Reconstrução ancestral dos trilobitas
Grupo de experts liderado pela Unesp infere padrões paleobiogeográficos desses artrópodes
Peter Moon | Agência Fapesp
10/01/2019
O registro fóssil mostra que os trilobitas (artrópodes característicos do Paleozoico, conhecidos apenas do registro
fóssil) surgiram há 521 milhões de anos nos oceanos do período
Cambriano, quando os continentes ainda eram uma paisagem inóspita à
maioria das formas de vida.
Poucos grupos de animais tiveram tamanho
sucesso adaptativo como os trilobitas, artrópodes que caminharam pelo
solo marinho por 270 milhões de anos até a grande extinção do Permiano,
há 252 milhões de anos. Quanto mais recuado no tempo viveu um
determinado grupo de animais, mais escassos e raros são seus fósseis,
mais difícil é a compreensão sobre o seu modo de vida e mais complicado é
para os paleontólogos conseguirem estabelecer relações evolutivas no
tempo e no espaço.
Superando as dificuldades inerentes à
investigação de animais que viveram há tanto tempo, um grupo de
cientistas da Faculdade de Ciências (FC) da Unesp em Bauru e da USP
obteve sucesso ao conseguir, pela primeira vez, inferir padrões
paleobiogeográficos entre os trilobitas. A paleobiogeografia é o ramo da
paleontologia que estuda a distribuição de plantas e animais extintos e
sua relação com características geográficas antigas.
O trabalho foi desenvolvido pelo pesquisador do Laboratório de Paleontologia de Macroinvertebrados (Lapalma) da FC, Fábio Augusto Carbonaro, pós-doutorando no laboratório coordenado pelo professor Renato Pirani Ghilardi, do Departamento de Ciências Biológicas.
Participaram também os professores Max Cardoso Langer, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, e Silvio Shigueo Nihei, do Instituto de Biociências, ambas instituições da USP, entre outros.
Pesquisa
A pesquisa foi feita a partir da análise das diferenças e semelhanças morfológicas entre trilobitas do gênero Metacryphaeus,
com 11 espécies descritas. Esses viveram no período Devoniano, entre
416 milhões e 359 milhões de anos atrás, e habitaram as águas frias onde
hoje ficam a Bolívia, o Peru, o Brasil, as ilhas Malvinas e a África do
Sul.
Mais especificamente, o gênero Metacryphaeus existiu
durante os estágios Lochkoviano e Pragiano. O período Devoniano é
subdividido em sete estágios. Os dois mais antigos são o Lochkoviano
(419,2 milhões até 410,8 milhões de anos) e o Pragiano (410,8 milhões
até 407,6 milhões de anos).
Resultados da pesquisa foram publicados na Scientific Reports, do grupo Nature, e fazem parte do projeto "Paleobiogeografia e rotas migratórias de paleoinvertebrados devonianos do Brasil", que tem apoio da Fapesp e do CNPq e é coordenado por Ghilardi.
“Ao desaparecerem na extinção do Permiano,
há 252 milhões de anos, os trilobitas não deixaram descendentes. Seus
parentes vivos mais próximos são os camarões e, de forma bem mais
distanciada, as aranhas, os escorpiões, as aranhas-do-mar e também os
ácaros”, disse Ghilardi.
O professor da Unesp explica que fósseis
de trilobitas são abundantes e encontrados em todo o mundo. São tão
abundantes que acabaram apelidados de baratas do mar.
A comparação não é
descabida, dado que anatomicamente os trilobitas assemelhavam-se de
fato às baratas. A diferença é que não eram insetos e possuíam o corpo
articulado, dividido em três partes (ou lobos), daí seu nome.
No Hemisfério Norte, o registro de
trilobitas é muito rico.
Os paleontólogos já descreveram dez ordens,
abarcando mais de 17 mil espécies distintas. As menores tinham apenas
1,5 milímetro, enquanto as maiores espécies atingiam até 70 centímetros
de comprimento (40 cm de largura). Há regiões como o Marrocos, por
exemplo, onde os trilobitas são preservados com perfeição e requinte,
quase como se fossem belos camafeus de priscas eras.
Já no Brasil, no Peru e na Bolívia seus
fósseis apresentam um estado de conservação muitas vezes sofrível,
limitando-se às impressões que seus exoesqueletos deixaram no lodo do
solo marinho.
“Muito embora seu estado de conservação
não seja o ideal, há milhares de registros de trilobitas nos sedimentos
que formam a Bacia Paraná, na região Sul, e a Bacia Parnaíba, fincada
entre as regiões Norte e Nordeste”, disse Ghilardi, que é também
presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia.
Segundo ele, tal estado de conservação
pode ser uma decorrência das condições geológicas e climáticas aqui
reinantes durante a era Paleozoica, quando as porções de terra firme que
um dia formariam a América do Sul encontravam-se no Polo Sul –e em
muitos momentos inteiramente cobertas de gelo.
Durante o período Devoniano, a América do
Sul e a África encontravam-se unidas dentro do supercontinente Gondwana,
sendo que o atual território da África do Sul situava-se colado ao
Uruguai e à Argentina na altura do Rio da Prata, e os estados do sul do
Brasil eram unidos aos territórios das atuais Namíbia e Angola.
