domingo, 7 de julho de 2019

Equipe brasileira encontra artefatos líticos mais antigos fora da África, e propõe mudança no modelo de desenvolvimento da evolução humana

Descoberta antecipa a migração do homem para fora do continente em 500 mil anos. Estudiosos postulam que o Homo erectus teria surgido no Cáucaso.
Novo modelo de dispersão do gênero Homo, que propõe que o Homo habilis tenha sido o primeiro a sair da África e que o Homo erectus tenha surgido no Cáucaso. Imagem: Divulgação

Uma equipe de cientistas brasileiros e italianos escavou os mais antigos artefatos de pedra lascada já identificados fora da África. Os objetos têm cerca de 2,4 milhões de anos e foram encontrados na Jordânia, no Oriente Médio, o que indica que a área foi ocupada por ancestrais dos humanos pelo menos 500 mil anos antes do que se imaginava até então. A descoberta questiona a cronologia atual da história evolutiva e pode ter importantes implicações para o modo como compreendemos a evolução humana, ao sugerir que o primeiro hominíneo a se aventurar para fora da África foi o Homo habilis.

Atualmente, o modelo mais aceito para o surgimento do homem e o povoamento da Terra propõe que o gênero Homo tenha surgido na África, há cerca de 2,5 milhões de anos, tendo como representante o Homo habilis. No mesmo continente, o Homo erectus teria surgido, cerca de 1,9 milhões de anos atrás, e logo depois se espalhado pelo mundo, chegando à região do Cáucaso 100 mil anos depois. A nova pesquisa, porém, mostra indícios de atividade humana na Jordânia datados de 2,4 milhões de anos — data bem anterior. Assim, os pesquisadores propõe que não foram os Homo erectus que deixam o continente africano, e sim os Homo habilis, meio milhão de anos antes do que se acredita hoje. O erectus teria surgido apenas depois, na Ásia, e de lá se espalhado pelo planeta, inclusive retornando à África.  

A descoberta poderia “colocar o Brasil no pequeno e seleto grupo de países que monopolizam a paleoantropologia do Velho Mundo”, diz Walter Neves, antropólogo evolutivo, professor aposentado da Universidade de São Paulo e um dos pesquisadores envolvidos no projeto. Neves também foi responsável pelos estudos da “Luzia”, o mais antigo fóssil humano encontrado na América do Sul. Historicamente, os estudos na área da paleoantropologia são protagonizados por países desenvolvidos, como Estados Unidos, Alemanha, França e Inglaterra.

Dois modelos em conflito

Todas as evidências apontam para que o gênero Homo tenha surgido no continente africano, em algum momento entre 2,8 a 2,4 milhões de anos atrás. O entendimento atual, porém, propõe que também na África tenha surgido o Homo erectus, há cerca de 2 ou 1,9 milhões de anos, e de lá tenha se espalhado para o mundo. Fósseis encontrados na República da Geórgia, na região do Cáucaso, parecem se encaixar essa teoria, já que são datados de 1,8 milhões de anos, ou seja, posteriores ao surgimento e possível migração do erectus.
Modelo atual é o mais aceito pela comunidade científica, mas ainda possui lacunas. Imagem: Divulgação

Uma das lacunas dessa teoria, porém, é que os cinco fósseis encontrados no sítio Dmanisi, na Geórgia, possuem uma variabilidade grande entre si, incluindo no tamanho e volume craniano. A explicação do porquê desse fenômeno ainda é incerta, mesmo tendo se passado duas décadas da descoberta do sítio, considerado um importante marco para o estudo da evolução humana.

A equipe brasileira — que trabalhou na região do vale do Rio Zarka, na Jordânia, entre 2013 e 2015 — pode ter a resposta para essa e outras perguntas. Os cientistas encontraram no local pedras lascadas que, quando analisadas por critérios como contexto geológico, formato e padrão de lascamento, indicam atividade humana. A análise sugere que os artefatos eram bem similares aos da indústria lítica Olduvaiense, a qual é associada ao Homo habilis. A datação dos objetos, no entanto, chocou a equipe: eles teriam 2,4 milhões de anos, ou seja, eram de uma época em que o Homo erectus nem sequer havia surgido. E que todos os nossos ancestrais ainda estavam restritos à África, segundo o que se imagina atualmente.

