Os primeiros passos de novas espécies
Plantas e animais se diferenciam por meio de mecanismos surpreendentes
CARLOS FIORAVANTI |
Edição 212 - Outubro de 2013
“Estamos vendo algo muito raro, o surgimento de novas espécies”, diz Fábio Pinheiro, pesquisador do Instituto de Botânica de São Paulo. Ele detectou a formação de espécies – ou especiação – entre representantes de uma mesma espécie. “Darwin já falava em variações entre espécies, mas não poderia imaginar que fossem relevantes a ponto de inviabilizar os cruzamentos entre populações de uma mesma espécie.” Em 2010 Pinheiro colheu pólen e induziu o cruzamento entre 258 exemplares de 13 populações de Epidendrum denticulatum, encontradas em matas no interior e no litoral da Bahia, Espírito Santo, Minas, Rio e São Paulo, mantidas no orquidário do instituto. Algumas populações, até mesmo do próprio ecossistema, acumularam diferenças genéticas que inviabilizaram a formação de embriões viáveis. A impossibilidade de as células reprodutivas de uma mesma espécie gerarem descendentes férteis – a incompatibilidade reprodutiva – “é uma das primeiras etapas da diferenciação genética que, em milhares de anos, pode levar a uma nova espécie”, diz.
Ele examinou a separação entre linhagens de uma única espécie, enquanto o enfoque habitual compara espécies distintas – e depois de terem se formado. “Essa abordagem permitiu a Pinheiro não só quantificar a intensidade de isolamento entre linhagens novas como também associar esses estágios iniciais de diferenciação com os eventos históricos de expansão e fragmentação de florestas e campos, que catalisaram a diferenciação entre populações e moldaram os padrões de isolamento reprodutivo observados”, comenta Salvatore Cozzolino, especialista em orquídeas da região do Mediterrâneo e professor da Universidade de Nápoles Federico II, na Itália, onde o botânico brasileiro fez parte de suas análises. “Conhecer os primeiros estágios de isolamento reprodutivo envolvidos na formação de novas espécies é um passo importante para entender como a extraordinária biodiversidade do Brasil, e das regiões tropicais em geral, é gerada e mantida.”
Em paralelo, um estudo com duas espécies de bromélias do Pão de Açúcar e outras formações rochosas da cidade do Rio de Janeiro – uma de flores brancas e outra de flores vermelhas – expôs um pouco mais dos tortuosos caminhos da evolução dos seres vivos.
De acordo com um conceito clássico, para serem considerados da mesma espécie, os organismos devem trocar genes entre si e não com seres de outras espécies. No entanto, as análises de Clarisse Palma Silva, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, indicaram que as populações da mesma espécie de bromélia já são geneticamente bastante diferentes entre si e muito raramente trocam genes uma com a outra, mesmo estando em morros muito próximos. Além disso, as bromélias de espécies diferentes de um mesmo lugar trocam genes, formando híbridos férteis que podem cruzar entre si e com os representantes das espécies puras de que se originaram. O inesperado rege a evolução.
Estudos recentes com forte fundamentação genética indicam que os processos observados em orquídeas e bromélias se passam também em outras plantas e animais. Os fenômenos que estão sendo descritos mostram a fragilidade das supostas regras de funcionamento de um dos processos biológicos básicos, a especiação. Agora se vê que esse processo ocorre por mecanismos mais diversificados do que se pensava. Tanto com plantas quanto com animais, seres que deveriam cruzar normalmente entre si perdem a afinidade reprodutiva, às vezes em consequência de uma alteração genética ínfima, e os que aparentemente não poderiam se reproduzir entre si geram descendentes, muitas vezes férteis. Sutis diferenças genéticas podem inviabilizar o cruzamento entre seres morfologicamente idênticos. Outras vezes, porém, as diferenças genéticas, ainda que grandes, permitem que lagartos ou anfíbios com parentesco distante, por exemplo, cruzem e – às vezes de modo rápido – formem outras espécies.
