terça-feira, 30 de novembro de 2010

Evolução dos grandes mamíferos

30/11/2010
Agência FAPESP – Nos primeiros 140 milhões de anos de sua história evolutiva, os mamíferos eram pequenos, não ultrapassando os 15 quilos, e ocupavam poucos nichos ecológicos. Tudo mudou após a extinção dos dinossauros, há cerca de 65 milhões de anos, quando os mamíferos explodiram tanto em diversidade como em tamanho.
Um novo estudo, publicado na revista Science, ajuda a tentar entender esse notável salto evolutivo. Felisa Smith, da Universidade do Novo México, e colegas reuniram dados de fósseis que indicam os tamanhos de mamíferos terrestres pertencentes a cada ordem taxonômica, em cada continente e durante a sua história evolutiva.
A análise dos dados colhidos indica que o tamanho geral dos mamíferos aumentou rapidamente e depois se estabilizou, após cerca de 25 milhões de anos. Segundo os autores da pesquisa, esse padrão foi comum para a maioria dos continentes, embora não tenha sido conclusivo para a América do Sul.
Evolução dos grandes mamíferos
Estudo na Science explica por que os mamíferos, que até então não passavam dos 15 quilos, cresceram e se diversificaram tanto após a extinção dos dinossauros (divulgação)

s pesquisadores também experimentaram diferentes hipóteses para a evolução até o tamanho corporal máximo. Segundo eles, aparentemente essa tendência não foi um resultado aleatório ou inevitável do aumento na complexidade das espécies.
Os mamíferos também não atingiram eventuais limites biomecânicos, aponta o estudo. Em vez disso, o principal motor do crescimento teria sido a diversificação para o preenchimento de nichos ecológicos deixados vagos pelos dinossauros.
Ou seja, sem os grandes répteis, entraram em cena os mamíferos gigantes, ocupando seu espaço. Para os autores da pesquisa, os limites dos corpos devem ter sido ditados pelas condições climáticas e pela área disponível para sua ocupação.

“Durante o Mezosoico, os mamíferos eram pequenos. Mas, uma vez extintos os dinossauros, os mamíferos evoluíram para se tornar muito maiores, à medida que se diversificaram e preencheram nichos ecológicos disponíveis. Esse fenômeno é bem documentado na América do Norte e verificamos que o mesmo ocorre em todo o mundo”, disse John Gittleman, da Universidade de Georgia, nos Estados Unidos, um dos autores do estudo.
O artigo The Evolution of Maximum Body Size of Terrestrial Mammals (10.1126/science.1194830), de Felisa Smith e outros, pode ser lido por assinantes da Science em www.sciencemag.org/content/330/6008/1216.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Maior cérebro, maior inteligência?

Roberto Lent discute em sua coluna estudo norte-americano que mostra que o tamanho de diversas regiões e estruturas cerebrais está associado ao QI de um indivíduo, medido com base nos diferentes aspectos da cognição.
Por: Roberto Lent
Publicado em 26/11/2010 | Atualizado em 26/11/2010
Maior cérebro, maior inteligência?
Parte do mosaico ‘Despertar da inteligência da humanidade’, criado por Barry Faulkner no Rockefeller Center (Nova Iorque). A figura central simboliza o Pensamento, apoiado nos anjos Palavras Escritas e Palavras Faladas (foto: Wally Gobetz/ CC BY NC 2.0). 
 
Todo mundo sabe intuitivamente o que é a inteligência. O difícil é defini-la com rigor científico. Será a capacidade de resolver problemas? Ou a percepção de emoções sutis dos outros? A habilidade matemática? Talento oratório? Ou a capacidade de compor música?
A variedade de habilidades humanas indica que a inteligência não é uma só, e que as pessoas podem ser excelentes em um aspecto e não tão boas em outros.
De fato, o psicólogo norte-americano Howard Gardner, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, considera que a inteligência é mesmo múltipla e propõe que seus tipos principais são: inteligência espacial, linguística, lógica-matemática, corporal, musical, interpessoal, intrapessoal, naturalística e existencial. Há evidências de que essas “especialidades” cognitivas sejam verdadeiras, mas não há garantias de que sejam as únicas. A lista pode aumentar.
A proposição de Gardner foi um avanço, pois permitiu valorizar mais os diferentes talentos humanos e estudá-los mais pormenorizadamente com instrumentos da psicologia e da neurociência. Além disso, serviu como um antídoto para o exagero da adoção do QI (quociente intelectual) como única medida da inteligência.
O QI foi inventado em 1912 pelo psicólogo alemão William Stern (1871-1938), com o objetivo de avaliar o desempenho escolar de crianças para que fossem desenvolvidas alternativas educacionais segundo a nota que recebiam. Modificado inúmeras vezes, o índice esteve envolvido em controvérsias candentes com conotações políticas, pois foi também utilizado para justificar políticas sociais baseadas na eugenia, que presumiam que a inteligência era determinada exclusivamente pela carga genética de cada indivíduo.
Fato é que o QI – modernizado com o emprego de ferramentas estatísticas mais apuradas – continua a ser utilizado amplamente para avaliar a “inteligência global” das pessoas, tomando-se a precaução de separar os indivíduos testados por grupos de idade, padrão social, escolaridade, cultura, nacionalidade e outros parâmetros.

Relacionando a inteligência ao cérebro

Levando em conta essas sutilezas na medida da inteligência, seria então possível buscar a relação entre ela e o cérebro?
O pensador
O cérebro determina a inteligência, que a sociedade modula: o problema é saber como uma coisa influencia a outra. A imagem mostra uma montagem feita pelo colunista a partir de reprodução da célebre obra ‘O pensador’, de Auguste Rodin.
Não há mais dúvida de que o cérebro representa a base material para a cognição, sendo, portanto, logicamente concebível buscar na sua estrutura e no seu funcionamento a natureza da inteligência.
Temos então um outro problema. Que aspectos da organização cerebral deveriam ou poderiam ser utilizados no estudo da determinação biológica da inteligência? Os primeiros neurocientistas, carentes de técnicas sofisticadas, empregaram medidas globais como o peso e o volume do encéfalo e suas grandes regiões. Depois, com as modernas técnicas de neuroimagem, tornou-se possível avaliar regiões mais restritas e até mesmo microrregiões que podiam chegar a poucos milímetros cúbicos.
Destacou-se recentemente nesse tipo de estudo o grupo dirigido por Arthur W. Toga, da Escola de Medicina da Universidade da Califórnia em Los Angeles (Estados Unidos). No laboratório de Toga, Eileen Luders e outros colaboradores realizaram uma série de estudos com o objetivo de correlacionar aspectos estruturais do cérebro humano com a inteligência dos sujeitos.
Como o grupo de indivíduos escolhidos foi sempre controlado quanto ao sexo, escolaridade e idade, sendo todos (homens e mulheres entre 16 e 44 anos de idade) norte-americanos educados no país, procurou-se assim minimizar os efeitos sociais que influenciariam as medidas de QI. Estas, por outro lado, abrangeram cerca de 10 subtestes, que cobriam os diversos aspectos da cognição.
Para os exames de imagem, eles empregaram medidas de ressonância magnética, que permitiram avaliar não apenas o volume total do encéfalo, mas também o volume total da substância cinzenta (onde se encontram os neurônios e as sinapses) e da substância branca (onde se encontram as fibras que intercomunicam as diferentes regiões).
Ainda mais especificamente, avaliaram a espessura do córtex cerebral em todas as suas microrregiões, bem como o seu grau de convolução (o conjunto das dobraduras da superfície), e mesmo a espessura do principal canal de fibras que interliga os hemisférios cerebrais.

A medida da inteligência

Ao analisar os resultados do experimento, a primeira observação que os pesquisadores fizeram é que não houve correlação negativa entre as medidas da inteligência e as do cérebro, só correlações positivas. Isso significa que quanto maior era a medida do cérebro, maior era também o QI do indivíduo.

Os dados mostraram que essas correlações positivas eram verdadeiras para o cérebro como um todo, mas também para a substância cinzenta, que realiza o processamento de informações, e a substância branca, encarregada da transferência de informações entre as regiões cerebrais.
Mais especificamente ainda, a espessura do córtex cerebral pôde ser medida para as diferentes áreas corticais e relacionada às medidas de QI. Encontrou-se correlação positiva nas áreas frontais e temporais, especialmente na região de confluência entre o lobo temporal e o lobo occipital. O grau de convolução apresentou padrão semelhante para a região têmporo-occipital do córtex cerebral.
Que teria então essa misteriosa região de tão importante para a inteligência? Sugeriu-se que aí estaria o polo de convergência (um hub, no jargão da computação) entre o fluxo de informações visuais analisado pelas regiões occipitais e os conceitos linguísticos mais elaborados, cujos “dicionários” ficariam no córtex temporal inferior.
Regiões cerebrais com tamanho associado ao QI
As imagens à esquerda mostram as regiões onde se encontrou correlação positiva entre a espessura do córtex cerebral e o QI das pessoas investigadas. A escala de cores mostra que as correlações foram quase sempre positivas. As imagens à direita mostram as regiões onde a correlação foi estatisticamente significativa: quanto menor o valor na escala de cores, maior a validade estatística do resultado. Imagem modificada de Luders e colaboradores (2009).
Os pesquisadores da Califórnia fizeram ainda avaliações morfométricas do corpo caloso, o enorme feixe com 200 milhões de fibras nervosas que interliga os hemisférios cerebrais. O corpo caloso é essencial para permitir que o nosso hemisfério esquerdo – responsável pelos aspectos racionais e lógicos da linguagem, bem como pelo processamento analítico, detalhado, das informações provenientes do mundo – converse com o hemisfério direito, mais voltado para os aspectos emocionais e holísticos da inteligência.
Pois bem, encontraram também correlação positiva entre a espessura desse grande feixe de fibras em certos locais (ou seja, mais fibras) e a inteligência do portador. Isso significa que um maior número de fibras calosas contribui para maior interatividade entre os hemisférios especialistas, o que agiliza o processamento mental.

Cautela na interpretação

Bem, é preciso certa cautela na valorização desses resultados. As correlações são muitas, e todas são positivas, sugerindo que quanto maior a dimensão do cérebro, do córtex ou de algumas de suas regiões, maior a inteligência do indivíduo.
Mas correlações, a rigor, podem representar apenas uma coincidência no comportamento de duas variáveis, o que não significa que uma seja a causa da outra.  Bastaria um exemplo jocoso. Desde os anos 1950, aumentou a poluição em São Paulo e no Rio de Janeiro. Nesse mesmo período aumentou a criminalidade. Uma correlação positiva, para a qual seria possível encontrar significância estatística. No entanto, ninguém considerará provável que a causa do aumento da criminalidade nas grandes cidades brasileiras seja a poluição...
A favor dos trabalhos do grupo de Toga, entretanto, está o grande número de variáveis estruturais do cérebro correlacionadas com as também numerosas medidas de QI. Além disso, outro conjunto forte e numeroso de estudos com pacientes neurológicos define uma relação de causa e efeito entre o cérebro e as capacidades cognitivas humanas.
De qualquer modo, o charme da ciência é justamente o valor superior das perguntas sobre as respostas: cada novo resultado é melhor quando gera mais perguntas!

