa japonesa a temperaturas que variam entre -1°C e 30°C. As correntes também trazem ao país dois recordes mundiais. A poderosa Kuroshio impele água quente para o norte, permitindo que recifes de coral prosperem onde normalmente não seriam encontrados. A corrente oriental de Sakhalin atrai a água fria do norte na direção do Japão, ajudando a fazer da península Shiretoko o ponto mais meridional com gelo marinho no inverno.

Essas correntes controlam mais que a temperatura da água. Também transportam vida marinha por longas distâncias. "A costa vulcânica do Japão é toda rendilhada de angras", diz Robert van Woesik, do Instituto de Tecnologia da Flórida. Em ilhas cercadas de recifes de coral, as lagunas "agem como luvas de beisebol, apanhando larvas de coral e peixes".

Como em tantas partes dos oceanos do planeta, esses ecossistemas estão em risco. O Japão aterra suas lagunas para que a construção civil tenha mais terras a ocupar. Quando isso ocorre, larvas de peixes, corais e caranguejos passam direto, sem se fixar.

Por ora, a comunidade de seres oceânicos está florescendo. Quando Brian Skerry emerge das águas geladas, dá graças pela casa de chá na praia. Livra-se do equipamento, aquece-se tomando sopa de missô e observa a neve cair. Enquanto isso, lá no mar, o peixe "pokémon" cor de laranja nada, e o gelo verde resplandece.

Publicado em 11/2010
Fonte: National Geographic Brasil 

sábado, 30 de outubro de 2010

Amazônia: uma nova espécie é descoberta a cada três dias

Meio ambiente - 27/10/2010
As últimas pesquisas científicas sobre a Amazônia mostraram que o bioma é um dos lugares mais biodiversos do planeta, abrigando cerca de 10% das espécies conhecidas em todo o mundo. No entanto, o relatório "Amazônia Viva! Uma década de descobertas: 1999-2009", divulgado nesta terça-feira, 26 de outubro, na COP10, pela ONG WWF, pretende provar que o bioma possui muito mais espécies da fauna e flora do que imaginamos.
O estudo, realizado por cientistas de todo o mundo, acompanhou, de perto, a dinâmica da Amazônia entre os anos de 1999 e 2009 e descobriu mais de 1.200 novas espécies de plantas e animais vertebrados no bioma durante este período. Ou seja, uma nova espécie a cada três dias, totalizando:
- 637 novos tipos de plantas;
- 257 espécies inéditas de peixes;
- 216 novos tipos de anfíbios;
- 55 espécies inéditas de répteis;
- 39 novos tipos de mamíferos e
- 16 espécies inéditas de aves.
Entre todos os novos exemplares da fauna e flora amazônica apontados pelo relatório, os cientistas elegeram algumas espécies como "descobertas valiosas" para a biodiversidade. Na classe dos répteis, por exemplo, a serpente Eunectes beniensis chamou a atenção dos pesquisadores, já que desde 1936 não haviam registros de uma nova espécie de sucuri no mundo. Já na classe dos mamíferos, um novo tipo de boto-cor-de-rosa, o Inia boliviensis, causou alvoroço entre os cientistas, já que a última espécie desse animal foi encontrada no século retrasado, em 1830. (Conheça as 5 espécies classificadas, pela WWF, como "descobertas valiosas" na galeria de imagens do Planeta Sustentável)

BIOMA RICO, MAS AMEAÇADO

Ao divulgar o relatório, a WWF pretende mostrar ao mundo - e, principalmente, aos líderes mundiais que discutem o futuro da biodiversidade até o dia 29 de novembro, na COP10, em Nagoya - que as consequências da destruição da Amazônia podem ser ainda piores do que se imagina, já que, claramente, o bioma abriga muito mais riquezas naturais do que temos conhecimento.
De acordo com a ONG, nos últimos 50 anos, o homem destruiu, pelo menos, 17% da floresta tropical úmida da Amazônia - o que equivale ao dobro da área da Espanha, por exemplo - para investir em modelos econômicos não-sustentáveis de produção de carne, soja e biocombustíveis. A situação compromete não só a biodiversidade do bioma catalogada pelos cientistas, mas também todas as espécies que ainda não temos conhecimento.

