A ciência se aproxima da criação da vida em laboratório
Três cientistas dão um passo essencial para certificar que é possível explicar o surgimento dos seres vivos sem recorrer a forças sobrenaturais
Em nosso planeta há 4.200 religiões,
todas elas diferentes e incompatíveis entre si, então todo mundo de
alguma forma é ateu. Uma pessoa que creia firmemente em uma religião não
engole as outras 4.199. O Corão afirma que Alá criou todos os seres
vivos a partir da água. O Deus da Bíblia
diz: “Produza a terra seres vivos segundo a sua espécie: animais
domésticos, répteis e animais selvagens, segundo a sua espécie”. E,
segundo um mito do hinduísmo, o primeiro ser vivente, o deus Brama,
brotou de uma flor de lótus. Os cientistas, enquanto isso, acabam de dar
outro passo essencial para averiguar como a vida realmente surgiu e
para reproduzir este processo em laboratório. “Seria a prova definitiva
de que a vida emerge da química e que não é preciso recorrer a nenhuma
força sobrenatural”, resume o bioquímico Juli Peretó, da Universidade de
Valência (Espanha).
“Acredito que estamos a uns cinco ou dez anos de criar uma proto-célula funcional”, diz o químico Matthew Powner, do University
College de Londres.
Sua equipe está na vanguarda do exército de cientistas que tentam
verificar como – a partir de elementos químicos da Terra primitiva, tais
quais hidrogênio, carbono e enxofre – a vida surgiu por acaso:
estruturas com capacidade de copiar a si mesmas e se autos sustentar.
Seu último avanço foi publicado nesta quinta-feira na revista Nature.
Há mais de 60 anos os cientistas tentam fabricar peptídeos, um dos
ingredientes fundamentais dos seres vivos. Os peptídeos são cadeias
curtas de aminoácidos, uma espécie de versão curta das proteínas.
Entretanto, os pesquisadores passaram décadas chocando-se contra um
muro: suas sopas artificiais de água e aminoácidos não formavam
peptídeos em laboratório. Paradoxalmente, a equipe britânica conseguiu
avançar dando um passo atrás.
Os três químicos do University College de Londres – Matthew Powner,
Pierre Canavelli e Saidul Islam – demonstraram que os peptídeos puderam
surgir nessa Terra primitiva sem necessidade de aminoácidos nem de
forças sobrenaturais. A receita seria uma singela sopa de água e aminonitrilas,
precursores dos aminoácidos que só precisariam dos ingredientes
presentes naquele ambiente anterior à vida, quatro bilhões de anos
atrás, como o ácido sulfídrico (formado por hidrogênio e enxofre) e o
ferrocianeto (carbono, nitrogênio e ferro). Utilizando uma comparação de
Juli Peretó, os cientistas teimavam em escrever a palavra ABC a partir das letras a, b e c, mas isso não funcionava na água. Powner escreveu ABC juntando os precursores de a, os precursores de b e os precursores de c, sem passar pelas letras a, b e c. Formou cadeias de aminoácidos (peptídeos) sem usar aminoácidos.
“Estamos perto de chegar ao fim do princípio: sintetizar as moléculas
funcionais da vida. O passo seguinte será integrar estas moléculas em
um sistema”, explica Powner, discípulo de John Sutherland, um dos
cientistas mais respeitados no campo da origem química da vida. O
professor é mais precavido. “Se pensarmos em como as catedrais foram
construídas, as pessoas que punham os alicerces morriam muito antes que a
majestosa estrutura da catedral fosse visível. Eu estaria orgulhoso de
ser dos que puseram os alicerces de uma protocélula”, declarou
Sutherland em 2015, numa conversa com o próprio Peretó publicada na
revista Mètode.
"Acredito que estamos a uns cinco ou dez anos de criar uma protocélula funcional", diz o químico Matthew Powner
“Não estamos longe, no sentido conceitual, de criar vida em
laboratório. A polêmica pode estar no que consideramos que está vivo”,
opina Peretó, que não participou do trabalho de Powner. O bioquímico da
Universidade de Valência adverte que ainda falta muito caminho até a
criação de uma célula a partir de elementos químicos presentes na Terra
primitiva. “Outro componente essencial seria a membrana celular, e ainda
há poucas propostas sobre como teria se formado”, salienta.
O pesquisador Iñaki Ruiz-Trillo, do Instituto de Biologia Evolutiva
de Barcelona, acredita que o novo estudo é “impressionante”. No seu
entender, o trabalho “talvez também poderia indicar que certas condições
adequadas na Terra já foram capazes de permitir a formação de
peptídeos, sem necessidade de pensar em nada que venha de outros
lugares”, em referência às hipóteses segundo as quais alguns
ingredientes da vida chegaram sobre meteoritos.
“[O estudo de Powner] não resolve a questão de como apareceram os
primeiros seres vivos, mas contribui para abrir o caminho para entender o
que pode ter ocorrido, que é um dos maiores desafios da biologia e da
ciência em geral”, afirma o bioquímico Juan Antonio Aguilera, da
Universidade de Granada. “Para alguns, é o maior desafio.”
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