Sugestões para leitura:
K.L. Narr e colaboradores (2007). Relationships between IQ and cortical gray matter thickness in healthy adults. Cerebral Cortex, vol. 17: pp. 2163-2171.
E. Luders e colaboradores (2008). Mapping the relationship of cortical convolution and intelligence: effects of gender. Cerebral Cortex, vol. 18: pp. 2019-2026.
E. Luders e colaboradores (2009). Neuroanatomical correlates of intelligence. Intelligence, vol. 37: pp. 156-163.
E. Luders e colaboradores (2010). The link between callosal thickness and intelligence in healthy children and adolescents. Neuroimage, publicação eletrônica em 13 de outubro.

Roberto Lent
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Pequeno terópode pode ser antecessor dos T-rex
Com os mesmos hábitos e comportamentos o Raptorex kriegsteini era um T-rex em miniatura
 


Milhões de anos antes do primeiro Tyrannosaurus rex existir e aterrorizar todos os dinossauros, a espécie Raptorex kriegsteini possuía todas as características próprias de um tiranossauro, porém, em miniatura.

Pesando cerca de 1% da massa corpórea do grande terópode (T-rex), os Raptorex eram exímios caçadores e tinham a mesma forma bípede de locomoção, os mesmos braços curtos e o mesmo faro aguçado de seus grandes e assustadores “primos”. Apesar de ser um dinossauro bem menor que o T-rex, tinham quase três metros de comprimento e pesavam cerca de 80 kg. Provavelmente conseguia caçar mamíferos de até 2 metros e meio.

"Não há outro exemplo melhor sobre a evolução dos grandes Tyrannosaurus rex, esse dinossauro era um “projeto” 100 vezes menor do que acabaria se tornando milhões de anos depois", explica Paul Sereno, paleontólogo da University of Chicago, em uma declaração preparada. Ele e outros cinco co-autores descrevem o novo carnívoro em um artigo recentemente publicado na revista Science.

Nesta imagem, o crânio do Raptorex é comparado com o crânio de um T. rex adulto.

Crocodilos Brasileiros da Era dos Dinossauros
Fósseis do interior de São Paulo e de Minas mostram que, há mais de 65 milhões de anos, parentes dos jacarés atuais eram caçadores terrestres e até comiam insetos
por Felipe Mesquita de Vasconcellos, Ismar de Souza Carvalho, Reinaldo José Lopes e Thiago da Silva Marinho   -   edição 103 - Dezembro 2010
CROCODILOS, JACARÉS, ALIGATORES E GAVIAIS não são exatamente o grupo mais diversificado de vertebrados atuais. É verdade que ainda existem 23 espécies desses animais, espalhadas por todos os continentes, com exceção da Antártida, mas um observador casual provavelmente não erraria muito se afirmasse que quem viu uma delas conheceu todas. Afinal, esses animais são, sem exceção, adaptados à vida semiaquática, ganhando seu sustento como predadores de emboscada. Os fósseis, no entanto, mostram que esse estilo de vida não tem nada de inevitável para esse grupo de animais. No passado remoto, os crocodiliformes, como são conhecidos coletivamente, podiam ocupar nichos ecológicos quase inimagináveis para quem vê as formas modernas do grupo no Pantanal, no Brasil, ou nos grandes rios africanos.

Esqueletos encontrados em camadas de rocha nos estados de São Paulo e Minas Gerais estão ajudando a contar essa história surpreendente. Em alguns casos, vários indivíduos da mesma espécie foram preservados, praticamente intactos, de forma que é possível estudar não apenas sua morfologia como fazer inferências sobre o comportamento dos animais e as razões que os levaram à morte.

O quadro pintado por esses restos deixa claro que muitos eram caçadores terrestres, corredores de patas esguias e eretas – mais próximos de um lobo-guará que de um jacaré moderno, por assim dizer. Outros, de porte mais modesto, teriam se adaptado ao consumo de insetos e até plantas, enquanto os que hoje nos pareceriam mais estranhos ostentavam uma armadura de placas semelhante à de um tatu. E todos tinham suas garras firmemente plantadas em terra firme, no imenso semideserto que cobria o interior do Brasil no período Cretáceo, há mais de 65 milhões de anos, antes da extinção em massa que eliminou os dinossauros.

A intensificação das coletas de fósseis feitas por nós e outros colegas brasileiros e o uso de novas tecnologias, como a tomografia computadorizada e as animações em 3D, estão ajudando a reconstruir essas criaturas com um grau de detalhamento e precisão sem precedentes.

Estamos acostumados a chamar os crocodiliformes modernos de “répteis”, embora haja uma enorme distância de parentesco entre eles e outras criaturas que recebem essa denominação popular, como serpentes, lagartos e tartarugas. O mais correto, do ponto de vista evolutivo, é classificá-los dentro de um subgrupo de vertebrados terrestres cujo único outro ramo ainda vivo é o das aves.
Trata-se do grupo dos arcossauros, que floresceu pela primeira vez no começo do período Triássico, há cerca de 240 milhões de anos. Do tronco inicial dos arcossauros surgiram tanto os crocodiliformes quanto pterossauros (primeiros vertebrados realmente voadores, donos de asas membranosas) e dinossauros (dos quais as aves não passam de um subgrupo; para todos os efeitos, as aves modernas são dinossauros emplumados).

Antes que os dinossauros se tornassem dominantes nos ecossistemas terrestres, seus primos arcossauros passaram por uma série de diversificações evolutivas, entre as quais a dos crocodilos, que acabaria se tornando uma das mais bem-sucedidas. Os primeiros registros de crocodiliformes datam do Triássico Médio, há cerca de 210 milhões de anos. Em comum, esses animais tinham uma tendência a modificar a postura “reptiliana” padrão – conhecida como sprawling, ou “esparramada”, já que os animais deslizavam, em contato próximo com o solo – em favor de um posicionamento mais ereto dos membros. O extremo dessa tendência se manifesta nos próprios dinossauros, cujo fêmur fi cava posicionado “em linha reta”, imediatamente sob o corpo, como ocorre com a maioria dos mamíferos e aves.

Soluções evolutivas muito parecidas, no entanto, também foram desenvolvidas pelos crocodiliformes. Isso pode parecer estranho para quem conhece as espécies modernas do grupo. Quem pensa em jacarés ou crocodilos provavelmente tem a imagem mental de uma criatura deslizando a barriga por uma margem pantanosa antes de se enfiar na água. Nesse tipo de locomoção, conhecida como belly slide (literalmente “deslize de barriga”), as espécies modernas de fato assumem uma postura esparramada, com os membros projetados lateralmente. Mas é importante lembrar que os animais de hoje são bem mais versáteis na locomoção em terra firme por distâncias mais consideráveis.

Há, por exemplo, o chamado high walk (que poderia ser traduzido simplesmente como “caminhada”), no qual os membros do animal assumem uma postura semiereta, mais esticada. É útil especialmente se o animal precisa se deslocar por períodos maiores no solo, procurando áreas mais úmidas em períodos de seca, por exemplo.

No caso do high walk, fica clara a diferença biomecânica entre o andar de crocodilos e jacarés e o dos lagartos propriamente ditos. Os lagartos também conseguem modificar sua postura esparramada tradicional para ganhar velocidade, mas o fazem aumentando as flexões laterais do tronco para que sua passada fi que mais larga. No caso de crocodilos e assemelhados, essas flexões quase não ocorrem – são os membros os responsáveis por fazer a maior parte do serviço. Finalmente, por mais estranho que isso pareça, os crocodiliformes atuais também são capazes de galopar durante picos curtos de atividade. O mais comum é que o galope seja utilizado durante uma estratégia de fuga: na pressa, as patas traseiras se movimentam juntas e chegam a ficar na frente das dianteiras, quase como se o animal tivesse virado um cachorro.
ILUSTRAÇÃO POR RODOLFO NOGUEIRA E FELIPE MESQUITA DE VASCONCELLOS
Construção virtual do Montealtosuchus arrudacamposi: modelos em 3D ajudam a testar hipóteses sobre a locomoção de espécies.


Essa versatilidade locomotora sugere que a postura real dos crocodiliformes atuais não é exatamente sprawling, como se costuma pensar, mas, a rigor, semiereta. Além disso, levando em conta esses dados modernos e o registro fóssil, fica claro que a postura semiereta não é a condição que predominava no ancestral comum do grupo, mas uma modificação secundária de um padrão original ereto, como os crocodiliformes do Cretáceo brasileiro deixam claro. E, apesar de suas adaptações posteriores, os animais modernos ajudam a dar uma ideia de como seria um crocodilo ou jacaré que andasse a maior parte do tempo em solo seco.

Antes de abordar diretamente essas espécies do passado, no entanto, ainda há outras características dos animais modernos que são relevantes para entender o contexto em que se encontram os fósseis. Uma delas é a construção de tocas nas margens de rios, lagoas e outros corpos d’água, ou de simples buracos no substrato.Numa versão desses abrigos, os chamados gatorholes, ou “buracos de aligátor”, o animal produz uma depressão no leito lamacento que drena a água dos arredores, uma espécie de bacia. Depois, o animal fica semienterrado nesses locais, de modo a se proteger da seca ou da luz solar muito forte nos períodos com pouca chuva. No caso dos aligatores, que abrem essas covas no início da estação seca, os gatorholes acabam virando ponto de encontro para outros animais em busca de água. Já as tocas propriamente ditas, abertas em encostas, podem abrigar o corpo inteiro do animal e, em alguns casos, têm construção relativamente complexa. Como veremos, esses dois tipos de comportamento podem ser relevantes para entender a preservação de alguns dos fósseis mais interessantes do Cretáceo brasileiro.

Não é possível entender a variada fauna de crocodiliformes extintos do país sem levar em conta a história geológica da chamada bacia Bauru, área com cerca de 370 mil quilômetros quadrados que abrange boa parte dos estados de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Goiás, além da porção nordeste do Paraguai. Tratava-se, originalmente, de uma grande depressão que se formou conforme o Oceano Atlântico se abria e a América do Sul fi cava mais e mais separada da África, antes unida a ela no supercontinente conhecido como Gondwana. É por isso, aliás, que há afinidades consideráveis entre os crocodiliformes fósseis encontrados aqui e os seus primos africanos.

Usando uma série de técnicas complementares, como a correlação dos fósseis da bacia Bauru com os de outros locais da América do Sul e do planeta e a datação absoluta de rochas vulcânicas, é possível estimar que a idade do conjunto iria, grosso modo, de 125 milhões a 65 milhões de anos atrás, abrangendo, portanto, a maior parte do Cretáceo, até o momento em que esse período termina com a extinção de dinossauros e outros grupos de animais.

