Professor no IGCE de Rio
Claro, Giancarlo Scardia foi responsável pela datação das amostras
encontradas nas expedições na Jordânia. Imagem: Divulgação.
A
já complicada e sempre polêmica história da evolução humana acaba de
ganhar uma nova versão, escrita por cientistas brasileiros.
A espécie
que teria saído da África pela primeira vez teria sido o Homo habilis, e não o Homo erectus;
e isso teria acontecido 500 mil anos antes do que se pensava — o que
permitiria explicar diversos mistérios relacionados à história dos
hominídeos no Cáucaso, na China e na Indonésia.
A nova
narrativa, apresentada no Instituto de Estudos Avançados da Universidade
de São Paulo (IEA-USP), é baseada em evidências arqueológicas
desenterradas pelos pesquisadores no vale do rio Zarqa, na Jordânia,
próximo à capital Amã.
Eles descobriram centenas de ferramentas de pedra
lascada com 1,9 milhão a 2,5 milhões de anos de idade, claramente
produzidas por mãos humanas.
O problema é que, segundo a teoria que predomina hoje sobre a evolução e dispersão do gênero homo (linhagem que deu origem aos seres humanos modernos), o primeiro hominídeo a deixar a África foi o Homo erectus,
entre 2 milhões e 1,8 milhão de anos atrás.
Então, quem teria produzido
aquelas ferramentas no Oriente Médio, meio milhão de anos antes? Fotos e desenhos de ferramentas líticas, de 2,45 milhões de anos (Crédito: Fabio Parenti) Pedras lascadas coletadas na Jordânia (Crédito: Cecília Bastos/USP Imagens)
O trabalho não chega a cravar um nome no papel, mas o pesquisador Walter Neves tem opinião convicta sobre o assunto: “Foi o Homo habilis”, profere ele.
A datação dos artefatos jordanianos foi confirmada por três técnicas diferentes, e o Homo habilis era a única espécie de hominídeo (do gênero homo)
que já vagava pela África naquela época, 2,5 milhões de anos atrás.
Sendo assim, é o principal e único suspeito. O nome “homem habilidoso”
refere-se justamente à sua associação pioneira com a produção de
utensílios de pedra lascada.
“Acho que geramos a data precisa de saída dos hominídeos da África”,
avalia Neves, professor aposentado do Instituto de Biociências da USP e
pesquisador do IEA.
O novo cronograma se encaixa perfeitamente — no
tempo e no espaço — com o de outra descoberta recente, feita por outros
estudiosos, que encontraram ferramentas líticas de 2,4 milhões de anos
na Argélia, no norte da África, próximo à “porta de saída” para o
Oriente Médio.
Segundo os pesquisadores, não há dúvidas sobre a idade dos artefatos
da Jordânia nem sobre o fato de que eles foram produzidos por hominídeos
(e não por processos naturais). “Há evidências muito claras de
lascamento intencional”, disse o arqueólogo Fabio Parenti, do
Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR),
um dos líderes da pesquisa, que escava na região desde a década de 1990.
As peças são principalmente núcleos e lascas de pedra, características
da chamada “indústria olduvaiensi”, que nossos ancestrais mais
primitivos do gênero homo usavam para quebrar objetos e cortar as carcaças de animais dos quais se alimentavam.
“Não encontramos fósseis porque essa região da Jordânia não conserva
bem fósseis, mas achamos as ferramentas desses hominídeos”, explica
Neves. “Os resultados não poderiam ser mais convergentes.”
Especialista em evolução humana, e popularmente conhecido como “pai
da Luzia” — por conta de seu trabalho com o fóssil mineiro que se tornou
símbolo do povoamento das Américas —, Neves é um dos seis autores do
trabalho que será publicado neste sábado, 6 de julho, na revista Quarternary Science Reviews.
Ele e Parenti assinam o estudo com o geólogo Giancarlo Scardia, da Universidade Estadual Paulista (Unesp – Rio Claro),
e o geoarqueólogo Astolfo Araújo, do Museu de Arqueologia e Etnologia
da USP, além de colaboradores nos Estados Unidos e na Alemanha, que
contribuíram com parte das análises. Equipe de pesquisadores durante exploração que encontrou ferramentas de pedra lascada no vale do rio Zarqa, na Jordânia (Crédito: Giancarlo Scardia)
Neves acredita que as ferramentas foram produzidas por uma população de Homo habilis recém-saída da África, em rota para a região do Cáucaso, onde mais tarde o Homo habilis daria origem ao Homo erectus — uma espécie maior, mais inteligente e mais moderna de hominídeo, considerada por muitos como a precursora do homem moderno (Homo sapiens).
