'Estou em luto profundo', diz o 'pai' de Luzia após perda de fóssil em museu
Crânio mais antigo do Brasil estava no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, durante o incêndio
Karina Gomes - Paris
Há 20 anos, o antropólogo e arqueólogo Walter
Alves Neves revelava Luzia ao mundo. Foi esse o apelido que o
pesquisador deu ao esqueleto humano mais antigo do Brasil e que
revolucionou as teorias científicas sobre a ocupação do continente a
partir de 1998.
O crânio de Luzia, ícone da pré-história brasileira, estava no Museu Nacional do Rio
de Janeiro durante o incêndio no último domingo (2). O fóssil
estaria sob uma área com escombros, e técnicos do museu não
conseguiram acessar o local.
“É uma perda irreparável”, diz Neves ao ressaltar o impacto
devastador da destruição do acervo nas pesquisas sobre a evolução humana
nas Américas e no Brasil.
Com o chamado ‘modelo dos dois componentes biológicos’, Neves
desafiou o modelo hegemônico de ocupação única do continente pelo povo
de Clóvis, a partir do Novo México, nos Estados Unidos. “A popularidade
que a Luzia ganhou na mídia fez com que a comunidade científica levasse a
sério a minha teoria sobre os primeiros americanos”, diz o professor
aposentado do Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Instituto de
Biociências da Universidade de São Paulo (USP).
O nome dado à jovem paleoamericana, que morreu com cerca de 20 anos
de idade, seria uma versão abrasileirada de Lucy, o fóssil de
hominídeo mais antigo do mundo, com 3,2 milhões de anos. O “pai de
Luzia” diz estar em luto profundo pela “tragédia anunciada” no Museu
Nacional, que descreve como um “crime contra o Brasil e a humanidade”.
Folha - Qual é o impacto da perda do crânio de Luzia para a ciência?
Walter Alves Neves - Esse incêndio representa um
crime contra o Brasil e contra a própria humanidade. Além da Luzia, o
museu tinha a maior coleção de esqueletos dos primeiros americanos
oriundos da região de Lagoa Santa. O estudo sobre esses povos precisa
passar necessariamente por esse material, e a maior parte dele estava no
museu. Isso vai afetar negativamente o trabalho de gerações de
cientistas que queiram entender a evolução humana no continente.
Como a análise do fóssil de Luzia ajudou a confirmar a sua
teoria sobre o povoamento das Américas, que já vinha sendo formulada
desde a década de 1980?
A Luzia deu visibilidade para as nossas pesquisas no Brasil e no
exterior. Antes, acreditava-se que a América tinha sido povoada por
apenas um tipo de população, sob o modelo da migração única. A partir
dos meus estudos com os esqueletos de Lagoa Santa e também outros na
América do Sul e Mesoamérica, ficou claro que a América foi ocupada por
duas populações com morfologias completamente distintas e em momentos
diferentes. Os antepassados de Luzia –com formato craniano semelhante ao
de africanos e australianos– chegaram às Américas há 14.000 anos pelo
nordeste da Ásia através do Estreito de Bering, que liga os oceanos
Pacífico e Ártico, mas não deixaram descendentes. Dois milênios mais
tarde, vieram os ameríndios com morfologia mongoloide, que é a da maior
parte dos índios atuais.
O esqueleto de Luzia foi encontrado na gruta Lapa Vermelha 4, no município de Pedro Leopoldo (MG) a 12 metros de profundidade. Por que ele é tão singular?
O esqueleto de Luzia não foi encontrado por mim, mas pela missão
franco-brasileira liderada pela arqueológoga francesa Annette
Laming-Emperaire, que morreu de forma repentina poucos anos depois da
descoberta. O esqueleto de Luzia ficou guardado por duas décadas no
acervo do Museu Nacional sem que houvesse estudos ou publicações
relevantes. Em 1995, eu comecei a analisar a morfologia craniana de
Luzia. Em Lagoa Santa, encontramos mais de 40 esqueletos datados entre
8.000 e 10.000 anos, que são raríssimos. O da Luzia, com mais de 11.000
anos, era singular. É uma perda irreparável.
Há outras pesquisas recentes com os fósseis de Lagoa Santa?
Sim. Um ex-estudante do instituto está tentando extrair o DNA de
fósseis encontrados no local. Se ele conseguir extrair bem esse material
de DNA, poderá ou não –mas estou otimista– confirmar o meu modelo de
ocupação das Américas. A Luzia e outros crânios que foram encontrados
nas Américas confirmaram a minha hipótese. O sucesso midiático de Luzia
permitiu que a minha teoria chegasse à comunidade científica
internacional, que passou a levar a sério o que vinha sendo dito por mim
desde a década de 1980.
Restou algum material relacionado ao crânio de Luzia?
Tenho uma cópia da reconstituição facial e que está comigo na USP. A
reconstituição feita pelo antropólogo britânico Richard Neave confirmou a
minha análise de que Luzia tinha traços africanos e australianos com
uma morfologia craniana muito diferente da dos indígenas atuais. Há três
meses, o Museu Nacional doou uma réplica do crânio de Luzia feita com
impressoras 3D à Prefeitura de Pedro Leopoldo. Houve uma solenidade para
marcar o ‘Dia de Luzia’ [a homenagem instituída em 2016 é feita todos
os anos no dia 14 de junho]. Mas é só uma réplica. Não dá para extrair
DNA, por exemplo. Diante dessa catástrofe, o crânio de Luzia é só um
pequeno exemplo do que perdemos.
O incêndio no Museu Nacional era uma tragédia anunciada?
Foi uma negligência de décadas de ausência do poder público e,
portanto, uma tragédia anunciada. Todos os que conheciam o museu por
dentro sabiam que essa não era uma questão de se aconteceria, mas de
quando iria ocorrer. O museu foi relegado às traças pelo poder público.
Estou em luto profundo. Todos os que fizeram pesquisas no acervo sabiam
que o museu não tinha condições de funcionar em termos de
infraestrutura. O incêndio é resultado do acúmulo do descaso do poder
público.
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