As rochas da bacia Bauru carregam “assinaturas” claras de um clima quente e predominantemente semiárido, com uma delimitação clara entre estações secas e chuvosas. Ao que parece, a falta crônica de água tem a ver com o fato de que, a leste, a depressão formada pela bacia fazia fronteira com regiões mais elevadas, as quais funcionavam como uma barreira para as nuvens de chuva vindas do então jovem oceano Atlântico. Por outro lado, a oeste só havia mais continente, o que certamente não favorecia a chegada de umidade e aumentava os extremos climáticos da região. Além disso, sabe-se que o clima de todo o planeta no Cretáceo era mais quente que o atual, em parte graças à concentração mais elevada de gases de efeito estufa, como o dióxido de carbono, na atmosfera. No fim do Cretáceo, por exemplo, a temperatura global pode ter sido, em média, 4º C mais elevada.
Por isso, acredita-se que animais e plantas da bacia Bauru enfrentavam longas estiagens, pontuadas por períodos curtos de grandes inundações. Se fosse possível uma comparação com os biomas brasileiros de hoje, o resultado seria uma estranha mistura de caatinga, cerrado e Pantanal, dependendo da época do ano, com algumas áreas realmente desérticas hoje não encontradas no Brasil. Rios temporários cortavam paisagem e, em alguns casos, surgiam áreas pantanosas, como o chamado “pantanal Araçatuba” ou “lago Araçatuba”, cujas águas deviam ser estagnadas e salobras, a julgar pelos sedimentos da formação de mesmo nome que chegaram até nós.

É por isso que, apesar das características semidesérticas da região, vieram da bacia Bauru fósseis relativamente abundantes de animais com hábitos aquáticos, como tartarugas de água doce, moluscos, anfíbios e peixes. Mas o ambiente terrestre sem dúvida oferecia mais oportunidades, como deixam claro os crocodiliformes encontrados em abundância na região.

Talvez o exemplo mais arquetípico desses animais seja o gênero Baurusuchus (suchus é a forma latinizada do termo grego para crocodilo). Ele foi descrito pela primeira vez em 1945, com base num crânio da espécie Baurusuchus pachecoi achado no oeste do estado de São Paulo, por Llewellyn Ivor Price, um dos pioneiros da paleontologia moderna no Brasil. A mera análise do crânio e da dentição já deixava claro que se tratava de um predador soberbo, com dentes munidos de serrilhas que lembram os dos dinossauros carnívoros. O formato craniano e o posicionamento dos olhos e das narinas, bem diferentes dos que se vê entre crocodiliformes modernos, indicavam que se tratava de um animal terrestre. (Para caçar semisubmersos, os animais atuais têm narinas localizadas no alto do focinho.)

Preparar a rocha original para extrair delas os fósseis tem suas limitações para quem quer reconstruir a anatomia do animal, porque a preparação pode acabar desarticulando os ossos. Por isso, no caso de parte desse material, a opção foi passar o bloco ainda não preparado por uma tomografia computadorizada no Centro de Diagnóstico por Imagem do Leblon (RJ). Os dados obtidos dessa maneira permitem fazer uma reconstrução tridimensional do fóssil, altamente confiável e não invasiva. Esse modelo virtual depois foi utilizado para testar hipóteses sobre a locomoção da espécie com a ajuda de animações 3D.
A partir dessas análises, ficou claro que o B. salgadoensis tinha um andar que classificaríamos de ereto, não muito diferente do de um dinossauro quadrúpede. É possível até que, durante curtos períodos, ele pudesse assumir uma postura bípede. As patas da frente aparentemente permitiam um andar digitígrado (ou seja, apoiado nas pontas dos dedos), enquanto os membros traseiros fi cavam apoiados nas plantas das patas.

Com 3 m de comprimento e cerca de 100 kg, o animal tinha hábitos cursoriais (de corredor) – embora certamente não fosse um guepardo, estava longe de se comportar de forma lerda ou “reptiliana”. É possível que a cauda fosse rígida, como a de vários dinossauros carnívoros, de forma a impedir que ela atrapalhasse a corrida arrastando-se no chão. Sua armadura de osteodermas (os “calombos” ósseos que decoram o corpo de crocodilos ou jacarés) era relativamente leve. Com essas características anatômicas, um animal desses simplesmente afundaria se fosse jogado n’água.

A concentração de diversos indivíduos da espécie no mesmo sítio em General Salgado, aliada ao excelente estado de preservação e às características do sedimento, permite postular que eles tenham morrido há 90 milhões de anos durante um episódio de seca extrema, abrigados em suas tocas ou gatorholes à espera de uma chuva que, ao menos para eles, chegou tarde demais.

Ocupando mais ou menos o mesmo nicho ecológico de superpredador terrestre, embora pertencente a outra família de crocodiliformes, está o Uberabusuchus terrificus, com tamanho estimado em 2,5 m e cerca de 80 kg de peso, achado em Peirópolis, distrito da cidade mineira de Uberaba. Mais recente, o animal tem cerca de 70 milhões de anos e foi descrito formalmente em 2004. A postura ereta para andar em terra firme também o aproxima dos Baurusuchus em termos de hábitos mais gerais de vida.

A diversidade de superpredadores crocodiliformes na bacia Bauru supera em muito a presença de espécies de dinossauros carnívoros, os terópodes. De fato, dessa região chegaram até nós muito mais formas de dinossauros herbívoros de pescoço longo, os chamados saurópodes, do que de dinos carnívoros. Isso levanta a possibilidade de que os principais predadores da bacia Bauru fossem crocodilos, e não dinossauros. Mas o cenário é um pouco mais complexo e incerto. Há registros de dentes de terópodes para a região, embora outros materiais fósseis sejam raros. E lesões num dos crânios de B. salgadoensis poderiam ter sido provocadas por um dinossauro carnívoro de grande porte – ou pelo combate com outro membro da espécie.

FOTO DE DR. THIAGO MARINHO
Crânio do Armadillosuchus arrudai revela estranheza de suas formas, como cúpula de placas ósseas na cabeça


PARALELOS INTRIGANTES
De qualquer maneira, a impressão de que nossos paleocrocodilos eram um clube de superpredadores temíveis fi ca bastante balançada quando se leva em conta outros gêneros mais modestos, mas não menos interessantes. Um exemplo, descrito em 2006, é o diminuto Adamantinasuchus navae, com 90 milhões de anos e apenas 50 cm de comprimento, cuja anatomia e hábitos têm paralelos intrigantes com os dos mamíferos do Cretáceo.

Além de pequeno, o A. navae exibe uma dentição especializada, incomum entre crocodiliformes ou mesmo outros arcossauros. Na frente da cabeça relativamente curta, a criatura tinha dois grandes dentes parecidos com incisivos, ou incisiformes, que se projetam para a frente, além de sete outros dentes com características semelhantes a molares, os ditos molariformes. É possível que essa dentição estranha ajudasse, ao mesmo tempo, a “fi sgar” presas pequenas, como insetos (no caso dos incisiformes), e a triturar material duro e fibroso, talvez de origem vegetal, com os pseudomolares.
Outra peça do quebra-cabeça comportamental do A. navae são os olhos, cujas órbitas são imensas em relação ao tamanho da cabeça. A característica pode indicar hábitos noturnos. Estaríamos falando, portanto, de um animal furtivo, provavelmente de hábitos oportunistas, comendo tanto plantas quanto insetos e outros pequenos animais. É um nicho ecológico muito parecido com o da maioria dos mamíferos existentes no Cretáceo. A espécie não é o único crocodiliforme com hábitos alimentares mais variados. O Mariliasuchus amarali exibe várias dessas mesmas características, entre elas a especialização dentária.

Quando pensamos em crocodilos onívoros, no entanto, poucos batem o recorde de estranheza estabelecido pelo Armadillosuchus arrudai em 2009, quando dois de nós (Carvalho e Marinho) publicamos a descrição da espécie. Também encontrado em General Salgado, o animal, com cerca de 2 m e 90 kg, apresenta um mosaico de traços morfológicos que fazem lembrar os tatus atuais.

Para começar, atrás da cabeça da criatura estava disposta uma cúpula de placas ósseas hexagonais, mas que permitiam o movimento do pescoço. Atrás desse chamado escudo cervical está um conjunto de oito bandas móveis guarnecidas por esse mesmo tipo de armadura – bandas móveis um bocado similares às que se encontram entre os tatus. Para completar o conjunto, as patas da frente eram guarnecidas com garras que talvez permitissem cavar tocas com efi ciência. Eis um animal que os Baurusuchus teriam grande dificuldade em devorar.

Não há dúvida de que outras descobertas como essas estão à espera dos que continuarem a vasculhar os afloramentos rochosos e os cortes de estrada do interior do Brasil. Ao mostrar como um grupo aparentemente tão bem conhecido de animais explorava possibilidades insuspeitas de sobrevivência no passado remoto, elas deixam claro a capacidade do processo evolutivo para moldar belas, intrincadas e surpreendentes criaturas.
Felipe Mesquita de Vasconcellos, Ismar de Souza Carvalho, Reinaldo José Lopes e Thiago da Silva Marinho Felipe Mesquita de Vasconcellos é biólogo formado pela UFRJ, com mestrado e doutorado em geologia pela mesma universidade. É paleontólogo e professor da UFRJ.
Ismar de Souza Carvalho é geólogo formado pela Universidade de Coimbra, com doutorado e mestrado em geologia pela UFRJ e pós-doutorado pela Unesp.
Reinaldo José Lopes é editor de Ciência da Folha de S.Paulo e autor do livro “Além de Darwin”.
Thiago da Silva Marinho é biólogo formado pela Universidade Federal de Uberlândia, com mestrado e doutorado em geologia pela UFRJ.  - 
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Berçário de montanhas
Fissuras microscópicas em cristais ajudam a resgatar a história do planalto da Bocaina
Edição Impressa 177 - Novembro 2010

© silvio hiruma / instituto geológico
                             Perfil acidentado na costa sudeste
Uma gigantesca calha corre paralela à costa brasileira ao longo de 1.000 quilômetros entre Curitiba, no Paraná, e Barra de São João, no Rio de Janeiro. É o Rift Continental do Sudeste do Brasil, uma formação geológica parecida com um vale com mais ou menos 100 quilômetros de largura por onde corre o rio Paraíba do Sul. Ele é ladeado por duas cadeias escarpadas, a serra do Mar e a da Mantiqueira, e abriga cidades importantes como Curitiba, São Paulo, Taubaté, Resende e Volta Redonda. Silvio Hiruma, do Instituto Geológico de São Paulo, vem investigando a geologia de um trecho dessa formação – o planalto da Bocaina – e concluiu que essas serras se formaram em momentos bem distintos.

