Morre Francisco Salzano, geneticista que ajudou a traçar retrato do Brasil
Cientista mapeou genes de indígenas e ajudou na compreensão da história evolutiva no continente
Reinaldo José Lopes
São Carlos
O geneticista gaúcho Francisco Mauro Salzano, um
dos principais especialistas da área no país, morreu nesta quinta-feira
(27) aos 90 anos, de complicações após uma cirurgia de hérnia.
O sepultamento será nesta sexta (28), no cemitério João 23, em Porto
Alegre, às 18h30. O velório acontece no mesmo local, a partir das 11h.
Salzano costumava recordar, de modo bem-humorado, que tinha "rodado"
ao prestar vestibular para medicina em 1948. A tentativa de seguir a
carreira médica aconteceu por desejo do pai do pesquisador, que tinha
dirigido a Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul e queria que o filho
fosse pelo mesmo caminho.
Ao mesmo tempo, porém, Salzano também prestara vestibular para
história natural --o que hoje chamaríamos simplesmente de biologia —e
acabou passando e fazendo o curso.
A decisão se revelou acertada tanto do ponto de vista pessoal —mais
tarde, Salzano confessaria não ter mesmo muita vocação para lidar com
pacientes— quanto profissional: ele acabaria se tornando um dos
principais especialistas brasileiros da área de genética humana.
Em parte, a posição de destaque conseguida pelo pesquisador, nascido
em 1928 em Cachoeira do Sul (RS), deveu-se a uma sucessão de excelentes
mentores. Entre o final da graduação na UFRGS (Universidade Federal do
Rio Grande do Sul), o doutorado na USP e o pós-doutorado na Universidade
de Michigan, nos EUA, Salzano conviveu com pesquisadores como o
ucraniano Theodosius Dobzhansky, um dos responsáveis por lançar as
bases teóricas da biologia evolutiva moderna; o brasileiro Crodowaldo
Pavan, pioneiro dos estudos que ligavam genética e evolução no país; e o
americano James Neel, com pioneirismo comparável na aplicação dos
conhecimentos sobre genética à saúde humana.
Com a ajuda desses pesquisadores, Salzano começou a estudar a
genética de populações de drosófilas (moscas-das-frutas), tema com o
qual continuaria a trabalhar, mas logo passou a concentrar seu trabalho
nos estudos da variabilidade genética da população brasileira, e em
especial a dos grupos indígenas.
Conforme contou em entrevista à revista Pesquisa Fapesp, essa decisão
foi tomada após conversas com James Neel, nas quais o pesquisador
americano argumentava que a riqueza de informações sobre a história
evolutiva humana contida no DNA dos povos indígenas poderia ser
facilmente estudada por pesquisadores dos mesmos países onde vivem esses
povos, o que dava uma vantagem considerável ao campo nascente da
genética no Brasil.
Salzano e seus colaboradores não tardaram em colocar essa deliberação
em prática. Já como livre-docente de UFRGS, ele começou a trabalhar com
os índios xavantes, etnia que ele e seus alunos estudam até hoje, bem
como com outras tribos em todo o território nacional.
O mapeamento genético desses grupos ajudou os pesquisadores a
compreender melhor a dinâmica evolutiva que levou ao surgimento das
centenas de etnias indígenas das Américas e a identificar, entre outras
coisas, variantes genéticas que podem predispor esses grupos a doenças.
Mas o grande impacto do trabalho de Salzano e seus alunos nessa área
foi sobre a compreensão da história evolutiva humana no nosso
continente.
Os dados de DNA levantados por eles, ao lado dos obtidos por outros
grupos de pesquisadores, ajudaram a traçar um retrato molecular da
história dos brasileiros, mostrando, por exemplo, a profunda assimetria
que houve entre pessoas de origem europeia, de um lado, e africanos e
indígenas, de outro, na formação da população do país.
Esses dados mostram que a maior parte dos brasileiros de hoje,
inclusive os que se declaram brancos, carrega a herança genética
indígena e negra em seu DNA do lado materno.
Por outro lado, quando se examina o DNA herdado pelo lado paterno, há
uma predominância esmagadora da contribuição europeia, que é consonante
com o que se sabe sobre as vantagens que os colonizadores tinham sobre
escravos negros e indígenas na hora de conseguir parceiras.
Salzano e seus colaboradores também usaram o DNA para estimar as
origens dos primeiros seres humanos que chegaram às Américas, com
resultados que apontam para grupos oriundos da Sibéria, que teriam
cruzado o estreito de Bering em direção ao continente entre 20 mil e 15
mil anos atrás.
Baseando-se em sua experiência no estudo da diversidade genética
humana, Salzano nunca escondeu opiniões polêmicas. Saiu em defesa de
colegas como o próprio Neel, acusados de tratar populações indígenas de
maneira antiética (acusação nunca comprovada).
Dizia ainda que as raças
humanas tinham uma base biológica, e que havia diferenças genéticas
significativas entre os povos do planeta —o que não impedia que todos
merecessem o mesmo tratamento e os mesmos direitos, segundo ele.
Ao longo de sua carreira, o pesquisador foi escolhido para integrar
tanto a Academia Brasileira de Ciências quanto a Academia Nacional de
Ciências dos Estados Unidos.
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