Os famosos fósseis de Dmanisi, na República da Geórgia, segundo
Neves, seriam de uma forma transitória de hominídeo, com características
tanto de Homo habilis quanto de Homo erectus; o que
explicaria a grande variabilidade morfológica dos crânios encontrados
ali, com 1,8 milhão de anos de idade.
Essa diversidade já é discutida há
anos pela comunidade científica internacional, levando alguns
pesquisadores a propor que Homo erectus e Homo habilis não
eram espécies diferentes, mas, na verdade, variações de uma mesma
linhagem; com uma variabilidade anatômica equivalente à que existe,
ainda hoje, entre os chimpanzés.
“Acho que nossa pesquisa vai encerrar de vez essa discussão”, disse
Neves. A variabilidade dos crânios de Dmanisi, segundo ele, “é
exatamente o que se esperaria de uma espécie transitória”.
Nesse caso, então, o Homo erectus teria evoluído
primeiramente no Cáucaso, e só depois migrado para dentro da África,
onde seus fósseis mais antigos datam, também, e só começam a aparecer
por volta de 1,8 milhão de anos atrás.
“O grande desbravador”
Além da diversidade de Dmanisi, uma saída precoce do Homo habilis da
África também ajudaria a explicar a descoberta recente de artefatos de
pedra lascada em Shangchen, no leste da China, com 2,1 milhões de anos —
ou seja, anteriores ao Homo erectus. Neves acredita que elas, também, tenham sido produzidas pelo Homo habilis — o que significaria que o Homo habilis não só foi o primeiro a sair da África, como o primeiro a ocupar a Eurásia.
“O grande desbravador foi o habilis”, afirma Neves. O Homo habilis era bem menor do que o Homo erectus,
tanto em estatura (1,20 m x 1,75 m) quanto em volume cerebral (650 cm3 x
850 cm3), mas já era bípede e perfeitamente capaz de caminhar longas
distâncias, garante Neves.
Mais audacioso ainda, ele sugere que o Homo habilis — e não o Homo erectus — foi a espécie que deu origem ao Homo floresiensis,
um hominídeo pigmeu que viveu até bem recentemente (20 mil anos atrás)
na Ilha de Flores, na Indonésia. Apelidado de Hobbit, ele tinha pouco
mais de 1 metro de altura e um cérebro equivalente em tamanho ao de um
chimpanzé.
Pesquisadores debatem há anos, intensamente, se o Homo floresiensis era uma espécie portadora de microcefalia ou outra malformação genética, ou apenas uma versão reduzida de um Homo erectus —
encolhida pelo chamado “efeito ilha”, um processo evolutivo que tende a
reduzir o tamanho de espécies que vivem restritas a ambientes
insulares.
Para Neves, a hipótese do Homo habilis faz mais sentido, porque se tratava de uma espécie já naturalmente menor. “Seria muito mais fácil para a evolução espremer um Homo habilis no formato de um floresiensis do que um Homo erectus”, diz.
Reconstruir a história da evolução humana é como tentar reescrever o roteiro de um filme baseado apenas em um trailer,
ou narrar a história de um livro com base apenas em algumas folhas, sem
saber exatamente quem são os personagens, de onde eles vêm, como eles
se relacionam ou o que cada um faz. As evidências são poucas e difíceis
de serem encontradas, o que faz da paleoantropologia (o estudo da
evolução humana com base em fósseis) um do campos mais competitivos,
polêmicos e espetaculares da ciência.
Ceticismo
Os pesquisadores não têm dúvida que o trabalho e suas implicações
para o estudo da evolução humana serão recebidos com “muito ceticismo”
pela comunidade científica internacional. “Vamos ser destroçados”,
declarou Neves, com a tranquilidade de quem já está calejado nesse tipo
de coisa. “Com certeza vamos encontrar ceticismo, mas faz parte da
ciência”, disse Scardia, primeiro autor do trabalho e responsável pela
datação do material. “Temos muita confiança nos nossos resultados.”
O natural seria que uma descoberta desse porte fosse publicada numa revista de maior impacto, como Natureou Science.
Só não foi, segundo Neves, porque os editores dessas revistas “não
acreditam que possa haver vida inteligente abaixo do Equador”, pelo
menos no que diz respeito à paleoantropologia — uma área na qual o
Brasil não tem tradição de pesquisa internacional.
“Não queria me aposentar antes de botar o Brasil no mapa da
paleoantropologia mundial”, desabafa o sempre polêmico e aguerrido
Neves. “Engulam ou não, o Brasil está no mapa agora.”