Uma das soluções defendidas pela WWF para que os países amazônicos possam preservar a biodiversidade do bioma é a criação de um sistema completo e eficaz de áreas protegidas na Amazônia, já que muitas das espécies descobertas na última década e listadas no relatório da ONG foram encontradas nas redes de proteção do bioma. A iniciativa está sendo discutida, em Nagoya, pelos representantes de governo que estão reunidos na COP10.

Veja o relatório "Amazônia Viva! Uma década de descobertas: 1999-2009", na íntegra e em português.
Por Mônica Nunes e Débora Spitzcovsky/Planeta Sustentável

Aplicativo identifica espécies de aves da Mata Atlântica

Meio ambiente - 28/10/2010
Aplicativo identifica espécies de aves da Mata Atlântica A prática de birdwatching, que já é bastante popular na Europa e nos EUA, está ganhando cada vez mais adeptos no Brasil e, para acompanhar esse novo movimento que acontece no país - e, inclusive, tem tudo a ver com a preservação da natureza -, o Planeta Sustentável está lançando o aplicativo Aves do Brasil - Mata Atlântica, que funciona como uma guia digital para leigos e profissionais que vão a campo observar aves.
"Nosso objetivo é cobrir a rica biodiversidade brasileira de forma lúdica e com muita informação em uma nova plataforma. Com isso, esperamos atingir não só o mercado brasileiro, mas também o americano e o europeu, grandes seguidores da prática de bird watching.", conta Matthew Shirts, coordenador do Planeta Sustentável e redator-chefe da revista National Geographic, que está em Nagoya, no Japão, acompanhando as negociações da Conferência da Biodiversidade - COP10. "Tive o prazer de mostrar, na Conferência, o aplicativo para James P. Leape, diretor geral do WWF - World Wildlife Fund, nossa parceira nesse emprendimento. Ele adorou!".
O app cataloga 345 tipos de pássaros - a partir de ilustrações e textos do respeitado autor de guias de campo para birdwatching Tomas Sigrist -, permitindo que os usuários identifiquem, rapidamente, as principais espécies que vivem no bioma Mata Atlântica e que são, constantemente, observadas pelos birdwatchers em reservas florestais, parques e, até mesmo, em praças e quintais, localizados no meio da cidade.
A identificação pode ser feita por uma série de critérios, como nome, taxonomia da família e características físicas. Os usuários do aplicativo ainda têm a oportunidade de armazenar e compartilhar, via Twitter ou Facebook, as fotos das aves observadas e, também, registrar o local e horário em que o pássaro foi avistado, contribuindo, assim, para pesquisas científicas sobre o animal.
Compatível com iPod Touch e iPhone, o app já está disponível para download, em português. A versão completa, que pode ser baixada por US$ 6,99, traz informações a respeito das 345 aves e terá parte de sua renda revertida para a ONG WWF. Quem quiser experimentar o aplicativo antes de comprá-lo, pode adquirir a versão grátis, com 30 aves.
O aplicativo Aves do Brasil - Mata Atlântica também está no Facebook e no Twitter, onde, constantemente, são postadas informações e fotos a respeito dos pássaros do bioma. Confira!
Por Mônica Nunes e Débora Spitzcovsky/Planeta Sustentável
Foto: Novo aplicativo Aves do Brasil - Mata Atlântica, do Planeta Sustentável - Crédito: divulgação

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Colisão indica que cratera na Lua tem água e prata

22/10/2010
Agência FAPESP – Mais segredos da Lua acabam de ser revelados graças não a astronautas ou veículos robotizados em contato com a superfície do satélite. Dessa vez, a novidade vem mais de baixo, cortesia de um foguete lançado pela Nasa, a agência espacial norte-americana, para se chocar contra uma cratera.
A missão Lunar CRater Observing and Sensing Satellite (LCROSS) teve duas partes. Inicialmente, o estágio superior e vazio de um foguete atingiu a cratera Cabeus, próximo ao polo sul lunar, em outubro de 2009. Foi seguido por um segundo veículo que analisou os fragmentos ejetados pelo impacto.
A proposta era procurar por água e verificar do que mais é composto o subsolo naquele ponto supergelado, algo nunca antes tentado. Resultados da missão, que se mostrou bem-sucedida, acabam de ser publicados em cinco artigos na edição desta sexta-feira (22/10) da revista Science.
Colisão indica que cratera na Lua tem água e prata
Foguete lançado pela Nasa para se chocar em cratera lunar revela segredos da composição do satélite, descritos em artigos na Science (divulgação)

