O destino dos mamíferos após a extinção dos dinossauros
03 de janeiro de 2019
Pesquisadores descrevem a dinâmica
de diversificação dos mamíferos depois da extinção em massa do fim do
Cretáceo. Muitas linhagens contemporâneas aos dinossauros desapareceram,
mas outras sobreviveram (imagem: originação, extinção e taxas de
diversificação para os três clados [grupos com um ancestral comum] de
mamíferos na América do Norte. Linhas pontilhadas denotam o limite do
Cretáceo-Paleógeno / Biology Letters)
Peter Moon | Agência FAPESP – Quando se fala em
extinção em massa, é comum imaginar um meteoro caindo na Terra e
dizimando dinossauros, mas não é bem assim. As diversas extinções em
massa na história do planeta ocorreram de forma diferente sobre os
grupos de seres vivos. Um exemplo são os mamíferos, classe de
vertebrados que já existia no tempo dos dinossauros e sobreviveu ao
evento extintivo massivo há 66 milhões de anos, que marcou o fim do
período Cretáceo.
Havia quatro linhagens de mamíferos contemporâneas dos répteis
gigantes. Todas sobreviveram. Algumas saíram mais chamuscadas, outras
menos. Em estudo publicado na Biology Letters, os biólogos Tiago Bosisio Quental, da Universidade de São Paulo, e Mathias Pires,
da Universidade Estadual de Campinas, buscam entender de que forma os
diversos grupos de mamíferos atravessaram a extinção em massa no fim do
Cretáceo. O trabalho contou com apoio da FAPESP.
"Quando se fala em extinções em massa, subentende-se um evento de
grandes proporções, durante o qual um número elevado de espécies se
extinguiu em um período relativamente curto", disse Pires.
Outro modo de se olhar para as extinções em massa é observar o número
de espécies no registro fóssil. Verifica-se que em um determinado
período geológico ocorreu uma extinção em massa quando o número total de
espécies que desapareceu do registro fóssil é muito superior ao número
de novas espécies.
"Ou seja, é quando a taxa de extinções, velocidade com que espécies
são perdidas, supera a taxa de especiações, a velocidade com que as
espécies são geradas. Isso torna negativa a taxa de diversificação, que é
dada pela diferença entre as duas taxas", disse Pires.
No registro fóssil dos últimos 500 milhões de anos foram
identificadas cinco grandes extinções em massa (e muitas outras de menor
escala). Elas ocorreram por diversos motivos, como vazamentos
magmáticos por centenas de milhares ou milhões de anos, liberando
bilhões de toneladas de gases de efeito estufa que envenenaram a
atmosfera e bloquearam a radiação solar.
Foi o que ocorreu na pior das extinções em massa, há 252 milhões de
anos, que marcou a passagem dos períodos Permiano ao Triássico (e das
eras Paleozoica à Mesozoica), quando mais de 90% das espécies
desapareceram. Extinções em massa também ocorreram quando houve a
liberação maciça de bilhões de toneladas de gás carbônico (CO2)
aprisionadas no subsolo oceânico, causando um megaefeito estufa – como
especula-se ter ocorrido no final do período Triássico, há 201 milhões
de anos, com perda de 80% das espécies.
Ou o contrário, com o sequestro de bilhões de toneladas de CO2
da atmosfera, o que derrubou as temperaturas, causando uma severa
glaciação planetária. Foi assim há 444 milhões de anos, no fim do
período Ordoviciano, quando desapareceram 86% das formas de vida.
Evento K-Pg
A extinção em massa de 66 milhões de anos atrás se chama evento K-Pg,
sigla que se refere ao momento em que acaba o período Cretáceo (Kreide,
em alemão) e inicia o período seguinte, o Paleógeno (Pg). Em uma escala
de tempo mais ampla, o evento K-Pg foi o instante geológico que marca o
fim da era Mesozoica, aquela dominada pelos dinossauros, e o início da
Cenozoica, os últimos 66 milhões de anos.
O evento K-Pg foi provocado pela associação de dois fatores:
vazamentos magmáticos devastadores onde hoje é a Índia, conjugados com a
colisão de um astro celeste de 10 quilômetros de diâmetro na península
de Yucatán, no atual México.
"Todos esses episódios de extinção massiva são heterogêneos. Tiveram
causas diferentes e transcorreram de forma diversa. Da mesma forma, seu
impacto sobre as formas de vida não foi absoluto, mas relativo. Alguns
grupos sofreram mais, outros menos. Alguns desapareceram, enquanto
outros aproveitaram as novas condições ambientais pós-catástrofe para se
diversificar rapidamente", disse Pires.