Definições frágeis
Os novos achados complicam o que já não era fácil de entender, começando pelo conceito de espécie, tão básico para a biologia como o de gene para a genética. “Até hoje não temos um bom conceito de espécie”, diz o zoólogo Célio Haddad, professor da Unesp de Rio Claro. Desde 1859, quando Charles Darwin publicou o livro A origem das espécies e reconheceu que a distinção entre espécie e linhagem – ou população – era vaga e arbitrária, a situação não melhorou muito. Em 2007, Kevin de Queiroz, biólogo do Museu Smithsonian de Washington, revisou vários conceitos de espécie – o isolamento ou reconhecimento biológico, a capacidade de viver em um mesmo espaço, coesão genética ou espacial ou a história evolutiva comum – e reconheceu que todos eram imperfeitos.
“A abordagem mais conservadora, que considera apenas os aspectos morfológicos, tende a unir várias espécies em uma só”, diz Haddad, “enquanto a chamada taxonomia integrativa, mais moderna, detalhada e precisa, que considera também variações de DNA e de comportamento, tende ao desmembramento de espécies”. Segundo ele, o conceito de espécie varia caso a caso, de acordo com o critério e o olhar. As orquídeas que não cruzam mais entre si podem ser vistas de três modos: como uma espécie se diferenciando; como representantes de espécies diferentes; ou como semiespécies, conceito que o zoólogo Ernst Mayr apresentou em 1963 para definir as populações de animais ou plantas que não completaram o processo de diferenciação.
Haddad acredita que a incompatibilidade reprodutiva vista nas orquídeas e nas bromélias deve ser comum também em animais. “Só que ainda não avaliamos devidamente.” Os exemplos são escassos. Já se viu que as populações de uma espécie de planta de flores brancas da região próxima ao Ártico, a Draba fladnizensis, apresentavam incompatibilidade reprodutiva total. Populações de crustáceos marinhos conhecidos como copépodes – da costa Leste e os da costa Oeste dos Estados Unidos – não conseguiam mais gerar descendentes férteis. Outros invertebrados marinhos, os briozoários, formavam populações incompatíveis geneticamente, ao longo do litoral dos países europeus.
Trabalhos como esses “abrem uma janela para os diferentes mecanismos envolvidos na formação de novas linhagens”, diz Samantha Koehler, pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) especialista em orquídeas.
E mostram como diferenças no DNA podem determinar a formação de novas espécies e redimensionar as regras da evolução. Para essas orquídeas e bromélias, a incompatibilidade reprodutiva parece ser mais decisiva do que um fator que Darwin via como fundamental para a especiação – o isolamento geográfico, por meio do qual populações distantes geograficamente poderiam se diferenciar a ponto de formarem novas espécies.
“O fundamento da especiação é o isolamento, mas o mecanismo de isolamento não é obrigatoriamente geográfico”, diz Mário de Pinna, pesquisador do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP). “O isolamento reprodutivo é o resultado de algum fator que impede o fluxo de genes, que pode ser o isolamento geográfico ou alguma contingência biológica ou local que resulte em segregação de parte de uma população.”
A distância parece não ser mais tão importante para impedir a afinidade reprodutiva entre as populações de Epidendrum. Populações separadas por uma distância de mil quilômetros ainda se mostraram aptas a cruzar entre si e formar embriões viáveis, enquanto outras de uma mesma localidade não eram mais ( ver diagrama).
“É o isolamento reprodutivo que efetivamente vai separar as linhagens”, reitera Rodrigo Marques Lima dos Santos, pesquisador do Instituto de Biociências da USP e professor da Universidade de Mogi das Cruzes (UMC) que estuda a especiação em lagartos. Espécies com parentesco distante, até mesmo de gêneros taxonômicos diferentes, podem cruzar entre si, resultando em híbridos férteis. Antes considerados improváveis, esses cruzamentos indicam que o isolamento geográfico e o acúmulo de diferenças genéticas ao longo de milhares de anos não bastam para o isolamento reprodutivo. Mais uma vez ampliando a visão clássica de evolução, o surgimento de novas espécies pode também ser imediato, até mesmo sem fases intermediárias. “Dois lagartos de espécies distintas, mas cromossomicamente compatíveis, poderiam cruzar originando filhotes híbridos que já poderiam ser espécies novas”, ele diz. “Se o híbrido for viável, já sai correndo e algumas vezes melhor que seus pais.”