O mais antigo deles aconteceu há cerca de 120 milhões de anos: foi a separação entre a África e a América, que gerou na costa brasileira tensões suficientes para fazer crescer ainda mais a serra do Mar, hoje a leste do rio Paraíba do Sul. Os picos mais elevados dessa serra, com mais de 2.000 metros de altitude, compõem os 1.800 quilômetros quadrados do planalto da Bocaina, que ainda guarda partes preservadas provavelmente desde antes da separação dos continentes. “É uma região que não sofreu uma erosão forte, por isso é importante para investigar a história geológica dessa serra”, diz Hiruma.

A cadeia mais no interior, a serra da Mantiqueira – onde está Campos do Jordão, destino favorito de paulistas durante o inverno para aproveitar lareiras, cobertores, fondues e chocolates quentes, além de tirar os casacos do armário –, se formou por volta de 60 milhões de anos mais tarde, quando movimentações geológicas resultaram na abertura do rift continental.
O que permite a datação de eventos de exposição e erosão nas rochas cristalinas muito antigas que formam a região, em que marcadores cronológicos são raros, é observar os traços de fissão em grãos de apatita. São defeitos na estrutura cristalina do mineral visíveis apenas ao microscópio depois de um tratamento químico. Esses traços são preservados quando a rocha que estava aquecida em camadas profundas abaixo da superfície terrestre se resfria. “A densidade desses traços permite estimar há quanto tempo aquela apatita passou pelas porções mais superficiais da crosta”, explica o geólogo. O trabalho fez parte do projeto coordenado por Claudio Riccomini, da Universidade de São Paulo, um dos pioneiros no estudo da região e orientador de Hiruma durante o doutorado. Parte das análises foi feita na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, em colaboração com o grupo de Peter Hackspacher.

As datações indicaram que o planalto da Bocaina preserva testemunhos de épocas muito diversas. “Foi uma somatória de soerguimentos seguidos por erosão”, explica Hiruma. As idades apontadas pelos grãos de apatita de amostras coletadas em diferentes altitudes desse planalto variam desde cerca de 46 milhões de anos até por volta de 303 milhões de anos atrás, segundo artigo publicado este mês na Gondwana Research. De maneira geral, as amostras mais antigas estão acima de 1.400 metros de altitude, região das cabeceiras do rio Paraitinga e do ribeirão Capetinga, e as com menos de 130 milhões de anos estão abaixo, a exemplo da região do rio do Funil e da serra da Carioca.
Se a tendência fosse constante, contaria uma história bastante simples, de montanhas se elevando e sendo erodidas. Mas não é o caso: amostras diferentes coletadas na mesma altitude revelaram idades de traços de fissão bem diferentes, de 60 milhões e 137 milhões de anos. Além disso, uma amostra com 303 milhões de anos foi encontrada no meio da escarpa que delimita o norte do planalto da Bocaina, numa altitude de 1.058 metros.
Traços do passado – Essa distribuição de idades revela uma história complexa de processos geológicos diversos. Depois da separação dos continentes, eventos magmáticos em dois pulsos principais, por volta de 80 milhões e 65 milhões de anos atrás – época da formação do Rift Continental do Sudeste do Brasil –, também causaram soerguimento das montanhas. Nos últimos milhões de anos, movimentos da crosta continua­ram a alterar a organização geo­lógica por ali. O resultado de toda essa atividade são alterações dramáticas no relevo, em que redes de drenagem dos rios são invertidas, montanhas se elevam e falhas se abrem como rasgos.

A comparação com Campos do Jordão, na Mantiqueira, está no início: só duas amostras, ante 27 de Bocaina. Por enquanto, parece que a região de Campos do Jordão tem rochas que foram expostas bem mais tarde do que as da Bocaina, trabalho que Hiruma e colaboradores pretendem continuar nos próximos anos.
Para complicar a viagem no tempo empreendida pelos pesquisadores, as rochas formadas e revolvidas por processos diversos não ficam necessariamente à espera de geólogos que contem sua história. Processos erosivos que acontecem até hoje já existiam centenas de milhões de anos atrás, de maneira que testemunhos mais superficiais muitas vezes deixam de existir. Isso torna o trabalho mais árduo e o mosaico mais desafiante, mas nada que cause desânimo. A técnica de traço de fissão começou a ser mais usada em estudos geológicos nos últimos 30 anos, bem recente para esse tipo de pesquisa. Abriu portas que, Hiruma espera, serão cada vez mais exploradas nas próximas décadas e acabarão por revelar muito da história deste continente.

> Artigo científico

HIRUMA, s. t. et al. Denudation history of the Bocaina Plateau, serra do Mar, southeastern Brazil: Relationships to Gondwana breakup and passive margin development. Gondwana Research. v. 18, n. 4, p. 674-87. nov. 2010.

A vez do tempo

24/11/2010
Por Fábio de Castro
Agência FAPESP – Graças às novas tecnologias e a investimentos satisfatórios, os estudos sobre biodiversidade têm explorado com eficiência a dimensão espacial dos biomas. Mas, para que o conhecimento avance, é preciso investir na dimensão temporal, com estudos de longa duração.
Essa foi a síntese da palestra de abertura do International Workshop on Long-Term Studies on Biodiversity apresentada pelo coordenador do evento, Luciano Verdade, professor do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (Cena) da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP).
O encontro, promovido pelo Programa Biota-FAPESP, foi realizado nesta terça-feira (23/11), em São Paulo, com o objetivo de sensibilizar a comunidade científica a respeito dos chamados programas de estudos de longa duração sobre biodiversidade.
A vez do tempo
Modelos para representar distribuição espacial de espécies são eficazes, mas precisam considerar a dimensão temporal, diz pesquisador em workshop do Biota-FAPESP (foto: Biota)

Tendência em vários países, esses estudos possibilitam entendimento – em escalas espacial e temporal mais amplas – dos processos biológicos e humanos que determinam o padrão de distribuição e a abundância de espécies.
De acordo com Verdade, que é membro da coordenação do Biota-FAPESP, os estudos de longo prazo em documentação e conservação da biodiversidade não são apenas uma tendência, mas uma necessidade incontornável.
“Quando levamos em conta a complexidade dos estudos que tratam da conservação e abundância das espécies, vemos que se trata de uma necessidade. Por isso, o workshop não tem como objetivo apenas apresentar o estado da arte de determinado tema ligado à biota. Temos foco em um objetivo prático: trazer para São Paulo a experiência de grupos de pesquisa que tenham trabalhado em estudos de longa duração”, disse.

O evento, segundo ele, é coerente com as diretrizes da segunda fase do programa da FAPESP, chamada de Biota+10 e iniciada em 2009. Em sua primeira década, o programa teve foco em levantamento da fauna e flora em território paulista. Nos dez anos seguintes, estabeleceu-se que, além desses objetivos, seriam acrescentadas novas abordagens interdisciplinares.
“Esperamos que o compartilhamento dessas experiências internacionais possa despertar o debate para que possamos, com o Biota e a FAPESP, implantar programas de estudo de longo prazo”, disse Verdade.
O desafio de realizar estudos de longa duração em São Paulo não representa apenas uma necessidade de aumentar o tempo cronológico das pesquisas, mas também de considerar uma nova forma de percepção do tempo. “Precisamos passar a perceber o tempo de forma diferente, não apenas em termos cronológicos, mas em forma de processos”, disse.

Verdade explicou que na Grécia pré-helênica o conceito de tempo era dividido em duas palavras diferentes, correspondentes a dois deuses: Cronos e Cairos. O primeiro correspondia ao tempo cronológico, massacrante e implacável. O segundo era o deus das estações e correspondia a um tempo “existencial”, ligado aos processos.

“Na cultura ocidental moderna temos uma só palavra para a ideia de tempo, mas na prática o tempo tem várias faces. Precisamos nos voltar para esse tempo dos processos”, disse.
Com a instrumentação disponível atualmente, a partir de investimentos com satélites e estruturas computacionais, entre outros, foi possível construir uma ideia avançada da percepção da heterogeneidade espacial dos biomas.

“Isso ganhou tanta projeção que muitas vezes subestimamos o papel da heterogeneidade temporal para a realidade que queremos monitorar e modificar. Os modelos são, em geral, baseados na presença e ausência de espécies, mas não em sua abundância. Em geral, a dimensão do tempo é achatada, de forma que os modelos consideram apenas os padrões momentâneos. Outra limitação do aparato de satélites e dos modelos é que eles só permitem observar os padrões modernos”, afirmou.

Dimensão temporal

Quando se observa uma matriz composta de plantações de eucaliptos e de alguns remanescentes de vegetação nativa, por exemplo, é fácil perceber que a presença de carnívoros é maior nos pontos onde a paisagem é mais heterogênea. Isto é, a heterogeneidade espacial influencia os padrões de presença e abundância das espécies.
“Mas as projeções mostram essas comunidades em um só momento, não sendo capazes de trazer uma compreensão dinâmica de seu padrão ao longo do tempo. Uma das premissas que geralmente usamos nos artigos científicos é que há uma correlação entre os índices de abundância e a abundância real dos animais. Mas é possível que haja variação, de forma que essas figuras representem algo mais influenciado pelo método de observação do que a realidade de fato”, afirmou.
Na discussão de resultados, muitas vezes, os artigos científicos partem da premissa de que os padrões detectados não variam com o tempo, segundo Verdade.
“A partir daí se recomenda aos gestores públicos que qualquer mudança nos padrões é um perigo para a biodiversidade. Mas, quando se insere a dimensão temporal, sabemos que é inevitável que haja mudanças nos padrões. Portanto, é arriscado recomendar a manutenção de padrões definidos sem a dimensão temporal”, explicou.
Outra premissa comum é que espécies raras sejam mais propensas à extinção. “Sabemos que essa premissa também não é sempre verdadeira. Pelo contrário, na natureza é comum ser raro. E é raro ser comum. Por isso, partir do pressuposto de que as espécies raras são bons indicadores de qualidade do habitat também é arriscado”, disse.
“Quando vamos a campo e partimos da imagem de satélite para algo mais próximo às espécies em si, em relação à paisagem, percebemos que há muitos fragmentos de florestas e matrizes de pastagens e de cana-de-açúcar. Esse é um ambiente típico no Estado de São Paulo. Cada uma dessas manchas que forma a paisagem tem uma variação ao longo de um ano que pode ser dramática para os padrões que vamos encontrar”, disse Verdade.