No novo trabalho, os pesquisadores buscaram entender de que modo as
diversas linhagens de mamíferos existentes no final do Cretáceo
ultrapassaram o gargalo biótico do evento K-Pg. Também participaram do
estudo Daniele Silvestro, da Universidade de Gotemburgo (Suécia), e
Brian Rankin, da University of California em Berkeley (Estados Unidos).
A grande classe dos mamíferos surgiu no Triássico há pelo menos 220
milhões de anos, idade do fóssil mais antigo que se conhece. No fim do
Cretáceo, a linhagem era bastante diversificada. Havia os placentários
(como são popularmente conhecidos os eutérios), linhagem à qual pertence
o Homo sapiens, assim como todos os primatas, roedores, morcegos, cetáceos e ungulados, entre outros.
Havia também os marsupiais (ou metatérios), grupo que hoje acolhe
gambás, cangurus e coalas. Eles dividiam o cenário com o grupo dos
monotremados e, por fim, com o dos multituberculados (seu nome deriva do
formato específico de seus dentes, com vários tubérculos).
O novo estudo ressalta que a extinção em massa do Cretáceo se abateu
fortemente sobre os mamíferos. Isso não quer dizer que todos os quatro
grupos sofreram com a mesma intensidade. A extinção em massa foi mais
severa para uns do que para outros.
Durante o Cretáceo, entre 145 e 66 milhões de anos atrás, os
multituberculados eram a linhagem dominante e a mais diversificada entre
os mamíferos. Sabe-se isso porque, no registro fóssil que antecede o
evento K-Pg, os fósseis de multituberculados são a grande maioria. Já os
fósseis de placentários e de marsupiais, embora menos numerosos, também
são encontrados em bom número.
A exceção são os monotremados. Assim como ocorre hoje, quando há
somente duas famílias de monotremados viventes – das quais fazem parte o
ornitorrinco e a equidna –, o registro fóssil dos monotremados é muito
rarefeito, tanto antes quanto depois do Cretáceo, sugerindo que este
grupo sempre foi relativamente marginal em relação às outras linhagens
de mamíferos. É também por essa razão que tal linhagem não foi incluída
no estudo.
Sabendo-se que havia multituberculados, placentários e marsupiais,
qual grupo de mamíferos foi mais severamente atingido no K-Pg? De qual
linhagem sobreviveram mais gêneros? Qual grupo apresentou o maior
aumento de diversidade (maior especiação) nos milhões de anos
imediatamente posteriores ao gargalo biótico? Qual grupo jamais se
recuperou do cataclismo?
O único meio para tentar obter respostas a essas perguntas é recorrer
ao registro fóssil encontrado em uma mesma região do planeta, de modo a
tentar garantir que, há 66 milhões de anos e naquela região, a
catástrofe se abateu de forma mais ou menos equivalente sobre todos os
grupos de mamíferos.
Quental e Pires elegeram a América do Norte como local do estudo, uma
vez que 150 anos de contínuas prospecções paleontológicas naquele
continente fornecem um rico painel da diversidade de mamíferos antes,
durante e após o evento K-Pg.
"A América do Norte apresenta um registro fóssil com qualidade
suficiente para esse tipo de estudo. Já foram feitos outros estudos
analisando como os mamíferos ultrapassaram a extinção do Cretáceo, mas
até onde pudemos constatar este é um dos primeiros a analisar a dinâmica
da diversificação das distintas linhagens de mamíferos”, disse Quental.
Os cientistas utilizaram um conjunto de dados com 188 recentes
assembleias fossilíferas do Cretáceo e do Paleoceno – abrangendo um
lapso temporal que vai de 69,9 milhões de anos até 55 milhões de anos
atrás –, formações localizadas no interior ocidental da América do
Norte.
"O registro fóssil de mamíferos da América do Norte possui
assembleias muito bem estudadas com datações em torno do evento K-Pg,
sendo as ocorrências de fósseis relativamente bem resolvidas,
minimizando a incerteza taxonômica.
O conjunto de dados que utilizamos
inclui informações sobre quase 290 gêneros de mamíferos, entre
multituberculados, eutérios e metatérios”, disse Quental.
Foram empregados diversos métodos estatísticos avançados para
identificar padrões de originação, extinção e diversificação, antes,
durante e após o K-Pg. Os resultados evidenciaram que as três linhagens
atravessaram a extinção em massa de maneiras bem distintas.
O estudo indica que a taxa de originação de Methateria (marsupiais),
por exemplo, permaneceu aproximadamente constante durante todo o
intervalo de tempo estudado. No entanto, um claro pico de extinção é
identificado durante o K-Pg, gerando um saldo líquido de diversificação
negativo. Passado o evento K-Pg, a taxa de extinção diminuiu
gradualmente. No entanto, a diversificação líquida negativa persistiu
por mais de 2 milhões de anos, até cerca de 64 milhões de anos atrás.