Criando a própria morte
Do mesmo modo que os cachorros sem raça definida tendem a ser mais vigorosos e resistentes a doenças que os de raça pura, os lagartos híbridos geralmente são mais vigorosos que os pais, mais competitivos por alimentos e espaço e podem levar os pais à extinção, já que convivem todos no mesmo espaço. “As espécie parentais estão criando um forte competidor, que pode levá-los à morte”, observa Santos. Algumas vezes, ao refazer as linhas de parentesco entre os animais, ele encontrou apenas os híbridos e não mais as espécies que provavelmente os formaram. “Apesar dos problemas de amostragens envolvidos e do impacto humano levando espécies à extinção, a hibridação também pode reduzir a biodiversidade, à medida que as espécies se fundem e depois desaparecem.”
Pererecas também podem sair de cruzamentos improváveis. É o caso de uma perereca verde das matas do Sudeste e Sul do Brasil que ganhou o nome de Phyllomedusa tetraploidea por causa de uma característica rara entre animais vertebrados: cada célula dessa espécie abriga quatro cópias de cada cromossomo, ou seja, é tetraploide (a espécie humana e a maioria dos vertebrados, com duas cópias, são diploides).
Haddad e outros biólogos concluíram que a nova espécie deve ser o resultado do cruzamento entre machos e fêmeas de uma espécie diploide, a Phyllomedusa distincta, ou de um ancestral comum. Ela é tetraploide porque os gametas (espermatozoides e óvulos) que a originaram eram diploides; normalmente são haploides, com apenas uma versão de cada cromossomo. Os gametas formarão descendentes com 52 cromossomos em cada célula, o dobro dos 26 cromossomos da espécie parental, que lhe deu origem. “Esse é um fenômeno altamente improvável”, diz Haddad, “mas que em milhões de anos de evolução apresenta alguma chance de acontecer”.
A P. tetraploidea pode cruzar com os parentais e formar pererecas híbridas triploides, com 39 cromossomos em cada célula. Os descendentes (triploides) tentam cruzar com os parentais (diploides), mas são estéreis, pois seus gametas são defeituosos. Às vezes, porém, o resultado pode ser um animal que Haddad chama de quase estéril: os cromossomos se organizam de modo a permitir a produção de uns poucos gametas viáveis, “desrespeitando as definições clássicas de isolamento reprodutivo entre espécies diferentes”, diz ele.
Mas por que seres evolutivamente distantes conseguem se reproduzir entre si e seres muito parecidos não conseguem mais? Que diferenças são relevantes? Santos acredita que a compatibilidade reprodutiva pode ser determinada pelo número e pela forma dos cromossomos, já que espécies de lagartos com uma similaridade genética de apenas 85%, mas cromossomicamente compatíveis, podem gerar descendentes férteis. “O homem e o chimpanzé são mais de 98% semelhantes, do ponto de vista genético, e não se reproduzem entre si, em consequência, em boa parte, de deleções, fusões e rearranjos cromossômicos”, ele diz. “A espécie humana tem 46 e o chimpanzé, 48 cromossomos, e cerca de 10 grandes inversões cromossômicas também separam as espécies. É o suficiente para o isolamento reprodutivo.”
Cromossomos, cantos e cheiros
Entre os animais, mudanças sutis de comportamento – no canto de aves ou no coaxar dos anfíbios – podem dificultar o reconhecimento entre as espécies e o acasalamento, induzindo a diferenciação das linhagens. A incompatibilidade reprodutiva pode ser resultado também de diferenças morfológicas – expressas, por exemplo, na dimensão dos órgãos sexuais, que impede um cão são-bernardo de cruzar com uma poodle, embora possam cruzar com raças de tamanhos intermediários, já que todas as 400 raças de cães têm o mesmo número de cromossomos.
Entre as plantas, mudanças no odor podem deixar de atrair insetos polinizadores e servir de barreira para a reprodução. No estudo com as orquídeas, as diferenças genéticas é que pesaram, mais uma vez, de modo surpreendente. A maioria dos cruzamentos entre as representantes de Epidendrum apresentou um padrão assimétrico: o pólen retirado da flor de um lugar pode não fertilizar a flor de outro lugar, mas a fertilização no sentido inverso dava certo ( ver diagrama). “O padrão assimétrico de reprodução é típico dos primeiros estágios de especiação, quando linhagens distintas começam a se diferenciar”, diz Pinheiro. “O padrão reprodutivo assimétrico deve estar disseminado na natureza”, comenta Fábio de Barros, coordenador do orquidário.
Esse fenômeno pode ser o resultado da incompatibilidade entre o DNA do núcleo das células reprodutivas e o DNA de um compartimento não nuclear, o cloroplasto, do óvulo da planta receptora. “Quase sempre se pensa apenas no DNA do núcleo, mas é a variação do DNA do cloroplasto que determina a viabilidade do embrião e a compatibilidade entre as populações”, ele concluiu, após analisar as sementes de todos os cruzamentos por meio de nove marcadores para o DNA nuclear e seis para o DNA de cloroplastos.
Pequenos trechos do genoma ou mesmo poucos genes é que talvez possam determinar a formação ou a preservação das espécies. “Os organismos devem trocar facilmente trechos do genoma que facilitam sua adaptação, mas os genes ou ilhas de especiação, que definem as características de uma espécie, como a cor das flores, não são trocados”, diz Clarisse. Essa visão explicaria por que as espécies de bromélias dos morros do Rio, mesmo formando híbridos, se mantêm distintas, uma com flores brancas e outra com flores vermelhas.
“Temos de explorar o privilégio de estarmos em um país megadiverso e coletar mais dados sobre reprodução e polinizadores, desse modo definindo os fatores ambientais que poderiam contribuir para a diferenciação das linhagens”, sugere Samantha, da Unifesp. É o que Pinheiro pretende fazer, ao planejar o transplante de linhagens de Epidendrum do litoral para o cerrado para testar sua hipótese de que o isolamento geográfico seria uma consequência, não a causa da especiação. Se der certo, ele ajudará de outro modo a atualizar as ideias de Darwin.
Projetos
1. Filogeografia das espécies de Epidendrum (Orchidaceae) integrantes do clado Atlântico (subgênero Amphiglottium) (09/15052-0); Modalidade Pós-doutorado. Coordenador Fábio Pinheiro – Instituto de Botânica; Investimento R$ 280.131,37 (FAPESP).
2. Especiação, isolamento reprodutivo e genética de populações na família Bromeliaceae: implicações taxonômicas, evolutivas e conservacionistas (09/52725-3); Modalidade Programa Biota – Apoio a Jovens Pesquisadores; Coordenadora Clarisse Palma da Silva; Investimento R$ 441.491,60 (FAPESP).
3. Especiação de anfíbios anuros em ambientes de altitude (08/50928-1); Modalidade Projeto Temático Coordenador Célio Haddad – Unesp; Investimento R$ 1.407.985,13 (FAPESP).
Artigos científicos
GRUBER, S. L. et al. Cytogenetic analysis of Phyllomedusa distinct Lutz, 1950 (2n = 2x = 26), P. tetraploidea Pombal and Haddad, 1992 (2n = 4x = 52), and their natural triploid hybrids (2n = 3x = 39) (Anura, Hylidae, Phyllomedusinae). BMC Genetics. v. 14, n. 1, p. 75, 2013 (on-line).
PINHEIRO, F. et al. Phylogeographic structure and outbreeding depression reveal early stages of reproductive isolation in the Neotropical orchid Epidendrum denticulatum. Evolution. v. 67, p. 2.024-39, 2013.
PALMA-SILVA C. et al. Sympatric bromeliad species (Pitcairnia spp.) facilitate tests of mechanisms involved in species cohesion and reproductive isolation in Neotropical inselbergs. Molecular Ecology. v. 20, 3.185-201, 2011.