As paisagens cobertas por plantações de cana-de-açúcar – que totalizam 9 milhões de hectares no Brasil – têm variações anuais entre zero e 100 toneladas de biomassa por hectare, segundo Verdade. Essa biomassa proporciona o aparecimento de espécies como roedores, por exemplo, que atraem seus predadores para essas áreas.
“A presença de muitas das espécies pode variar se considerarmos os padrões ao longo do tempo. Algo parecido ocorre nas plantações de eucalipto, que variam entre zero e 300 metros cúbicos de madeira em ciclos de seis a sete anos. Algumas espécies conseguem usar esses recursos criando cadeias tróficas mais simples que a da cobertura original, mas que não podem ser ignoradas”, explicou.
Certas flutuações tendem a ser cíclicas em maior ou menor escala. Outras mostram um padrão de espécies que aumentam sua presença, colonizando a paisagem. Outras, ainda, tendem a desaparecer, por não se adaptar. Algumas podem desaparecer e depois voltar.
“Algumas espécies podem apresentar um padrão caótico de flutuação e outras podem apresentar variações populacionais determinadas por eventos singulares”, indicou.

Mais dados

A presença humana, que também varia ao longo do tempo, precisa ser considerada quando se vai a campo, segundo o professor do Cena. “Além disso, temos que considerar a evolução das espécies, uma vez que elas se adaptam às mudanças do ambiente”, disse.
“Esse processo de adaptação pode ser fisiológico, de aclimatação, mas pode ser proveniente também de uma mudança no patrimônio gênico de certas espécies. Para algumas delas, poucas décadas representam centenas de gerações”, completou.
Por conta de todas essas modificações constantes dos padrões ao longo do tempo, os estudos em biodiversidade precisam considerar uma escala espaço-temporal mais longa.
“Para estudar os processos ao longo do tempo, precisamos trabalhar em rede nessas paisagens, montando e mantendo um banco de dados aberto, que mostre nossos diversos biomas e as paisagens agrícolas principais do estado. Os dados gerados precisam ser compatíveis e comparáveis – o que não é trivial sob nenhum ponto de vista”, afirmou Verdade.

A vantagem desse tipo de estudo, segundo ele, é que a precisão conseguida pelos modelos de presença, abundância e distribuição das espécies é muito maior.
“Hoje, os lugares vazios nos mapas correspondem à ausência de evidências da presença de uma espécie. Queremos que esses vazios passem a ser, ao contrário, a evidência de ausência das espécies. Isto é, muitas das lacunas que temos atualmente nos mapas não significam que ali há pouca presença das espécies. Significa que há pouca presença de dados”, disse.

Fonte: Fapesp

terça-feira, 23 de novembro de 2010

O voo da serpente

23/11/2010
Agência FAPESP – Para quem tem ofidiofobia, a perspectiva de encontrar serpentes não no chão, rastejando, mas “voando” por sobre suas cabeças, está longe de ser das melhores. Mas é o que ocorre com algumas espécies encontradas no Sudeste Asiático, que são capazes de se deslocar pelo ar, de uma árvore a outra, ou das árvores para o solo.

Cientistas da Virginia Tech, nos Estados Unidos, analisaram os mecanismos por trás da inusitada capacidade dessas espécies e apresentaram os resultados em encontro da American Physical Society Division of Fluid Dynamics (DFD), na Califórnia, nesta segunda-feira (22/11).
O grupo registrou em vídeo os deslocamentos pelo ar de exemplares da Chrysopelea paradisi, que se atiraram do alto de uma torre de 15 metros de altura até o chão.

O voo da serpente
Pesquisadores analisam a dinâmica de movimentos de serpentes do Sudeste Asiático, que são capazes de planar por mais de 15 metros entre árvores ou até o chão (divulgação)

Os registros foram feitos com quatro câmeras instaladas em pontos diferentes, o que permitiu aos cientistas fazer uma reconstrução em três dimensões das posições do corpo do animal enquanto planava.
A análise da dinâmica de movimentos e das forças atuantes indicou que o réptil, apesar de se deslocar no ar por uma distância considerável com relação à dimensão de seu corpo, não atinge um estágio de equilíbrio com relação ao próprio movimento.

Ou seja, não chega a um ponto em que as forças geradas por seu corpo ondulado se contrapõem exatamente à força que puxa o animal para baixo, o que faria com que se movesse em velocidade e angulação constante. Por outro lado, a serpente também não cai simplesmente no chão.

“Em vez disso, ela é empurrada para cima, mesmo que se mova para baixo, porque o componente para cima da força aerodinâmica é maior do que o peso do animal”, disse Jake (John) Socha, um dos autores do estudo. O trabalho também será publicado na revista Bioinspiration and Biomimetics.

“Hipoteticamente, isso significaria que, se a serpente continuasse com esse deslocamento, acabaria mesmo se movendo para cima, o que seria algo ainda mais impressionate. Mas nosso estudo aponta que o efeito é apenas temporário e que a serpente acaba chegando ao chão após o deslocamento”, disse.
O artigo Non-equilibrium trajectory dynamics and the kinematics of gliding in a flying snake, de John J. Socha, poderá ser lido por assinantes da Bioinspiration and Biomimetics em ??
Mais informações: http://iopscience.iop.org/1748-3190

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Unesp inaugura centro de geociências com ênfase no pré-sal

Unespetro atuará na formação de especialistas e na pesquisa aplicada ao petróleo

22/11/2010 - 16:09
EPTV

A Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro e a Petrobras inauguram nesta terça-feira (23), às 9h, o edifício do Unespetro (Centro de Geociências Aplicadas ao Petróleo), o primeiro complexo de uma universidade brasileira criado para estudar rochas que formam a camada do pré-sal.

O centro começou a ser construído em 2008 e tem 2 mil metros quadrados. O objetivo é atuar na formação de especialistas e no desenvolvimento de pesquisas, com ênfase em rochas carbonáticas, aquelas que formam a camada pré-sal e outros importantes reservatórios petrolíferos brasileiros.

O investimento total é de R$ 10,5 milhões e os equipamentos vão chegar nos próximos meses. Na inauguração do centro, será aberta uma exposição de rochas parecidas com as do pré-sal.

A diferença é que elas foram encontradas no continente, em vários estados do país. Esse trabalho já faz parte de um dos estudos do centro. Os pesquisadores querem saber como elas se formaram e qual a estrutura. As respostas vão ajudar no melhor aproveitamento do petróleo.


O centro vai ser o maior do Brasil nos estudos desse tipo de rocha. A rede de pesquisa também envolve a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e outras três universidades do Rio de Janeiro.

 Fonte: EPTV

Cães assintomáticos podem ter genes que os protegem da distrofia muscular

Há sete anos, o golden retriever Ringo intriga os pesquisadores do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP.  Ele tem uma mutação genética que o impede de produzir distrofina, proteína essencial para a manutenção da integridade dos músculos.  O defeito deveria ter levado o cão a apresentar, desde muito cedo, os sinais clínicos clássicos de distrofia muscular, como dificuldade para andar e deglutir, e hoje provavelmente nem deveria estar mais vivo se tivesse desenvolvido a doença. Mas Ringo é sadio, praticamente normal. A mutação o fez no máximo puxar um pouco as patas traseiras. Quatro anos e meio atrás, teve um filho, Suflair, que, como ele, herdou o mesmo defeito genético, mas também não manifesta a distrofia.  Outros irmãos de Suflair não tiveram a mesma sorte: morreram dias após nascer ou acabaram desenvolvendo distrofia muscular de forma severa. 
Ringo e Suflair são exceções à regra. Por isso, têm sido alvo de vários estudos – e é de um desses trabalhos que saiu uma evidência de por que os músculos desses cachorros não sucumbiram à ausência de distrofina. Os animais parecem carregar genes ou mecanismos protetores que neutralizam total ou parcialmente os efeitos negativos da mutação causadora da doença.

Num experimento feito em colaboração com o laboratório de Sergio Verjovski-Almeida, do Instituto de Química da USP, os pesquisadores viram que alguns genes dos cães assintomáticos eram menos expressos (ativados) que os dos animais doentes.  “Nossa hipótese é de que a menor expressão desses genes pode conferir alguma forma de proteção aos cães e talvez ser importante para encontrarmos uma forma de combater a doença”, afima a geneticista Mayana Zatz, coordenadora do centro.  “Estamos quebrando um paradigma e mostrando que nem sempre a falta da proteína leva à distrofia.” Como ainda não publicaram um artigo científico sobre o estudo, os geneticistas da USP preferem não dar mais detalhes sobre a localização do possível gene protetor.
As suspeitas de Mayana ganharam mais força quando sua equipe tomou contato com o trabalho da veterinária Diane Shelton, que chefia um laboratório na Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD) especializado no diagnóstico de doenças neuromusculares em animais domésticos. Desde 2008, a pesquisadora americana contabiliza nove casos de cães que não produzem distrofina, mas não apresentam sintoma algum da doença. Os cães assintomáticos, no entanto, não são da raça golden retriever. São todos labradores e – detalhe interessante – oriundos de dois criadores de New Hampshire e Massachusetts, estados vizinhos da costa leste americana, que partilharam uma mesma fêmea para produzir a ninhada de cães. “Olhando para os cães, ninguém consegue dizer que eles têm distrofia”, diz Diane. “Acho que fatores modificadores desempenham algum papel para que esses cachorros sejam clinicamente normais.”

Labrador assintomático - A notícia da descoberta dos labradores assintomáticos caiu literalmente no colo da equipe brasileira.  Há alguns meses, a bióloga Natássia Vieira, que faz doutorado sob orientação de Mayana e estuda o uso de células-tronco nas distrofias musculares, estava num seminário em Boston quando ouviu uma apresentação de Diane Shelton. Além de relatar a história dos cães americanos, a veterinária disse, em sua exposição, que iria entrar em contato com a “mãe” do Ringo, o golden retriever assintomático estudado há tempos na USP, para enviar amostras de DNA dos labradores. Nem foi preciso sair da sala para a parceria ter início. Diane foi imediatamente apresentada a Natássia, que estava na plateia, e alguns dias depois a brasileira recebeu as amostras antes de deixar Boston e voltar para o Brasil.
Comparar o DNA dos golden retriever e dos labradores assintomáticos pode acelerar o caminho para encontrar supostos mecanismos moleculares de proteção à distrofia muscular . A estratégia ganhou mais força ainda quando a equipe de Mayana deixou escapar um pequeno segredo da alcova canina. “Ringo e Suflair não são puros”, afirma Natássia.  “Eles carregam material genético da raça labrador.” Um quarto do genoma de Ringo e um oitavo do de Suflair devem ser originários da outra raça. Mayana conta que ficou furiosa quando, anos atrás, descobriu que uma das golden retriever, portadora da mutação no gene da distrofina, havia sido cruzada com um labrador. Hoje comemora o fato de ter sido agraciada com uma colônia de cães impuros:  “A mistura com labrador pode ter livrado Ringo e Suflair de terem a doença”.