A equipe utilizou três métodos diferentes para datar as pedras lascadas e poder identificar a idade com segurança. Diante a confirmação, ficou claro que era preciso um novo modelo para explicar como artefatos líticos estariam em um local onde, segundo a teoria atual, não havia hominíneos, em uma época que os erectus, que deveriam migrar para o mundo, ainda nem existiam.

 A nova explicação, então, propõe que foi o H. habilis que saiu da África, e não o H. erectus, e essa migração ocorreu há 2,4 milhões de anos, e não 1,9, como se pensa hoje. O habilis teria se espalhado pela região da Jordânia e chegado à região do Cáucaso, mais ao norte. Ali teria surgido o Homo erectus — e não na África, como propõe o entendimento geral da evolução humana hoje. 
Reprodução dos artefatos encontrados pela equipe brasileira, que podem revolucionar a história evolutiva do ser humano. Imagem: Divulgação

O novo modelo finalmente explica o mistério da grande variabilidade dos fósseis encontrados na Geórgia: aqueles exemplares seriam de uma população de transição entre o habilis e o erectus (que estavam surgindo), e por isso há alguns crânios menores (mais parecidos com habilis) e alguns crânios maiores (mais parecidos com o erectus). 

A partir do Cáucaso, o Homo erectus se espalhou para o mundo, inclusive, retornando para África onde posteriormente o Homo sapiens surgiu. 

Outras explicações

As novas descobertas, porém, não respondem apenas ao mistério dos fósseis variáveis da Geórgia. Ela também ajuda a explicar um outro enigma da paleontologia que perdura por muito tempo: o do “Hobbit” da Ilha das flores.
O Homo floresiensis foi encontrado na Indonésia há cerca de dez anos e foi apelidado de “Hobbit” por sua pequena estatura: ele tinha cerca de um metro de altura e um crânio menor que de um chimpanzé. O fóssil data de cerca de 50 mil anos atrás — bastante recente na história evolutiva — e intrigou os cientistas por suas medidas diminutas. A explicação mais aceita é de que ele teria sofrido do chamado “efeito ilha’: espécies isoladas em ilhas diminuem seu tamanho ao longo do tempo, devido à limitação de recursos e alimento do ambiente se comparado ao continente. A questão que fica é: qual espécie passou por esse processo para gerar o floresiensis? Até então, a explicação mais apoiada envolvia o Homo erectus, o homínineo explorador que deixou o continente africano para se espalhar pelo mundo. O problema é que o erectus é muito, muito maior que o floresiensis, e teria que passar por um “efeito ilha” muito exagerado para atingir essas proporções pequenas.
O novo modelo proposto pelos cientistas também explica esse enigma: quem deixou o continente africano foi o habilis, e não os erectus. Portanto, o “Hobbit” teria sido produto de um “efeito ilha” em uma espécie que já era pequena: o habilis tinha cerca de 1,2 metros de altura, muito menor do que o erectus, com seus 1,75 de altura.

A descoberta da equipe brasileira também pode explicar um outro mistério: pesquisadores chineses afirmam ter encontrado ferramentas de pedra lascada no país datadas de 2,1 milhões de anos, o que, no modelo atual, seria impossível, já que os Homo só teriam deixado a África há 2 milhões de anos. Há quem duvide da veracidade dessa datação — ela só foi feita com um método, quando o ideal é provar com mais de um — mas o novo modelo oferece uma explicação para isso, já que os homínineos teriam deixado a África há 2,4 milhões de anos, tornando possível que tivessem chegado ao leste asiático 300 mil anos depois.

Reproduções dos crânios de dois Homo habilis, dois Homo erectus e um Homo florisiensis, na ordem.

O estudo será publicado na revista Quaternary Science Reviews e foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e pela Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research, dos Estados Unidos. Além de Walter Neves, participaram da pesquisa Fabio Parenti, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e do Istituto Italiano di Paleontologia Umana, na Itália; Giancarlo Scardia, da Unesp; Astolfo Araújo, do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP;  Daniel P. Miggins, da Oregon State University, dos EUA; e Axel Gerdes, da Goethe University, na Alemanha.

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