Peixes-Boi de quatro pernas
Você
sabia que algumas espécies fósseis de peixes-boi ainda tinham as quatro
patas? Conheça um pouco mais sobre a incrível trajetória evolutiva desse
grupo!
Estamos familiarizados com as imagens dos pacatos e
simpáticos peixes-boi (ou manatins) se movendo vagarosamente pelos rios
da Amazônia brasileira. Juntamente com os dugongos, as três espécies de
peixes-boi correspondem ao total de espécies existentes do grupo dos
Sirênios. Mas, poucos sabem que este grupo, hoje cada vez mais ameaçado,
foi muito mais diverso e apresenta um registro fóssil notável, com
espécies com características intermediárias, como com quatro patas,
necessárias para entender como um grupo de mamíferos aparentados aos
elefantes se aventurou e triunfou pelas águas de rios, lagos e oceanos
espalhados pelo mundo.
Diversidade Atual e Características principais
Os sirênios são mamíferos aquáticos herbívoros,
conhecidos por não apresentarem uma cobertura extensa de pelos no corpo e
ausência de patas traseiras. Suas patas dianteiras (“braços”) são
achatadas e com formato de remo, úteis para manobrar, enquanto a sua
cauda achatada e expandida é a principal estrutura para propulsão. Além
disso, são conhecidos pelo seu lento metabolismo, refletido nos seus
movimentos vagarosos1.
Existem atualmente quatro espécies de sirênios: três pertencem ao grupo dos Triquecídeos e uma pertencente ao grupo dos Dugongíneos. As principais diferenças externas entre elas estão resumidas na figura 1.
Os Triquecídeos incluem o peixe-boi-da-amazônia (Trichechus inumguis), o peixe-boi-marinho (Trichechus manatus) e o peixe-boi-africano (Trichechus senegalensis).
Estamos mais familiarizados com a primeira dessas espécies, habitante
dos rios amazônicos. O peixe-boi-marinho, por sua vez, habita as zonas
costeiras do sul dos Estados Unidos, América Central até a costa do
Nordeste brasileiro. A terceira espécie, o peixe-boi-africano, habita
rios e zonas costeiras da África equatorial.
Já a única espécie representante dos Dugongíneos, o dugongo (Dugong dugon), pode ser amplamente encontrado nas zonas costeiras da África Oriental, sul e sudeste da Ásia até o norte da Austrália.
Infelizmente, uma quinta espécie foi extinta por ação humana: a vaca-marinha-de-steller (Hydrodamalis gigas) (figura 2). Este animal, mais próximo dos dugongos que dos manatins, era o maior dos sirênios2.
Podia alcançar oito metros de comprimento e pesar algo próximo de 10
toneladas. Habitava as gélidas águas marinhas do extremo norte do Oceano
Pacífico, e possuía uma camada de 10 centímetros de gordura para
garantir o isolamento térmico. Essa espécie foi descoberta em 1741, mas a
caça predatória por carne, pele e gordura selaram seu destino: a
vaca-marinha foi extinta em apenas 27 anos1!
Formas Fósseis e Evolução
Mas, de onde vieram os sirênios? Dados comparando
sequências de DNA confirmam que seus parentes mais próximos são os
elefantes, grupo do qual divergiu há 65 milhões de anos (muito próximo
do momento da extinção dos dinossauros)2.
Os fósseis mais antigos de sirênios (conhecidos
informalmente como prorastomídeos) possuem idade entre 50 e 47 milhões
de anos, tendo vivido durante a época do Eoceno, e foram encontrados em rochas da Jamaica e Flórida (Estados Unidos). Batizados de Prorastomus e Pezosiren, estes animais viviam possivelmente em rios e estuários, de acordo com os estudos das rochas onde foram encontrados1,3. Pezosiren, que
possui um esqueleto mais completo, era um animal com 2 metros de
comprimento, do tamanho de um grande porco. Recentemente, fósseis
incompletos de idade similar também foram encontrados na África
(Tunísia)4.
Os prorastomídeos apresentam a boca voltada para a frente, diferentemente da boca que se abre para baixo (ou ventralmente) nas espécies mais recentes (Pezosiren apresenta uma ligeira inclinação da mandíbula, indicando parentesco mais próximo com as formas recentes que com Prorastomus).
A boca voltada para baixo facilita a obtenção de alimento do fundo de
ambientes aquáticos. O pescoço era mais alongado em comparação às
espécies atuais, e suas vértebras possuíam pontos de fixação de
ligamentos que permitiam ao animal sustentar o pescoço quando em terra
firme. As patas traseiras são bem desenvolvidas, tendo também uma forte
conexão da região pélvica com a coluna vertebral (quatro vértebras da
coluna fundidas com a pelve, chamadas de vértebras sacrais). Essas duas
últimas feições indicam que estes animais se moviam confortavelmente em
terra, sob as quatro patas (figura 3 e 4).