A procura por supostos genes capazes de compensar a falta de produção de distrofina e evitar a manifestação dos sintomas da doença levou a equipe da USP a estabelecer recentemente uma parceria internacional com um dos maiores especialistas no estudo das bases genéticas das distrofias musculares, Louis Kunkel, professor da Escola Médica de Harvard. Em 1987, Kunkel descobriu a causa da distrofia muscular de Duchenne: identificou no cromossomo X o gene da distrofina que, quando alvo de mutações, deixa de produzir sua respectiva proteína.  “Se descobrirmos que outro gene ou genes, além da distrofina, podem realmente modificar o quadro da doença em cachorros, esses genes e suas proteínas poderiam ser grandes alvos para terapias em humanos”, afirma Kunkel.

No laboratório do pesquisador americano, Natássia está usando o zebrafish, peixe adotado como modelo animal de doenças, para descobrir se os candidatos a gene protetor da distrofia muscular identificados em Ringo e Suflair atenuam ou até evitam os sintomas da doença. “Nossa ideia é fazer os supostos genes protetores se expressarem em peixes com distrofia da mesma forma que nos cachorros assintomáticos e ver qual é a repercussão clínica dessa abordagem”, diz Natássia. Se a estratégia funcionar, os pesquisadores provavelmente terão feito uma descoberta importante. Se não der resultados, será necessário estudar ainda mais Ringo, Suflair e seus “primos” labradores assintomáticos. De qualquer forma, a notícia de que músculos sem distrofina podem se manter funcionais é animadora.

Fonte: http://revistapesquisa.fapesp.br/

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Colmeia com rainha forasteira

18/11/2010
Por Fábio Reynol
Agência FAPESP – Em uma colmeia, a sucessora da abelha-rainha será uma de suas descendentes. Pelo menos é o que se imaginava. No entanto, uma pesquisa feita com a Melipona scutellaris, uma espécie da tribo Meliponini que compreende as abelhas sem ferrão, mostra que isso pode não ocorrer.
O trabalho fez parte do doutorado da bióloga Denise de Araujo Alves, defendido e aprovado em agosto e publicado em outubro na revista Biology Letters.

Denise contou com Bolsa de Doutorado Direto da FAPESP e seu estudo esteve inserido no Projeto Temático “Biodiversidade e uso sustentável de polinizadores”, que se realizou no âmbito do Programa Biota-FAPESP e foi coordenado por Vera Lúcia Imperatriz Fonseca, professora titular em Ecologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP).

Colmeia com rainha forasteira
Pesquisa feita no Instituto de Biociências da USP demonstra que algumas espécies de abelhas sem ferrão podem ter rainha de fora da colmeia (divulgação)

“O resultado foi surpreendente. Verificamos que, nas colônias nas quais houve substituição natural de rainhas fecundadas, as rainhas substitutas, em alguns casos, não eram oriundas daquela colônia”, disse Vera Lúcia à Agência FAPESP.

A pesquisa trouxe as primeiras evidências de um parasitismo social intraespecífico para colônias de abelhas Meliponini. O primeiro a sugerir a ideia foi o pesquisador holandês Marinus Sommeijer. Em experimentos na Costa Rica e em Trinidad Tobago, chamou-lhe a atenção o elevado número de abelhas-rainhas que nasciam em uma colônia, o que o levou a lançar a hipótese de que algumas poderiam assumir um ninho órfão (sem rainha).

Mas Sommeijer, após um estudo baseado em observações que rainhas saiam vivas das colônias, não levou adiante a investigação e a hipótese ficou sem comprovação.
Denise começou seu trabalho em São Simão (SP), com abelhas do experimento do professor Paulo Nogueira Neto, também do IB-USP. Nessa fase, ela coletou pupas de favos dos ninhos amostrados em diferentes épocas do ano.
Esse material foi submetido a uma análise molecular na Bélgica pelo professor Tom Wenseleers, da Universidade de Leuven. Nos resultados, foram detectadas evidências da existência de rainhas oriundas de outras colmeias.
“Acreditava-se que uma rainha que não assumisse o ninho em que nasceu seria morta logo ao emergir ou sairia com parte das operárias para fundar um novo ninho. Mas o experimento apontou outra possibilidade: ela poderia assumir um ninho órfão”, disse Denise, destacando que a descoberta derrubou também a crença de que a abelha-rainha teria de ser uma descendente de sua antecessora.
Para dar suporte biológico à nova tese, a bióloga aprofundou a investigação. Retirou as rainhas de alguns ninhos mantidos no Laboratório de Abelhas da USP, em São Paulo, e observou-os para ver quem seria a nova rainha.

Primeiro, foi determinado o genótipo parental das pupas da colônia original por meio da técnica de marcadores moleculares de microssatélites. A seguir, após a fecundação da nova rainha, parte de sua asa foi retirada. O material foi submetido à análise de genótipos parentais para indicar o ninho de origem do inseto. Depois, a cria da nova rainha também foi genotipada.

O resultado foi que, em cerca de 25% das substituições das rainhas-mãe, o genótipo das novas crias não coincidiu com o das pupas originais da colmeia, confirmando o parasitismo social intraespecífico.
“Como esse fato foi observado em duas localidades diferentes, São Simão e São Paulo, acreditamos que se trata de um fenômeno comum a esse grupo”, disse Denise.
“No Brasil, relatos de criadores de abelhas sem ferrão também se referem a rainhas virgens andando nas proximidades dos meliponários, mas a sua importância para as colônias órfãs era desconhecida”, afirmou.
Parasitismo intraespecífico
Uma das consequências da descoberta atinge os criadores de abelhas sem ferrão. O protocolo atual de melhoramento genético não considera a possibilidade de uma interferência genética externa por meio da introdução de uma rainha estranha ao ninho.
“Descobrimos que não há como garantir que a linhagem obtida no melhoramento permanecerá constante ao longo das gerações”, observou Denise. Com isso, se um produtor adquiriu uma colmeia com uma linhagem de alta produção de mel, não há garantias de que esses resultados continuarão, pois a colônia está sujeita a receber uma rainha com genótipo diferente.
“Esse estudo abre uma nova linha de pesquisa acadêmica, a de parasitismo intraespecífico, e terá aplicações práticas na genética de populações”, disse Vera Lúcia. Segundo ela, as análises moleculares serão cada vez mais aplicadas na resolução de problemas comportamentais.

“Nossos próximos passos serão no sentido de verificar se esse fenômeno ocorre em todas as abelhas do gênero Melipona”, disse. As abelhas da tribo Meliponini, foco do Projeto Temático coordenado por Vera Lúcia, possuem o ferrão atrofiado. Apenas na região neotropical, que nas Américas vai do México até a Argentina, elas se dividem em mais de 400 espécies já descritas, mas se estima que o número seja bem maior.

“Além disso, essas abelhas são agentes polinizadores muito importantes tanto de espécies vegetais de áreas conservadas como de culturas agrícolas de interesse econômico”, disse.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Infância mais demorada dos Neandertais

16/11/2010
Agência FAPESP – As crianças parecem crescer muito rapidamente e com velocidade que dá a impressão de aumentar a cada geração. Mas, de acordo com a antropologia evolutiva, a infância humana é longa, mais do que a dos outros primatas. E é uma infância também mais demorada do que a dos antepassados do homem moderno, segundo um estudo que será publicado esta semana no site e em breve na edição impressa da revista Proceedings of the National Academy of Sciences.

A pesquisa, feita a partir da análise de dentes de fósseis e da comparação com dados atuais, indica que o neandertal atingia a maturidade mais cedo do que o homem moderno. Essa lentidão não é ruim, muito pelo contrário. Segundo o estudo, o amadurecimento mais longo pode ter sido uma vantagem evolutiva em comparação com as espécies humanas extintas.
O estudo, feito por cientistas dos Estados Unidos e da Europa, indica que o desenvolvimento lento e a infância longa são recentes e únicos para o gênero humano.
“Dentes registram o tempo notavelmente, capturando cada momento do desenvolvimento tal qual anéis de crescimento das árvores. Ainda mais impressionante é o fato de que nossos primeiros molares contêm uma minúscula certidão de nascimento, uma linha que permite calcular exatamente a idade de um jovem ao morrer”, disse Tanya Smith, da Universidade Harvard, primeira autora do estudo.
Em comparação com o homem, os outros primatas têm gestação mais curta, amadurecimento mais rápido, chegam mais cedo à idade reprodutiva e vivem menos, em média. Não se sabe quando tal diferenciação ocorreu nos cerca de 6,5 milhões de anos da escala evolucionária desde que o homem se separou dos demais primatas.

A pesquisa envolveu alguns dos mais célebres fósseis de crianças neandertais já descobertos, como o primeiro deles, encontrado em 1829 na Bélgica. Até então, estimava-se que o fóssil fosse de uma criança de 4 ou 5 anos, mas a análise por meio de raios X com radiação síncrotron revelou que o indivíduo tinha apenas 3 anos quando morreu.

Segundo os autores, embora contar linhas nos dentes não seja um novo método, fazer isso “virtualmente”, por meio de tomografia computadorizada e radiação síncrotron, é novidade em tal tipo de estudo.
O artigo Dental evidence for ontogenetic differences between modern humans and Neanderthals (doi/10.1073/pnas.1000948107), de Tanya M. Smith e outros, poderá ser lido em breve por assinantes da PNAS em www.pnas.org/cgi/doi/10.1073/pnas.1010906107.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Física da biosfera

17/11/2010
Por Fábio de Castro
 
Agência FAPESP – Cientistas brasileiros e alemães se reuniram nesta terça-feira (16/11), na sede da FAPESP, em São Paulo, para discutir os rumos da pesquisa ambiental nos dois países.
O workshop sobre o tema “Física da biosfera” abriu o primeiro dia do programa científico do Ano Brasil-Alemanha de Ciência Tecnologia e Inovação, promovido pela Academia Brasileira de Ciências (ABC) e pela Academia Leopoldina, da Alemanha.

Além do tema discutido em São Paulo, a programação inclui mais dois workshops nesta quarta-feira (17/11), “Materiais avançados”, na sede da ABC, no Rio de Janeiro, e “Gerontologia e doença cronodegenerativas”, no Instituto do Coração (InCor), na capital paulista.
Os coordenadores do workshop “Física da biosfera” foram Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e membro da coordenação do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG), e Meinrat Andreae, diretor do Departamento de Biogeoquímica do Instituto Max Planck de Química, na Alemanha.
De acordo com Artaxo, o objetivo do evento foi identificar temas de interesse científico comum e fomentar iniciativas de pesquisa colaborativa entre os dois países.
“Esse evento de cooperação entre o Brasil e a Alemanha reconhece que hoje não se faz mais ciência de forma isolada, nem em um único país, nem em uma única disciplina. A cooperação internacional é absolutamente fundamental para o sucesso de ciência de alta qualidade”, disse à Agência FAEPSP.

Segundo o físico, ao longo dos últimos 20 anos, várias parcerias de sucesso surgiram entre Brasil e Alemanha na área de ciências ambientais. “Percebendo isso, a ABC e a Academia Leopoldina resolveram programar essa série de eventos, a fim de intensificar ainda mais cooperações científicas – em especial na área ambiental. O objetivo é que essa aproximação gere grandes projetos internacionais de longo prazo que serão implementados ao longo dos próximos anos”, explicou.