Em um dos artigos, Peter Schultz, da Universidade Brown, e colegas descrevem que a nuvem levantada pelo choque mostrou que o solo e o subsolo lunar são mais complexos do que se estimava. Não apenas contém água, mas diversos outros compostos, como monóxido de carbono, dióxido de carbono, hidroxila, amônia, sódio e até mesmo prata.
Os elementos químicos presentes nos grãos do rególito lunar – o manto de detritos que cobre a superfície – fornecem pistas sobre sua origem e como foram parar nas crateras polares, muitas das quais não veem a luz do Sol há bilhões de anos, estando entre os pontos mais frios do Sistema Solar.
Segundo o artigo, os compostos voláteis podem ter se originado dos impactos de cometas, asteroides e meteoroides que castigaram o satélite terrestre durante bilhões de anos. Os compostos depositados no rególito podem ter sido liberados pelos impactos ou serem resultantes do aquecimento pela luz solar, que forneceu a energia suficiente para que se deslocassem até os polos, onde permaneceram presos em frígidas crateras.
O impacto do foguete produziu um buraco com cerca de 25 metros de diâmetro e lançou material desde 1,80 metro de profundidade. A nuvem de detritos gerada pela colisão chegou a cerca de 800 metros acima da superfície da cratera, o suficiente para atingir a luz solar.
O resultado foi que a composição da emissão pôde ser medida por quatro minutos por diversos instrumentos de espectroscopia. O material ejetado chegou a quase duas toneladas.
Apesar do sucesso, Schultz ressalta que a missão trouxe respostas, mas também levantou novas questões. “Trata-se de um arquivo de bilhões de anos, preso em crateras em sombras permanentes. Pode haver ali pistas para a história da Lua, da Terra, do Sistema Solar e de nossa galáxia. E está tudo ali, implorando para que voltemos”, disse.
Desde 1972, com a última missão Apolo, o homem não pisou mais na Lua. Apesar de projetos de retorno das missões tripuladas para além dos ônibus espaciais, não se sabe ao certo quando esse retorno poderá ocorrer.
O artigo The LCROSS Cratering Experiment, de Peter Schultz e outros, e os demais sobre a missão LCROSS podem ser lidos por assinantes da Science (10.1126/science.1187454) em www.sciencemag.org.




  * Aqueles que desejarem o artigo devem enviar mail solicitando.

Dois novos ceratopsianos foram descobertos

Acesse: blog do Ikessauro 

Reconstruções dos esqueletos: Utahceratops à esquerda
© Sampson et.al.

Duas extraordinárias novas espécies de dinossauros com chifre foram encontradas no Grand Staircase-Escalante National Monument, no Sul do estado de Utah. Os gigantes herbívoros eram habitantes do "continente perdido" chamado Laramidia, formado quando um mar raso inundou a região central da América do Norte, separando as partes oeste e leste do continente por milhões de anos durante o período Cretáceo Superior. Os recentemente descobertos dinossauros, parentes próximos do famosos Triceratops, foram anunciados no site de artigos científicos, PLoS ONE, uma biblioteca de ciências pública online, cujo acesso é gratuito. Para saber mais sobre os dois novos magníficos dinossauros, acesse o resto da postagem.

O estudo, custeado em grande parte pelo Bureau of Land Management and the National Science Fundation, foi conduzido por Scott Sampson e Mark Loewen do Museu de História Natural de Utah e do Departamento de Geologia e Geofísica, da Universidade de Utah. Entre os outros autores estão Andrew Farke, Eric Roberts, Joshua Smith, Catherine Forster e Alan Titus, sendo estes de diversas outras instituições. O maior dos dois ceratopsídeos, com um crânio de 2,3 metros de comprimento, é o Utahceratops gettyi.
Utahceratops em vida
© Sergey Krasovskiy

A primeira parte do nome se refere ao estado de Utah, onde o fóssil foi achado. A segunda parte é
uma homenagem à Mike Getty, o curador da coleção de paleontologia do museu de Utah e descobridor do bicho. Portando, o nome significa Cara com chifres do estado de Utah de Getty ou talvez ainda possamos traduzir por Rosto chifrudo Utahense de Getty.
Fósseis do crânio do Utahceratps
© Sampson et.al. Recontrução do crânio do Utahceratps
© Sampson et.al.