“Acho que nossa pesquisa vai encerrar de vez essa discussão”, disse
Neves. A variabilidade dos crânios de Dmanisi, segundo ele, “é
exatamente o que se esperaria de uma espécie transitória”.
Nesse caso, então, o Homo erectus teria evoluído
primeiramente no Cáucaso, e só depois migrado para dentro da África,
onde seus fósseis mais antigos datam, também, e só começam a aparecer
por volta de 1,8 milhão de anos atrás. .
“O grande desbravador”
Além da diversidade de Dmanisi, uma saída precoce do Homo habilis
da África também ajudaria a explicar a descoberta recente de artefatos
de pedra lascada em Shangchen, no leste da China, com 2,1 milhões de
anos — ou seja, anteriores ao Homo erectus. Neves acredita que elas, também, tenham sido produzidas pelo Homo habilis — o que significaria que o Homo habilis não só foi o primeiro a sair da África, como o primeiro a ocupar a Eurásia.
“O grande desbravador foi o habilis”, afirma Neves. O Homo habilis era bem menor do que o Homo erectus,
tanto em estatura (1,20 m x 1,75 m) quanto em volume cerebral (650 cm3 x
850 cm3), mas já era bípede e perfeitamente capaz de caminhar longas
distâncias, garante Neves.
Mais audacioso ainda, ele sugere que o Homo habilis — e não o Homo erectus — foi a espécie que deu origem ao Homo floresiensis,
um hominídeo pigmeu que viveu até bem recentemente (20 mil anos atrás)
na Ilha de Flores, na Indonésia. Apelidado de Hobbit, ele tinha pouco
mais de 1 metro de altura e um cérebro equivalente em tamanho ao de um
chimpanzé.
Pesquisadores debatem há anos, intensamente, se o Homo floresiensis era uma espécie portadora de microcefalia ou outra malformação genética, ou apenas uma versão reduzida de um Homo erectus
— encolhida pelo chamado “efeito ilha”, um processo evolutivo que tende
a reduzir o tamanho de espécies que vivem restritas a ambientes
insulares.
Para Neves, a hipótese do Homo habilis faz mais sentido, porque se tratava de uma espécie já naturalmente menor. “Seria muito mais fácil para a evolução espremer um Homo habilis no formato de um floresiensis do que um Homo erectus”, diz.
Professor
Walter Neves fala sobre a descoberta de pedra lascada que indica
mudanças na história evolutiva dos humanos – Foto: Cecília Bastos/USP
Imagens. .
Reconstruir a história da evolução humana é como tentar reescrever o roteiro de um filme baseado apenas em um trailer,
ou narrar a história de um livro com base apenas em algumas folhas, sem
saber exatamente quem são os personagens, de onde eles vêm, como eles
se relacionam ou o que cada um faz. As evidências são poucas e difíceis
de serem encontradas, o que faz da paleoantropologia (o estudo da
evolução humana com base em fósseis) um do campos mais competitivos,
polêmicos e espetaculares da ciência. .
Afloramento no Vale do Zarqa, Jordânia, em 2014. A formação escavada é conhecida como Dawqara – Foto: cedida pelo pesquisador.
Ceticismo
Os pesquisadores não têm dúvida que o trabalho e suas implicações
para o estudo da evolução humana serão recebidos com “muito ceticismo”
pela comunidade científica internacional. “Vamos ser destroçados”,
declarou Neves, com a tranquilidade de quem já está calejado nesse tipo
de coisa. “Com certeza vamos encontrar ceticismo, mas faz parte da
ciência”, disse Scardia, primeiro autor do trabalho e responsável pela
datação do material. “Temos muita confiança nos nossos resultados.”
O natural seria que uma descoberta desse porte fosse publicada numa revista de maior impacto, como Nature ou Science.
Só não foi, segundo Neves, porque os editores dessas revistas “não
acreditam que possa haver vida inteligente abaixo do Equador”, pelo
menos no que diz respeito à paleoantropologia — uma área na qual o
Brasil não tem tradição de pesquisa internacional.
“Não queria me aposentar antes de botar o Brasil no mapa da
paleoantropologia mundial”, desabafa o sempre polêmico e aguerrido
Neves. “Engulam ou não, o Brasil está no mapa agora.”
A pesquisa foi financiada principalmente pela Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e pela Wenner-Gren Foundation
for Anthropological Research, de Nova York. . .
Réplicas de crânios de hominídeos expostas em coletiva de imprensa no IEA – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Política de uso A
reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do
Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar
dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso
de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso
estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP
Imagens e o nome do fotógrafo.
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