Análise parcimoniosa
O trabalho de pesquisa iniciou com a
análise de 48 caracteres (as medidas de diversos órgãos anatômicos)
encontrados nos fósseis de cerca de 50 espécimes das 11 espécies do
gênero Metacryphaeus.
“Tais caracteres servem, em princípio,
para estabelecer a filogenia, ou seja, as relações evolutivas mais
próximas ou mais distantes entre todas as espécies do universo de
análise”, disse Ghilardi.
É a chamada análise parcimoniosa, muito
usada para estabelecer relações entre seres vivos dentro de um
determinado ecossistema, e que nos últimos anos começa a ser empregada
igualmente no estudo de fósseis.
Ghilardi comenta que, em geral, a
parcimônia é o princípio de que a explicação mais simples que pode
interpretar os dados deve ser a escolhida. Na análise da filogenia, a
parcimônia significa que uma hipótese de relacionamentos que requer o
menor número de mudanças de caracteres entre as espécies analisadas
(como no caso dos trilobitas do gênero Metacryphaeus) é a mais provável de estar correta.
Nihei, do IB-USP, é taxonomista e
sistemata –que trata de sistemas de classificação– de insetos. Na
pesquisa, sua colaboração foi na biogeografia.
“Métodos de análise biogeográfica são
empregados normalmente com grupos viventes, cujas estimativas de idade
são fornecidas por filogenias moleculares, ou seja, pelo chamado relógio
molecular, que indica a idade provável da divergência entre os
ancestrais de uma ou mais espécies. Nesse trabalho com trilobitas,
usamos idades da mesma forma, porém fornecidas pelos registros fósseis”,
disse.
"O principal ponto do trabalho é o uso dos
fósseis em um método que usualmente é utilizado para biogeografias
moleculares. Há pouquíssimos casos como o nosso, com fósseis. Creio que
nosso estudo abre um novo horizonte para os métodos biogeográficos que
requerem um cronograma [um cladograma datado molecularmente], pois esse
cronograma pode ser também obtido a partir de táxons exclusivamente
fósseis, como os estudados pelos paleontólogos, e não somente
cladogramas moleculares de animais viventes”, disse Nihei.
Langer destaca que o aspecto mais
importante do trabalho, “e foi por isso que ele foi aceito por uma
revista tão importante como a Scientific Reports, é que pela primeira vez se usa análise parcimoniosa para entender a filogenia de um gênero de trilobitas no Hemisfério Sul”.
Dispersão gonduânica
Os resultados das análises paleobiogeográficas reforçaram a ideia de que a Bolívia e o Peru formam o lar ancestral dos Metacryphaeus, algo que já era aventado como hipótese.
"Os modelos estimam uma probabilidade de 100% para a Bolívia e o Peru serem a área ancestral do clado Metacryphaeus, assim como para a maioria de seus clados internos”, disse Ghilardi.
A confirmação da hipótese mostra como os
modelos parcimônicos têm o poder de sugerir a presença de clados em um
determinado momento do passado do qual não se conhecem registros físicos
da presença dos mesmos.
No caso de Metacryphaeus, seus
registros mais antigos na Bolívia e Peru são do início do Pragiano
(410,8 milhões até 407,6 milhões de anos), mas estima-se que o gênero
tenha evoluído naquela região no estágio Lochkoviano (419,2 milhões até
410,8 milhões de anos).
Em outras palavras, os modelos parcimônicos sugerem que o gênero Metacryphaeus deve
ter se originado na Bolívia e Peru em algum momento antes de 410,8
milhões de anos atrás, porém não anterior a 419,2 milhões de anos
–idades muito mais antigas do que aquelas dos fósseis hoje conhecidos.
Segundo Ghilardi, a interpretação dos resultados sugere que a radiação do gênero Metacryphaeus para
outras áreas do supercontinente da Gondwana ocidental ocorreu durante
episódios transgressivos marinhos nos estágios Lochkoviano e Pragiano,
quando o mar inundou porções do antigo supercontinente Gondwana.
“A dispersão dos trilobitas do gênero Metacryphaeus durante
o estágio Lochkoviano ocorreu da Bolívia e do Peru para o Brasil –para
as bacias sedimentares do Paraná, hoje no sul do País, e do Parnaíba,
entre as regiões Norte e Nordeste– e em direção das ilhas Malvinas,
enquanto a dispersão durante o estágio seguinte, o Pragiano, se deu na
direção da África do Sul”, disse.
Os fósseis de trilobitas da Bacia Paraná
vêm sendo continuamente encontrados nas últimas décadas.
Já os fósseis
da Bacia do Parnaíba foram coletados no fim do século 19 e estavam
depositados no Museu Nacional, destruído pelo incêndio em setembro.
"Esses fósseis ainda não foram localizados
sob os escombros do edifício, mas tudo leva a crer que não existem
mais. Supõe-se que impressões das carapaças no antigo lodo do solo
oceânico, mesmo que petrificadas, devem ter se dissolvido com o calor do
incêndio", disse Ghilardi.
O artigo Inferring ancestral range reconstruction based on trilobite records: a study-case on Metacryphaeus (Phacopida, Calmoniidae) (doi: https://doi.org/10.1038/s41598-018-33517-5),
de Fábio Augusto Carbonaro, Max Cardoso Langer, Silvio Shigueo Nihei,
Gabriel de Souza Ferreira e Renato Pirani Ghilardi, pode ser lido em: https://www.nature.com/articles/s41598-018-33517-5.
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