Além de um grande chifre sobre o focinho, o Utahceratops tinha chifres sobre os olhos, curtos e robustos, pontudos, porém não tão afiados, apontando para os lados, muito mais parecido com os chifres dos bisões atuais do que com o de seus parentes ceratopsianos. Um dos autores do artigo, Mark Loewen, fazendo uma analogia, disse que o Utahceratops é "um rinoceronte gigante com uma cabeça ridiculamente enorme."
A segunda espécie é chamada de Kosmoceratops richardsoni. No caso deste dino, o primeiro nome se refere à palavra Kosmos, provinda do Latim, que significa "enfeitado", "ornado" ou ainda "aquele que tem excesso de enfeites". A segunda parte do nome, ceratops, assim como no outro dinossauro, quer dizer "face com chifres". A segunda parte do nome é uma homenagem à Scott Richardson, um voluntário que descobriu dois crânios desse animal.
Crânios fósseis do Kosmoceratops
© Sampson et.al.
Reconstrução do crânio do Kosmoceratops
© Sampson et.al.
O Kosmoceratops também tem chifres sobre os olhos voltados mais para os lados, entretanto muito mais longos e pontudos que os do Utahceratops. Ao todo, o Kosmoceratops possui 15 chifres, um sobre o nariz, um sobre cada olho, um na ponta de cada bochecha e dez chifres cruzando seu escudo na margem superior, com as pontas curiosamente voltadas para baixo, o que faz desse dino o que a cabeça mais ornamentada de todos.
Reconstrução da cabeça do Kosmosaurus
©
Lukas Panzarin
Scott Sampson disse que "o Kosmoceratops é um dos mais incríveis animais conhecidos,com um enorme crânio decorado com uma variedade de estruturas ósseas."Porém muita especulação tem surgido a respeito da função dos escudos e chifres dos ceratopsídeos, desde proteção ou arma contra predadores a enfeites para reconhecer membros da mesma espécie ou regulação da temperatura corporal.
A ideia mais aceita hoje é de que tais adornos serviam como atrativo sexual, para atrair o sexo oposto na época de reprodução. Sampson anda diz que "a maioria dessas características bizarras seriam armas ineficientes contra predadores. Serviriam muito mais como ferramentas de intimidação ou para duelar com rivais do mesmo sexo e espécie, assim como para atrair o sexo oposto."
Os dinossauros foram descobertos no Grand Staircase-Escalante National Monument (GSENM), que abrange 1,9 milhõs de acres no deserto do centro de Utah. Essa região inóspita faz parte do National Landscape Conservation System, administrado pelo Bureau of Land Management, foi a última maior área dentro dos 48 estados principais do país a ser mapeada pelos cartógrados. Hoje o GSENM é o maior monumento nacional nos Estados Unidos. Sampson ainda afirma que "o Grand Staircase-Escalante National Monument é agora um dos maiores cemitérios de dinossauros do país ainda não explorados intensamente."
Durante a maior parte do Cretáceo Superior, altos níveis da água do mar inundaram as áreas mais baixas de vários continentes no mundo. Na América do Norte, um quente e raso mar chamado de Mar interior do Oeste se extendia do Oceano Ártico até o Golfo do México, subdividindo o continente em duas áreas, a oeste e a leste, conhecidas como Laramidia e Appalachia respectivamente.
Mapa da América do Norte no Cretáceo Superior
©
Sampson et.al.