No workshop foram escolhidas três áreas centrais das ciências ambientais: mudanças climáticas globais, poluição atmosférica urbana e processos que regulam o funcionamento de ecossistemas de florestas tropicais como a Amazônia.
“Essas três temáticas foram selecionadas por serem as áreas críticas nas quais precisamos aumentar o conhecimento científico para resolver questões que são estratégicas tanto para o Brasil como para a questão ambiental global”, afirmou Artaxo.
Durante a reunião, os participantes propuseram e discutiram ideias científicas, identificando questões críticas e mais urgentes para serem trabalhadas. “É fundamental discutir conceitualmente em que direção podemos trabalhar para avançar nesses campos”, disse.
Na primeira sessão, Artaxo e Alfred Wiedensohler, do Instituto Leibniz de Pesquisas Troposféricas, da Alemanha, discutiram a questão de poluição do ar urbana. “Essa questão tem relação com o tema dos biocombustíveis, área na qual o Brasil tem uma liderança mundial e na qual a Alemanha tem um grande interesse estratégico”, indicou Artaxo.
Doenças da poluição
De acordo com Artaxo, cada vez se torna mais importante avaliar a questão da poluição nas diversas escalas: urbana, regional e global. Na América Latina, a poluição urbana se concentra especialmente em megacidades com grandes populações e elevado número de automóveis.
Os dois problemas mais graves se encontram em São Paulo – com 18 milhões de habitantes na área metropolitana e 6,5 milhões de carros – e na cidade do México, com 19 milhões de habitantes e 5 milhões de automóveis. “Em geral, o transporte é um fator significativo e bastante óbvio em termos de contribuição para a poluição do ar. Certamente, é o setor que deve merecer a maior atenção”, disse Artaxo.
A variabilidade das emissões de PM10 – partículas inaláveis de diâmetro inferior a 10 micrômetros, que causam diversas doenças respiratórias – é muito dinâmica na capital paulista, segundo o pesquisador.

“As taxas sobem muito entre 8 e 10 horas da manhã, caem drasticamente ao meio dia e começam a subir rapidamente no fim da tarde. O sistema responde muito ao tráfego de veículos”, explicou. Estudos da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) indicam que as emissões veiculares correspondem a 37% da poluição da cidade. Outros 30% são provenientes de aerossóis também associados às emissões veiculares.
“Os aerossóis são partículas sólidas ou líquidas suspensas em um gás. Desse ponto de vista, a própria atmosfera é, por definição, um aerossol. A atmosfera contém partículas que vão de 1 nanômetro a 100 micrômetros de diâmetro”, explicou Wiedensohler.
Os processos de formação de partículas, segundo o cientista alemão, podem se dar por emissão direta – os aerossóis primários –, ou por condensação de gases – os aerossóis secundários. “Na atmosfera, predominam as partículas com menos de 0,1 micrômetro. Os aerossóis urbanos antropogênicos em geral são uma mistura de aerossóis primários e secundários, formados por material condensado”, disse.
As variações da concentração de partículas, no entanto, são grandes. Em áreas polares, a concentração geralmente fica entre uma e 100 partículas por centímetro cúbicos. Sobre os oceanos, entre 100 e mil. Em regiões continentais, normalmente a concentração varia entre 500 e 5 mil por centímetro cúbico. Nas grandes cidades e áreas poluídas, passa dos 100 mil.
Segundo Wiedensohler, as partículas de aerossóis atmosféricos com mais de 0,1 micrômetro podem influenciar diretamente o balanço radiativo da atmosfera, espalhando e absorvendo a luz solar. “As partículas escuras sobre as regiões polares brancas levam ao aquecimento da atmosfera. Por outro lado, partículas claras sobre a superfície escura dos oceanos provocam um efeito de esfriamento”, explicou.

Ciclos naturais exacerbados
 
Carlos Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e coordenador executivo do PFPMCG, ressaltou no workshop questões relacionadas às mudanças climáticas globais. Meinrat Andreae abordou questões acerca de processos relacionados à sociodinâmica da interação entre a população amazônica e o funcionamento do ecossistema da região – que precisam ser melhor compreendidos.
Nobre afirmou que os modelos climáticos globais ainda são insuficientes para estudar com precisão a dinâmica climática em áreas como a Floresta Amazônica. Segundo ele, há quatro fatores principais a serem considerados: a mudança climática, os eventos climáticos extremos, o desflorestamento e os incêndios.
“O que traz grande complexidade a esse sistema é que todos esses fatores interagem de forma contínua e simultânea. Cada fator influencia o outro, exacerbando-o. A aposta que fazemos é que os eventos extremos serão mais comuns no futuro – isso é mais plausível do que imaginar que tudo irá simplesmente secar. Basta considerar que, em 2005, a Amazônia teve sua terceira maior seca da história. Em 2009, a maior inundação da história. E, em 2010, a maior seca de que já se teve registro. Há uma clara exacerbação dos ciclos naturais”, disse.
Segundo Nobre, as mudanças climáticas, as emissões de carbono e a variação de temperatura são fatores primários que induzem às secas. A mudança do uso do solo, o desmatamento e a degradação da floresta são os fatores primários que levam ao fogo que, por sua vez, é um fator secundário.
As respostas do ecossistema a esses fatores, segundo Nobre, são o ponto sobre o qual há mais necessidade de pesquisas atualmente. As principais respostas identificadas são a secundarização – que ocorre depois de duas ou três vezes que a floresta cresce depois de incêndios sucessivos, mudando sua estrutura –, as mudanças na composição das espécies e a mudança do balanço entre mortalidade e crescimento das árvores. O resultado desses processos pode ser a savanização.

Tudo está conectado
 
Andreae destacou que a Amazônia funciona como um grande “reator tropical” operado pela biosfera, com interações entre a atividade humana, a ecologia, o clima e a a química do ecossistema e da atmosfera.
“Para compreender os processos e fatores que operam nesse grande reator, precisamos ter uma visão ampla e, além do regime de chuvas, da dinâmica hídrica, da biodiversidade e de outras características da floresta, temos que levar em conta a atividade humana na região”, disse.

Uma alta do preço do petróleo, por exemplo, pode ter uma influência importante na dinâmica ambiental da Amazônia, segundo Andreae. “Tudo está conectado. Com um preço mais alto do petróleo, o preço do etanol tende a aumentar. Isso faz com que os Estados Unidos produzam mais milho e menos soja, o que acarreta um aumento do preço da soja, tornando esse produto mais atrativo para o produtor brasileiro, cujas plantações poderão avançar sobre a Amazônia”, disse.

A desconexão entre as análises biogeofísicas e o retorno socioeconômico do sistema, segundo Andreae, é um desafio para os programas de pesquisa que investigam o sistema terrestre, como o Programa da Grande Esfera-Atmosfera da Amazônia (LBA), do qual ele e Artaxo participam.
Mais informações sobre os eventos da programação científica do Ano da Alemanha no Brasil:  
http://www.abc.org.br/article.php3?id_article=831

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Panorama da ciência no Brasil e no mundo
Unesco lança relatório com diagnóstico do desenvolvimento da ciência;Brasil tem capítulo exclusivo, de autoria de Carlos Henrique de Brito Cruz e Hernan Chaimovich
Edição Online - 11/11/2010

  Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) lançou nesta quarta-feira (10/11), em Brasília e em Paris, simultaneamente, o Relatório Unesco sobre Ciência 2010. A data corresponde ao Dia Mundial da Ciência pela Paz e pelo Desenvolvimento.
O documento é editado a cada cinco anos para apresentar um diagnóstico do desenvolvimento mundial da ciência. No Brasil, o lançamento ocorreu em audiência pública no Senado Federal, em evento proposto pelo senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), que preside a Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática do Senado e ressaltou o fato de o estudo dar destaque ao Brasil.
O país foi o único da América do Sul a ser contemplado com um capítulo exclusivo, de autoria de Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e Hernan Chaimovich, coordenador dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP e professor da Universidade de São Paulo (USP).
Além de Brito Cruz e de Ribeiro, participaram da audiência Vincent Defourny, representante da Unesco no Brasil, Jailson Bittencourt de Andrade, representando a Academia Brasileira de Ciência (ABC), e Roosevelt Tomé Filho, secretário de Ciência e Tecnologia para a Inclusão Social.
De acordo com Defourny, o relatório apresenta análises extensas sobre a evolução da ciência e tecnologia por regiões no mundo e destaca alguns países que apresentam características de evolução de políticas ou de investimentos que podem se tornar exemplares no contexto global.
“O relatório mostra que, ao lado da clássica tríade que sempre se destaca na ciência e tecnologia – Estados Unidos, Japão e União Europeia –, há a crescente importância de países emergentes como a Coreia do Sul, a India e a China. E também o Brasil, que aparece ainda de forma modesta, mas com um papel que lhe permite crescer e avançar”, disse Defourny à Agência FAPESP.
Segundo ele, no caso do Brasil, os números indicam grande evolução recente no setor, mas uma relativa estagnação nos últimos anos. “O país desenvolveu uma base acadêmica competitiva em ciências, mas há ainda uma série de desafios. A taxa de crescimento no número de doutores, por exemplo, foi de 15% ao ano por muito tempo. Nos últimos três anos, o crescimento continuou, mas foi de apenas 5% por ano. É um sinal de estagnação. Será uma tarefa do novo governo federal olhar para esses dados de forma muito detalhada”, afirmou.
Um dos problemas diagnosticados pelo relatório no país é a falta de investimento no setor por parte do governo e, especialmente, das empresas privadas. “A pesquisa e desenvolvimento na indústria precisa receber uma atenção maior até mesmo do que a pesquisa acadêmica”, disse.
O relatório indica que o investimento em ciência no Brasil deriva principalmente do setor público: 55%. O país está abaixo da média da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) na relação entre o investimento bruto em pesquisa e desenvolvimento (GERD, em inglês) e o produto interno bruto (PIB) do país.
Para alcançar a média da OCDE de financiamento público à pesquisa e desenvolvimento (P&D), o Brasil precisaria investir um adicional de R$ 3,3 bilhões ao ano, montante que corresponde a três vezes o orçamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Nos gastos empresariais com P&D, a média dos países membros da OCDE é o triplo da encontrada no Brasil. Para igualar esse patamar, seria preciso aumentar os gastos privados no setor de US$ 9,95 bilhões ao ano para US$ 33 bilhões.
O desafio, de acordo com o capítulo produzido por Brito Cruz e Chaimovich, pede instrumentos de políticas públicas muito mais efetivos que os empregados até agora pelo Estado Brasileiro. Segundo Brito Cruz, além de reiterar a grande desigualdade regional na produção de ciências no Brasil, o relatório destacou a necessidade de uma melhor articulação entre as iniciativas federais e estaduais.
“Uma articulação entre políticas federais e estaduais não se resume a transferir recursos da União para os estados. É essencial, por exemplo, que os estados participem diretamente da produção de indicadores de ciência e tecnologia. Precisamos de uma política nacional de ciência, tecnologia e inovação, e não de uma política federal desconectada dos estados”, disse à Agência FAPESP.
O relatório da Unesco revela um mapa no qual é possível comparar, periodicamente, o desempenho das várias regiões do mundo em ciência e tecnologia e avaliar suas políticas. Trata-se de um exemplo de como o Brasil deveria mapear o desempenho em suas regiões, de acordo com Brito Cruz.
“São Paulo tem feito isso, mas não temos os dados do Brasil para diagnosticar o que ocorre nos vários estados, para fazer comparações e para pensar em soluções integradas. Sem isso, fazemos um voo cego. A Unesco está dando um ótimo exemplo”, disse.

