A última flor do Crato
- segunda-feira, 15 julho 2019 19:37
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A Chapada do Araripe, encravada entre
o Ceará e Pernambuco, é conhecida mundialmente pelos seus magníficos
fósseis de pterossauros, répteis voadores extintos que patrulhavam os
céus do Nordeste há 115 milhões de anos. A Chapada do Araripe também é
famosa pela qualidade de seus fósseis perfeitamente preservados de
peixes, anfíbios, insetos e outros invertebrados. De lá saíram inclusive
os restos de alguns dinossauros que lá viveram no Cretáceo Inferior,
quando a América do Sul acabara de se separar da África e o oceano
Atlântico ainda era um estreito braço de mar, talvez semelhante ao mar
Vermelho, que separa o continente africano da Península Arábica.
Mas a Chapada do Araripe não faz
apenas a festa dos paleontólogos de vertebrados e de invertebrados. Lá
também é um sítio paleobotânico muito importante. De lá tem saído os
fósseis mais antigos que se conhece de diversas linhagens da flora
atual, cujas raízes de sua evolução e desenvolvimento se encontram no
antigo supercontinente Gondwana.
Tome o exemplo dos lírios, estas
belas florzinhas de múltiplas colorações e que são cultivadas em jardins
e em vasos ornamentais ao redor do planeta. Na falta de fósseis mais
antigos de representantes da família das liliáceas, um estudo molecular
de 2007 sugeria que a origem da família dos lírios teria se dado há
cerca de 68 milhões de anos, nos últimos estertores da era dos
dinossauros...
Só que não. Agora se sabe que os
lírios são muito mais antigos. Tudo graças à descrição de uma planta
batizada de “lírio do Crato”, ou melhor, Cratolirion bognerianum,
um lírio que crescia à beira de um antigo lago de água doce que ficava
numa planície litorânea onde hoje é o Araripe. Seu fóssil, hoje
depositado no Museu de História Natural de Berlim, foi retirado de uma
camada fossilífera conhecida como membro Crato, que faz parte da
Formação Santana.
Com uma idade de cerca de 115 milhões
de anos, Cratolirion é o mais antigo membro da famílias das liliáceas. É
também uma das mais antigas plantas monocotiledôneas conhecidas. As
monocotiledôneas recebem este nome por apresentarem apenas um cotilédone
no interior das sementes. Os cotilédones são as primeiras folhas dos
embriões das plantas com sementes.
Já no caso das plantas florescentes dicotiledôneas (200 mil espécies), seu embrião contém dois ou mais cotilédones.
A linhagem das monocotiledôneas conta
hoje com cerca de 60 mil espécies, entre orquídeas (20 mil espécies),
ervas-doces, lírios e lírios do vale, todas as gramíneas (poáceas),
todas as palmeiras (arecáceas), bromélias, bananas, abacaxis e uma
infinidade de outras plantas essenciais para a humanidade.
Conservação excepcional
De acordo com os paleobotânicos que
descreveram a nova espécie, Cratolirion é extraordinariamente bem
preservado. Encontram-se fossilizadas todas as suas raízes, a flor e até
mesmo células individuais. Com um comprimento de quase 40 centímetros, o
espécime não é apenas extremamente grande, mas também preserva quase
todas as características típicas de plantas monocotiledôneas, incluindo
folhas estreitas com veios paralelos, bainha foliar, sistema radicular
fibroso e flores triplas.
A tomografia computadorizada do fóssil permitiu analisar os detalhes da inflorescência
escondidos na rocha calcária. Um código de cores na imagem abaixo torna
esses detalhes evidentes: o eixo principal é marcado em turquesa, as
folhas de apoio em verde escuro, os pistilos em verde claro e os restos
das pétalas reais ainda podem ser vistos em laranja.
A descoberta é tão importante que mereceu ser publicada em Nature Plants, o braço botânico da celebrada revista científica britânica Nature.
O trabalho é assinado por três pesquisadores do museu berlinense, e pela botânica brasileira Mary Bernardes-de-Oliveira, do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo
A origem das flores
Todos os principais grupos de
angiospermas têm um registro fóssil que remonta há 100 milhões de anos.
No entanto, o registro das monocotiledôneas da mesma época é muito pobre
em comparação ao das outras angiospermas.
Graças à descrição de Cratolirion,
agora se sabe que as liliáceas evoluíram no antigo supercontinente
Gondwana, uma descomunal massa de terra firme que dominava a porção
austral do planeta entre 250 milhões e 100 milhões de anos atrás, unindo
América do Sul, África, península Arábica, Madagascar, Índia, Austrália
e Antártida.
Muitas plantas dicotiledôneas já
foram descritas a partir dos mesmos sedimentos do antigo lago Crato, na
Chapada do Araripe. Estas incluem nenúfares, magnólias e parentes da
pimenta e do louro.
Em contraste com outras plantas com
flores da mesma idade cujos fósseis foram achados nos Estados Unidos,
Portugal, China e Argentina, as plantas florescentes da Chapada do
Araripe são extraordinariamente diversas, afirmam os especialistas. Isto
pode ser devido ao fato de que, há 115 milhões de anos, o lago Crato
encontrava-se em latitudes mais baixas, portanto nos trópicos, enquanto
que todos os demais fósseis conhecidos de plantas florescentes precoces
cresciam em latitudes médias, em porções temperadas do planeta. Tanto
ontem quanto hoje, a diversidade biológica é maior nos trópicos, e vai
declinando na medida em que caminhamos na direção das regiões
temperadas.
Neste sentido, observa Clément Coiffard, o principal investigador por trás da descoberta de Cratolirion, o
calcário da Formação Santana oferece uma oportunidade única para se
conhecer como era a vegetação nos trópicos no Cretáceo inferior.
"É provável que plantas com flores
tenham se originado nos trópicos, mas poucos fósseis foram descritos até
hoje." Logo, ainda não há meios de comprovar esta hipótese.
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