Apesar de sabermos pouco sobre as plantas e animais que viveram no subcontinente Appalachia, as rochas de Laramidia estão expostas no interior do Oeste da América do Norte, o que gerou uma abundância de restos de dinossauros. O Laramidia era menos que um terço do tamanho da América do Norte dos dias de hoje, tendo o tamanho aproximado da Austrália.
A maioria dos dinossauros que viveram no Laramidia estavam concentrados em uma faixa estreita de planícies, espremida entre o mar interno que ficava ao leste e as montanhas à Oeste. Hoje, graças à abundância do registro fóssil e mais que um século de escavações realizadas por paleontólogos, Laramidia é a massa de terra mais bem conhecida de toda a era dos dinossauros, com sítios de escavação distribuídos do Alaska ao México. O estado de Utah estava localizado na parte Sul da Laramidia, cujos fósseis são bem mais raros do que das regiões ao Norte. O mundo dos dinossauros foi muito mais quente que o de hoje. O Utahceratops e o Kosmoceratops viveram em um ambiente pantanoso subtropical a cerca de 100 quilômetros de distância do mar.
No começo da década de 1960 os paleontólogos começaram a notar que os mesmos grupos predominantes de dinossauros pareciam estar presentes em toda essa área de terra do Cretáceo Superior, mas diferentes espécies destes grupos ocorreram no norte e no sul. Essa descoberta de "provincialismo de dinossauros" foi intrigante, uma vez que os dinossauros tem enormes proporções corporais e seu continente é bem reduzido em extensão. Atualmente há só 5 mamíferos gigantes em todo o continente africano (do tamanho de Rinocerontes ao de Elefantes). Há 75 milhões de anos teve ter existido mais que uma dúzia de dinossauros gigantes vivendo em uma massa de terra cerca de um-quarto do tamanho da África.

Então Mark Loewen se pergunta, "como tantas variedades de animais gigantes puderam co-existir em um pedaço de terra tão reduzida?" Uma hipótese é a de que havia maior abundância de comida durante o Cretáceo. Outra sugestão é a de que os dinossauros não precisavam comer muito, talvez porque tinham taixas metabólicas menores, mais parecidas com a dos lagartos e crocodilos atuais do que dos mamíferos e aves. Independentemente de quais os fatores que permitiram a presença de tantos dinossauros, parece que os do norte eram isolados dos do sul, pois ao norte de Utah e Colorado parece ter havido uma barreira natural impedindo essa migração. As barreiras poderiam ser montanhas ou resultados do clima, que poderia criar diferentes comunidades de plantas no norte sendo que animais do sul talvez não fossem adaptados para comê-las. Mas não puderam testar tais hipóteses ainda porque havia uma falta de dinossauros da parte sul de Laramidia. Esses novos fósseis do GSENM estão agora completando as lacunas que faltavam.

Durante a década passada, equipes da Universidade de Utah e de várias outras instituições parceiras desenterraram um nova assembléia de fósseis (assembléia são fósseis amontoados num local) com pelo menos uma dúzia de dinossauros no GSENM. Além do Utahceratops e do Kosmoceratops, a coleção inclui uma variedade de outros herbívoros, entre hadrossauros, anquilossauros, paquicefalossauros, assim como carnívoros grandes e pequenos, variando do tamanho de pequenos raptores a tiranossaurídeos
bombados. Também foram encontrados fósseis de plantas, traços de insetos, moluscos, peixes, anfíbios, lagartos, tartarugas, crocodilos e mamíferos, oferecendo um vislumbre direto do ecossistema. O mais extraordinário de tudo isso é que todos os novos tipos de dinossauros encontradas na região acavam sendo novas para a ciência, oferecendo uma confirmação dramática da hipótese do provincialismo. Muitos destes animais estão ainda sendo estudados, mas dois já foram nomeados: o hadrossaurídeo gigante Gryposaurus monumentensis e o terópode maniraptor Hagryphus giganteus.
Distribuição de alguns ceratopsídeos nos locais do achado
© Sampson et.al.

O Utahceratops e o Kosmoceratops são parte de uma recente "enxurrada" de descobertas de ceratopsídeos. Andrew Farke disse que "o ano passado foi excepcionalmente bom em descobertas de dinossauros ceratopsídeos, com diversas novas espécies sendo nomeadas. As novas criaturas de Utah são a cereja do bolo, pois já havíamos descoberto animais incríveis e agora estes vem mostrando anatomia ainda mais bizarra e tipicamente esperada para um grupo de animais conhcidos por seus crânios estranhos."
Claramente mais restos de dinossauros serão escavados no sul de Utah. "É um tempo excitante para ser paleontólogo," disse Sampson. "Com muitos novos dinossauros descobertos a cada ano, nós podemos estar muito certos de que uma variedade de surpresas ainda esperam por nós lá fora."

Pra quem quer conferir o artigo oficial publicado no PLoS ONE, basta clicar no link que está nas fontes, a seguir.

Fontes


Leia mais: http://ikessauro.blogspot.com/2010/09/dois-novos-ceratopsianos-foram.html#ixzz13i831lAc