Menos cientistas em empresas - Entre as principais preocupações manifestadas por Brito Cruz em relação aos diagnósticos incluídos no relatório está o fato de a mais recente Pesquisa de Inovação Tecnológica (Pintec), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ter mostrado que o número de pesquisadores que trabalham em empresas no Brasil diminuiu entre 2005 e 2008.

“Isso é algo que deve nos preocupar muito, porque toda a estratégia e as políticas são feitas para levar mais pesquisadores para a empresa e esse número nem sequer ficou constante: diminuiu em 10% no período. É um problema que precisa ser bem entendido. Precisamos ter esses indicadores com frequência para podermos realimentar as políticas públicas”, destacou. O número de pesquisadores em empresas era de 35 mil em 2000, passou a 40 mil em 2003, 50 mil em 2005 e caiu para 45 mil em 2008.

Para Brito Cruz, houve evoluções importantes no setor no Brasil, mas não basta observar que os indicadores de resultados estão crescendo. “É preciso saber se estão crescendo em relação ao resto do mundo, com quem o país compete”, afirmou.
“A Coreia do Sul edita esse tipo de dados a cada três meses. No Brasil, depois de três anos descobrimos que há menos pesquisadores em empresas. Com tantas políticas, como isso está acontecendo? É preciso entender. Foi identificado o problema e pode haver uma explicação, mas não sabemos qual é. Trata-se de um alerta para nos perguntarmos que resultados essas políticas estão trazendo”, disse.

Outra preocupação, segundo Brito Cruz, é que, apesar da necessidade de formar mais recursos humanos, nas universidades federais o número de concluintes deixou de crescer desde 2004.

“Em 2008 houve menos concluintes do que em 2004. As federais têm uma importante qualidade acadêmica no Brasil, ainda que com heterogeneidade. Precisamos recuperar o crescimento desse sistema”, disse.
Mais informações: www.unesco.org/pt/brasilia

Micróbios sem DNA?

Sergio Pena explica como age o príon – proteína infecciosa por trás do mal da vaca louca e de outras doenças degenerativas – e mostra o que ele tem em comum com uma entidade química postulada em uma obra de ficção científica dos anos 1960.
Por: Sergio Danilo Pena
Publicado em 12/11/2010 | Atualizado em 12/11/2010
Micróbios sem DNA?
Representação artística da estrutura tridimensional de resíduos do príon, agente infeccioso puramente proteico – portanto, sem DNA – por trás de várias doenças neurodegenerativas (foto: Wikimedia Commons – CC 3.0 BY-SA).
Há duas semanas o presidente dos Estados Unidos Barack Obama anunciou os ganhadores da Medalha Nacional da Ciência, a maior honraria outorgada a cientistas naquele país. Dentre os agraciados deste ano está Stanley B. Prusiner (1942 -), que ganhou também o Nobel de Medicina ou Fisiologia em 1997 por sua descoberta dos príons, uma nova classe de agentes infecciosos compostos apenas de proteínas.
Como eu já tinha vagos planos de abordar a questão dos príons algum dia na Deriva Genética, vi que o momento ideal chegara. Mas decidi abordar os príons de forma lenta, recapitulando a minha própria trajetória na compreensão dessas bizarras proteínas infecciosas, agentes da encefalopatia espongiforme bovina (popularmente conhecida como “doença da vaca louca”) e de várias doenças neurogenerativas humanas.

Kurt Vonnegut Jr.

Cat's Cradle
Capa do livro ‘Cat’s cradle’ (“Cama de gato”) de Kurt Vonnegut Jr. O gelo-9, entidade química postulada na obra, tem o mesmo modo de funcionamento do príon.
Retornemos à década de 1970, quando um dos autores mais lidos nos campi universitários norte-americanos era Kurt Vonnegut Jr. (1922-2007). Ainda fazendo meu doutorado no Canadá, tive a oportunidade de ler e me encantar com seu livro Cat’s Cradle [“Cama de gato”], que havia sido publicado em 1962.
O livro tem um enredo complexo que gira em torno de uma entidade química chamada “gelo-9”. Este tem uma estrutura cristalina muito mais estável do que o gelo normal, mas derrete a 45,8ºC, em vez de  0ºC, como é usual.
Assim, caso um pequeno pedaço de gelo-9 entrasse em contato  com a água do oceano, ele iria agir instrutivamente como uma “semente” de cristal. Em pouco tempo, toda a água do oceano iria se congelar na forma cristalina estável, causando uma catástrofe global de medonhas proporções.

Canibalismo e doenças degenerativas

No cenário das terras altas orientais da Nova-Guiné, um grupo primitivo – os Fore – começou a apresentar na década de 1950 uma doença neurodegenerativa chamada por eles de kuru, que quer dizer tremor.
A doença tinha um padrão claramente familiar, com transmissão de geração em geração. Por isso, a primeira hipótese dos pesquisadores que se depararam com ela foi de que se tratava de um problema genético mendeliano. A tribo foi visitada pelo antropólogo Daniel Carleton Gajdusek (1923-2008), que iniciou uma investigação dos costumes do povo Fore, que incluíam o canibalismo ritual de membros mortos da comunidade.
Equipes médicas visitaram a região e observaram a semelhança dos sintomas e das alterações neuropatológicas do kuru com uma enfermidade rara chamada doença de Creutzfeld-Jakob, que acomete pessoas idosas. A diferença é que o kuru frequentemente afetava crianças e adolescentes, e não apenas adultos.
Mulheres com kuru
A imagem mostra quatro mulheres afetadas com uma forma avançada de kuru, necessitando de estacas de madeira para se manterem de pé. As três meninas sentadas também são afetadas (foto: Daniel Carleton Gajduzek / Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci. 363: 3636–3643, 2008).
Mais tarde Gajdusek observou também a similaridade do kuru com uma doença infecciosa transmissível de ovelhas conhecida por seu nome em inglês, scrapie (ou paraplexia enzoótica dos ovinos, na denominação técnica).
Estimulado por tais observações, Gajdusek demonstrou experimentalmente a transmissão laboratorial do Kuru para primatas usando injeções cerebrais com extratos obtidos do sistema nervoso central de pacientes vitimados por essa enfermidade.
A doença foi então caracterizada como infectocontagiosa, com uma cadeia epidemiológica dependente do canibalismo. Quando os Fore deixaram de praticar o ritual, a doença desapareceu entre eles.
Gajdusek descreveu o vírus do kuru como atípico e de ação lenta. Pelo seu trabalho, ele recebeu o Nobel de Medicina ou Fisiologia em 1976.

Proteínas normais e patogênicas

Em 1972, Stanley Prusiner, um neurologista na Universidade da Califórnia em São Francisco (EUA), interessou-se pela doença Creutzfeldt-Jakob,  depois que um de seus pacientes foi vitimado por ela. Sabendo do trabalho de Gajdusek com o kuru, Prusiner dedicou-se a identificar o “vírus”, usando o método de infecção por transferência de humanos a animais.
Uma década depois, ele conseguiu purificar no cérebro de hamsters o agente infeccioso. Para surpresa de Prusiner, o mesmo mostrou-se constituído de uma única proteína e não possuía DNA! O agente foi chamado de príon, um acrônimo cunhado pelo pesquisador a partir da expressão PRotein Infection ONly (‘infecção por proteína apenas’, em português).

Sendo o príon apenas uma proteína, como seria ele geneticamente codificado? Usando sondas de DNA, Prusiner demonstrou que todos os mamíferos, inclusive os humanos, possuíam o gene do príon em seu genoma.
Mas como, então, explicar a capacidade infecciosa de uma proteína tão facilmente encontrável?
A solução veio quando ele verificou que a proteína, denominada PrP, era capaz de se enovelar em duas conformações distintas – a celular normal (PrPc) e a patogênica (PrPSc), mais estável, que se precipitava nos neurônios e causava a doença.
Descobriu-se então que, quando a proteína normal PrPc entrava em contato com o príon PrPSc, ela mudava de conformação e se tornava patogênica. Assim, o mecanismo infeccioso do príon é instrutivo – exatamente o modus operandi que Vonnegut havia postulado para o gelo-9! O príon era um gelo-9 de proteínas!
A partir daí, acumularam-se inúmeras evidências que demonstraram, definitivamente, a ausência de DNA e a natureza puramente proteica dos príons.
A mais importante delas foi obtida em 1992, quando foi demonstrado que camundongos que haviam sofrido deleção (knock-out) do gene normal da PrPc se tornavam resistentes aos príons infecciosos.
Entretanto, se o gene era reintroduzido, a susceptibilidade se restaurava. Curiosamente, os camundongos sem o gene da PrPc eram saudáveis, mostrando que a proteína não é indispensável para a vida normal.

Esperteza

Em 1994, eu participava de um simpósio sobre biologia molecular e doenças humanas em Miami quando, ao entrar no auditório, me deparei com Stanley Prusiner, sentado sozinho.
Achando-me muito esperto, me dirigi a ele e perguntei se ele conhecia o livro Cat’s Cradle de Kurt Vonnegut e se sabia da similaridade entre o gelo-9 e os príons. Ele olhou para mim espantado e disparou: “É claro!”. Tomei uma lição, mas pelo menos fiquei com uma estória para contar...


Paris japonica
A flor ‘Paris japonica’ tem o maior genoma conhecido, com 150 bilhões de nucleotídeos (foto: Wikimedia Commons).


A antítese do príon

O príon é um agente infeccioso que não contém DNA – consequentemente, não tem genoma! Poderíamos indagar, então, qual seria sua antítese – o organismo com o maior genoma conhecido?

No mês passado, pesquisadores descobriram uma flor japonesa bastante rara chamada Paris japonica. Ela tem um genoma de 150 bilhões de pares de base, 50 vezes maior que o genoma humano. Não deixa de ter um certo toque poético o fato de o maior genoma ser de uma flor!

Sergio Danilo Pena
Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais