Mistérios de ser macho ou fêmea
Rã amazônica é o vertebrado com o maior número registrado de cromossomos sexuais
Entrevista: Thiago Gazoni
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Quando o biólogo Thiago Gazoni examinou pela primeira vez os cromossomos da rã conhecida como jia-da-floresta (Leptodactylus pentadactylus),
durante o mestrado, que concluiu em 2011 na Universidade Estadual
Paulista (Unesp) em Rio Claro, não contava registrar o vertebrado com o
maior número de cromossomos sexuais já encontrado, conforme descreveu em
artigo publicado no final de janeiro no site da revista Chromosoma:
são 12 desses pacotes de DNA que, nessa espécie, se organizam em forma
de anel durante a divisão celular, como se dançassem uma ciranda.
É um
sistema muito distante do X e do Y que determinam se uma pessoa é homem
ou mulher. O recordista anterior era o ornitorrinco, com 10 cromossomos
sexuais.
“Menos de 5% dos anfíbios cujos cromossomos foram descritos até o
momento têm cromossomos sexuais prontamente identificáveis”, diz Gazoni,
que aprofundou o estudo durante o doutorado encerrado em 2015. Isso
significa que quando se monta o cariótipo – uma forma de organizar e
estudar o conjunto de cromossomos de um indivíduo –, na maioria das
vezes é impossível distinguir visualmente aqueles relacionados à
determinação do sexo. Na verdade, pouco se sabe sobre os genes
específicos que tornam os anfíbios machos ou fêmeas, função desempenhada
em mamíferos pelo gene SRY.
Mais curioso ainda, as 13 rãs estudadas (seis fêmeas e sete machos)
têm mais cromossomos sexuais do que não sexuais (os autossomos). São 12
sexuais em um conjunto total de 22 cromossomos.
“O que define,
visualmente, serem cromossomos sexuais é haver diferenças entre os
cariótipos de machos e de fêmeas”, explica Gazoni. Os cromossomos
exclusivos de um sexo seriam responsáveis por defini-lo. Durante a
evolução, o que acontece é que os autossomos vão sofrendo alterações que
podem dar origem a cromossomos com genes específicos para um dos sexos.
Aos poucos, outros genes próximos ao determinador do sexo vão sendo
inativados, dando origem a cromossomos especializados. As partes
inativadas ficam mais condensadas e podem ser reconhecidas com métodos
adequados de coloração.
Em
2014, Gazoni passou três meses na Universidade de Cambridge, Reino
Unido, no laboratório do geneticista Malcolm Ferguson-Smith, para
desenvolver uma sonda que conseguisse marcar os cromossomos das rãs e
mapear o trânsito de pedaços trocados entre cromossomos distintos. No
futuro, um dos objetivos é identificar e localizar os genes relacionados
à determinação do sexo nesses anfíbios.
“Ainda não se sabe o significado dos cromossomos sexuais múltiplos”,
diz a bióloga Patricia Parise-Maltempi, da Unesp de Rio Claro,
orientadora de Gazoni durante o doutorado – que teve como coorientador o
zoólogo Célio Haddad, da mesma instituição. Há 10 anos ela fez um
estágio de pós-doutorado com Ferguson-Smith para aprender técnicas como a
pintura cromossômica, que permite distinguir partes específicas dos
cromossomos e comparar cariótipos. Ela se especializou sobretudo em
peixes, que também apresentam cromossomos sexuais múltiplos, mas conta
que o conhecimento sobre a determinação sexual é ainda bem restrito.
Aparentemente, no caso de peixes e da rã L. pentadactylus, os
excedentes não são inativados – como é o caso nas fêmeas de mamíferos,
que empacotam um dos cromossomos X de maneira a manter a atividade
genética equiparada à dos machos, portadores de apenas um deles (ver Pesquisa FAPESP nº 260).