Quanto aos multituberculados, eles estavam se diversificando no fim
do Cretáceo, apresentando altas taxas de originação e taxas de extinção
relativamente baixas. Já em torno do limite K-Pg, a taxa de extinção
permaneceu baixa, mas observam-se quedas na taxa de originação, o que
derruba a diversificação de multituberculados para perto de zero. Ou
seja, durante o K-Pg a taxa de diversificação encontra-se em equilíbrio,
pois aproximadamente a mesma quantidade de gêneros de multituberculados
está se originando e se extinguindo.
Segundo o estudo, decorrido o K-Pg, embora a taxa de extinção dos
multituberculados permanecesse em queda, o declínio na taxa de
originação era ainda maior, consequentemente levando a uma
diversificação negativa. Em outras palavras, a quantidade de gêneros de
multituberculados continuou diminuindo durante o restante do período
analisado, até 55 milhões de anos atrás. Tal declínio parece ter
persistido por muito mais tempo, dado que os multituberculados
desapareceram progressivamente do registro fóssil mundial, até, por fim,
a linhagem terminar há cerca de 35 milhões de anos.
Especula-se que a razão para o fim dos multituberculados teria sido a
competição crescente com uma nova linhagem de eutérios, os roedores,
cuja ordem tem origem justamente logo após o evento K-Pg, já no período
Paleógeno.
Quanto aos eutérios (placentários), o estudo mostra alta originação e
alta extinção perto do limite K-Pg, resultando em uma inflexão na
diversidade. As taxas de originação eram muito superiores àquelas das
extinções, exceto no período entre 66 milhões de anos e 64 milhões de
anos atrás.
Logo após, verifica-se um segundo pulso de originação, acompanhado
pela queda nas taxas de extinção, sinal da ocorrência de uma curta
explosão na diversificação. Em torno de 62 milhões de anos atrás, a
originação de eutérios diminui, enquanto a diversificação fica em torno
de zero, sugerindo um equilíbrio de diversidade.
"Encontramos três padrões de diversificação entre os grupos de
mamíferos. Metatheria se comporta da forma clássica em uma extinção em
massa. Diversas extinções se agrupam no tempo, levando a uma queda
severa na diversificação”, disse Quental.
Segundo o pesquisador, nos multituberculados a diminuição na
diversificação e a subsequente perda de diversidade foram impulsionadas
pelo declínio das taxas de originação e não pela extinção, ou seja,
perderam diversidade porque demoravam muito para gerar novas espécies.
"Já os eutérios mostram uma dinâmica mais complexa de ascensão e
queda, mais precisamente atribuída por oscilações rápidas na taxa de
especiação durante e logo após o K-Pg, ao mesmo tempo que a taxa de
extinção aumenta, porém, não tanto a ponto de causar uma diversificação
negativa por muito tempo", disse Quental.
Pires ressalta que o estudo mostra que a extinção em massa do K-Pg
foi ecologicamente seletiva entre as linhagens de mamíferos, “com uma
concentração de extinções entre metatérios carnívoros especializados e
eutérios insetívoros, enquanto os eutérios e os multituberculados mais
generalistas mantiveram maior diversidade”.
Embora os resultados indiquem que os eutérios (placentários) sofreram
perdas substanciais no limite de K-Pg, essas perdas foram compensadas
pelo aumento da originação. Pode ter ocorrido diversificação entre os
eutérios sobreviventes, graças à chegada à América do Norte de outros
grupos de eutérios provenientes de outros continentes.
"A plasticidade de dietas dos multituberculados pode ter permitido
que os grupos persistissem, explicando as baixas taxas de extinção. A
diversidade ecológica e taxonômica dos multituberculados foi crescente
durante o fim do Cretáceo. No entanto, nossas análises mostram que os
multituberculados não compensaram as perdas por extinção, pois geravam
cada vez menos diversidade, diferentemente dos eutérios, cujas perdas
foram compensadas por altas taxas de originação”, disse Pires.
A conclusão dos pesquisadores indica que, quando os clados (grupos
com ancestral comum) são avaliados individualmente, eventos de extinção
em massa podem ser vistos como mudanças na extinção, na originação ou em
ambos os regimes.
“Isso significa que os estudos sobre fenômenos macroevolutivos que
são centrados em grandes grupos taxonômicos podem estar deixando de
contar uma história macroevolutiva muito mais rica, só percebida em
escalas taxonômicas mais sutis”, destacam.
O artigo Diversification dynamics of mammalian clades during the K–Pg mass extinction (doi: 10.1098/rsbl.2018.0458), de Mathias M. Pires, Brian D. Rankin, Daniele Silvestro e Tiago B. Quental, pode ser lido em http://rsbl.royalsocietypublishing.org/content/14/9/20180458.
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