A estufa de Araguainha
Queda
de meteorito no Mato Grosso há 250 milhões de anos pode ter liberado
metano suficiente para provocar um aquecimento global e causar a maior
extinção de espécies conhecida
Sandro Castelli
No
último meio bilhão de anos houve cinco grandes extinções em massa na
Terra. A mais recente e também mais famosa ocorreu cerca de 65 milhões
de anos atrás, matou 75% de todas as espécies de vida e incluiu entre
suas vítimas fatais os dinossauros. Os impactos climáticos causados pela
queda de um meteorito que abriu uma cratera de 180 quilômetros perto da
costa do que hoje é o México costumam ser apontados como a provável
causa dessa mortandade em larga escala, que marca o fim do período
Cretáceo. Mas esse não foi o episódio mais traumático para a
biodiversidade do planeta.
Há pouco mais de 250 milhões de anos,
quando ainda não havia dinossauros ou mamíferos e todos os continentes
atuais estavam unidos no antigo supercontinente Pangeia, 96% das
espécies da Terra sucumbiram em razão de um ou vários eventos trágicos e
misteriosos.
Segundo um estudo recém-publicado por pesquisadores da
Austrália, Reino Unido e Brasil na revista científica Palaeogeography, Palaeoclimatology, Palaeoecology,
a maior extinção conhecida, que sinaliza o término do período Permiano,
pode ter sido desencadeada pelos efeitos indiretos decorrentes da
abertura de uma cratera de 40 quilômetros de diâmetro no território hoje
dividido pelas cidades de Araguainha e Ponte Branca, no sudeste do Mato
Grosso, perto da divisa com Goiás.
A
colisão em si do meteorito de aproximadamente 4 quilômetros de diâmetro
que criou essa enorme cicatriz no relevo do Brasil Central, conhecida
como domo ou cratera de Araguainha, não tinha potencial para acabar com a
vida numa escala global.
A energia produzida pelo impacto da rocha
celeste com a superfície terrestre deve ter destruído imediatamente tudo
que estava a até 250 quilômetros ao seu redor. “A queda do meteorito em
Araguainha não tinha capacidade para provocar uma extinção global em
massa”, afirma o geólogo Eric Tohver, da University of Western
Australia, primeiro autor do trabalho, no qual colabora com uma equipe
da Universidade de São Paulo (USP). “Mas seus efeitos indiretos sim.”
Terremotos e tsunamis
Uma sucessão de eventos decorrentes do impacto pode ter provocado em questão de dias um rápido e fatal aquecimento global. A natureza e a abrangência da área de ocorrência de certos depósitos sedimentares parecem indicar que eles foram originados por tsunamis. Outras evidências geológicas sugerem que podem ter ocorrido muitos terremotos com magnitude de até 9,9 graus na escala Richter num raio de mil quilômetros em torno da cratera. Os intensos tremores de terra teriam fraturado as rochas ricas em carbono orgânico da Formação Irati, da qual faz parte a região de Araguainha, e liberado uma quantidade descomunal de um gás de efeito estufa, o metano.
carlos roberto de souza filho / unicamp
De
acordo com os cálculos dos pesquisadores, em questão de dias podem ter
sido liberadas na atmosfera 1.600 gigatoneladas de metano, quase cinco
vezes mais do que o despejado no planeta desde o início da Revolução
Industrial, há 250 anos. Essa ideia se apoia numa descoberta recente
feita pelos pesquisadores. As rochas da região apresentam uma assinatura
isotópica estranha: são empobrecidas em carbono 12 e ricas em carbono
13.
A explicação para essa anomalia é que elas liberaram uma grande
quantidade de metano, que tem carbono em sua composição, para a
atmosfera.
Se o ar foi repentinamente tomado por esse gás, o
aquecimento global em Pangeia – que já tinha como marca registrada um
clima de extremos, em especial em suas áreas áridas mais centrais, onde
as temperaturas ultrapassavam os 60ºC – teria sido tão brusco que poucas
formas de vida conseguiram se adaptar às novas condições ambientais.