Enigma evolutivo
Também não há cromossomos inativados no recordista anterior: o ornitorrinco, estranho animal australiano que, apesar de exibir patas com membranas entre os dedos, bico achatado e pôr ovos, não é pato e sim mamífero. Um mamífero à parte – junto com a espinhuda equidna pertence à ordem dos monotremados –, mas mesmo assim alimenta seus filhotes com leite, embora não tenha propriamente mamas. Desde os anos 1970 sabe-se que esses curiosos caçadores subaquáticos têm 52 cromossomos, dos quais 10 sexuais que aparecem enfileirados durante a divisão celular.
Demorou
cerca de 30 anos para que existissem ferramentas adequadas para estudar
esse sistema, segundo explica o geneticista alemão Frank Grützner, da
Universidade de Adelaide, na Austrália, que desde 2002 se dedica ao
enigma. “Eu tinha aprendido uma técnica chamada hibridização in situ
por fluorescência, na qual é possível marcar cromossomos em cores
diferentes”, conta. “Era claro que ela permitiria solucionar esse
complexo sistema, mas foram necessários vários anos de trabalho duro
para mostrar que se tratava de cinco pares de cromossomos XX ou XY, que
se alternam em fileira durante a meiose, na divisão celular” (ver infográfico).
Especialmente
relevante para entender a evolução dos sistemas de determinação sexual
foi a descoberta de que essa cadeia de cromossomos dos ornitorrincos tem
genes típicos dos cromossomos X de mamíferos e Z de aves, de acordo com
artigo publicado por Grützner em 2004 na revista Nature. É um
indício de origem comum entre esses sistemas que até então se acreditava
terem surgido de forma independente. Mesmo assim, até agora não está
claro qual gene determina os sexos nesse animal. Esforços de
sequenciamento do genoma completo estão em curso, com mais dificuldades
no que diz respeito ao cromossomo Y. “Recentemente, em colaboração com
Henrik Kaessmann [da Universidade de Heidelberg, na Alemanha],
descobrimos um candidato potencial – um gene AMH ligado ao Y”, detalha.
“É um gene tradicionalmente ligado ao desenvolvimento dos órgãos
reprodutivos, será interessante ver como ele pode atuar na determinação
sexual nessa espécie.”
Impressão digital
Além das profundas implicações evolutivas do sistema genético de determinação sexual, a configuração dos cromossomos é muito usada como parte da caracterização de espécies, algo como uma impressão digital. Esse era um dos objetivos de Gazoni durante o mestrado orientado pela citogeneticista Sanae Kasahara, da Unesp de Rio Claro, falecida em janeiro deste ano. “Havia questões taxonômicas mal resolvidas no gênero, e por isso pesquisadores à época no laboratório de Haddad – Olívia Araújo e Felipe Toledo – nos trouxeram um L. pentadactylus macho coletado em Paranaíta, em Mato Grosso”, conta ele. “Logo vimos que havia vários rearranjos cromossômicos.”
O trabalho se desdobrou por outros caminhos, mas a busca pela
classificação continua. “Mostramos no trabalho recente que há duas
espécies atualmente sendo chamadas de L. pentadactylus,
precisamos saber qual delas é a verdadeira”, diz Gazoni. O plano é
batizar a nova espécie em homenagem à primeira orientadora, que dedicou a
carreira à pesquisa em citogenética de vertebrados.
Projetos
1. Contribuições para o entendimento da origem e evolução dos cromossomos sexuais de vertebrados, baseado no estudo de DNAs repetitivos (nº 17/00195-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Patricia Pasquali Parise-Maltempi (Unesp); Investimento R$ 106.795,21.
2. Diversidade e conservação dos anfíbios brasileiros (nº 13/50741-7); Modalidade Projeto Temático; Programa Biota; Pesquisador responsável Célio Fernando Baptista Haddad (Unesp); Investimento R$ 4.386.814,61.
Artigos científicos
GAZONI, T. et al. More sex chromosomes than autosomes in the Amazonian frog Leptodactylus pantadactylus. Chromosoma. On-line. 26 jan. 2018.
GRÜTZNER, F. et al. In the platypus a meiotic chain of ten sex chromosomes shares genes with the bird Z and mammal X chromosomes. Nature. v. 432, n. 7019, p. 913-7. 24 out. 2004.
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