Por outro lado, outras características indicam hábitos aquáticos
para os prorastomídeos. Suas costelas são espessas e formadas por osso
denso assim como nos outros sirênios, o que consequentemente aumenta a
densidade do animal, ajudando-o a contrabalançar a tendência de flutuar –
devido ao ar armazenado nos pulmões. As vértebras da cauda não
apresentam pontos amplos para fixação da musculatura locomotora como em
outros sirênios, indicando que os prorastomídeos dependiam
principalmente do batimento dos seus membros para nadar, assim como
fazem as lontras atuais3 (figura 3 e 4).
Fósseis de sirênios com idades estimadas a partir de 45 milhões de
anos foram encontrados em rochas na Índia, Paquistão, Senegal, Egito,
França, Hungria e Espanha5, indicando uma forte
diversificação de espécies e ampliação da distribuição do grupo para
zonas tropicais das Américas, África, Europa e Ásia ao longo de poucos
milhões de anos.
Esses animais, com destaque para Protosiren,
apresentam uma conexão mais fraca da cintura pélvica com a coluna
vertebral (com apenas uma vértebra sacral) e patas traseiras reduzidas,
indicativo de que não mais poderiam caminhar em terra firme – talvez
ainda se aventurassem em terra, mas arrastando-se, assim como fazem as
focas. Na cauda, as vértebras são mais largas que nos prorastomídeos,
indicando fixação de poderosos músculos utilizados para gerar movimentos
ondulatórios para a propulsão. Provavelmente foi neste estágio que a
extremidade da cauda passou a se tornar mais achatada e expandida.
Os fósseis de Triquecídeos (manatins), Hydrodamalíneos
(vaca-marinha-de-steller) e Dugongíneos (dugongos) são encontrados em
rochas a partir de 34 milhões de anos, apesar de dados moleculares
indicarem que já existiam há 41 milhões de anos2. As adaptações para o ambiente aquático se acentuaram em relação à Protosiren:
o pescoço se torna mais curto, as patas dianteiras apresentam a forma
de remos (similar à condição das baleias), a conexão da coluna com a
cintura pélvica é perdida (ausência de vértebra sacral) e as patas
traseiras são reduzidas ainda mais, sendo a tíbia (um dos ossos da
canela) e os pés ausentes em algumas espécies fósseis, enquanto que nas
espécies atuais as patas são perdidas por completo1 (figuras 3 e 4).
Contudo, novas descobertas parecem indicar um quadro mais complexo.
Por exemplo, a recente descoberta de uma nova espécie de sirênio da
Espanha, datando entre 48 e 42 milhões de anos, batizada de Sobrarbesiren5
(figura 3), que apresenta patas traseiras bem desenvolvidas e uma
conexão mais forte da coluna com a cintura pélvica (duas vértebras) do
que encontrada em Protosiren. No entanto, as análises de
parentesco indicam que ele seria mais próximo ao grupo dos dugongos, o
que poderia indicar que a redução das patas traseiras poderia ter
ocorrido mais de uma vez na evolução dos sirênios: uma em Protosiren e outra no grupo que inclui todas as formas atuais.
O fluxo recente de novas descobertas das últimas décadas indica que
os cientistas estão apenas arranhando a superfície da história
evolutiva dos sirênios. Novos fósseis mais completos são necessários
para entender melhor alguns passos da transformação, especialmente das
mãos e pés, escassos nos fósseis de prorastomídeos, e inferidos com base
na presença de zonas de articulação dos ossos do antebraço e da canela.
Dado o trágico destino da vaca-marinha-de-steller e as condições
dramáticas de degradação ambiental, caça e poluição dos rios e oceanos
enfrentados por dugongos e manatins, cabe a nós humanos manter a
continuidade desta intrigante aventura evolutiva que já se estende por
mais de 50 milhões de anos.
Referências:
[1] Berta, A., Sumich, J. L., & Kovacs, K. M. (2015). Marine mammals: evolutionary biology. Academic Press.
[2] Springer, M. S., Signore, A. V., Paijmans, J. L., Vélez-Juarbe, J., Domning, D. P., Bauer, C. E., … & Meredith, R. W. (2015). Interordinal gene capture, the phylogenetic position of Steller’s sea cow based on molecular and morphological data, and the macroevolutionary history of Sirenia. Molecular Phylogenetics and Evolution, 91, 178-193.
[3] Domning, D. P. (2001). The earliest known fully quadrupedal sirenian. Nature, 413(6856), 625.
[4] Benoit, J., Adnet, S., El Mabrouk, E., Khayati, H., Ali, M. B. H., Marivaux, L., … & Tabuce, R. (2013). Cranial remain from Tunisia provides new clues for the origin and evolution of Sirenia (Mammalia, Afrotheria) in Africa. PLoS One, 8(1), e54307.
[5] Díaz-Berenguer, E., Badiola, A., Moreno-Azanza, M., & Canudo, J. I. (2018). First adequately-known quadrupedal sirenian from Eurasia (Eocene, Bay of Biscay, Huesca, northeastern Spain). Scientific reports, 8(1), 5127.
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