“Em geral, a grande extinção do fim do Permiano costuma ser atribuída a
alterações decorrentes de vulcanismos e da liberação de lava”, diz o
geólogo Ricardo Trindade, do Instituto de Astronomia, Geofísica e
Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, outro autor do estudo, parcialmente
financiado pela FAPESP. “Mas nossa hipótese indica que a cratera de
Araguainha pode ter tido um papel importante, ainda que indireto, nesse
processo.”
Num primeiro momento, a possibilidade de um meteorito
ter sido o agente detonador de uma mudança climática global que levou ao
maior processo de extinção de vida na Terra faz lembrar a saga do fim
dos dinossauros. Então, a mesma história se repetiu nas duas extinções,
na do Permiano e na do Cretáceo? Em ambas as situações há semelhanças:
rochas caídas do espaço e as respectivas crateras terrestres podem ter
ocasionado mudanças climáticas que estariam envolvidas nos dois
processos de extinção. Mas nem tudo teria sido exatamente igual. A
dinâmica de cada evento teria sido única.
O
meteorito que, há 65 milhões de anos, caiu na península mexicana de
Yucatán tinha pelo menos 10 quilômetros de diâmetro e deu origem a uma
cratera, a de Chicxulub – quase cinco vezes maior do que a de
Araguainha. A energia produzida apenas pelo impacto da rocha celeste foi
milhões de vezes maior do que a de uma bomba atômica. Por si só, a
queda do meteorito representou uma grave alteração na dinâmica do
planeta. A quantidade de poeira produzida pela explosão deve ter
bloqueado a chegada dos raios solares sobre a Terra e jogado o planeta
num cenário de inverno nuclear, de escuridão e de frio intenso.
O
quadro da grande extinção de Pangeia teria algumas peculiaridades, a se
levar em conta a nova hipótese formulada por Tohver, Trindade e seus
colegas. O impacto direto do meteorito de Araguainha teria tido apenas
um efeito destrutivo regional. As consequências sobre o clima global
teriam sido causadas pela série de terremotos que fez as rochas da
Formação Irati liberarem metano e provocarem o efeito estufa exacerbado.
Nesse caso, a grande extinção do Permiano teria sido causada pelo
aquecimento do clima, enquanto a do Cretáceo seria decorrente do
esfriamento. “Foi azar o meteorito ter caído numa região rica em carbono
orgânico”, afirma Tohver.
A nova idade da cratera
Até o ano passado, seria impensável sequer associar a grande extinção do Permiano a eventuais alterações decorrentes do surgimento do domo de Araguainha, a maior e mais antiga cratera brasileira confirmadamente aberta pela queda de um meteorito (ver texto na página 21 sobre as crateras até hoje descobertas no país). A idade estimada de Araguainha era de 245 milhões de anos, ou seja, os geólogos acreditavam que a cratera teria se formado depois da grande mortandade de espécies. No entanto, uma datação por técnicas mais modernas, feita por Tohver e os brasileiros e publicada na revista Geochimica et Cosmochimica Acta de junho de 2012, chegou a uma idade mais precisa para a cicatriz deixada pelo meteorito no Brasil Central: 254,7 milhões de anos, com uma margem de erro de 2,5 milhões de anos para cima ou para baixo. Como a extinção do Permiano ocorreu há 252,2 milhões de anos, a cratera de Araguainha talvez tenha se originado um pouco antes da grande mortandade de espécies. “Não há nenhuma outra cratera no mundo que seja dessa mesma época, da transição do Permiano para o Triássico”, explica o geólogo Cristiano Lana, da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), outro autor do trabalho.
Procurar as origens de um fenômeno de
escala tão grande como o aniquilamento de quase toda a vida sobre a
Terra há 250 milhões de anos não é uma tarefa trivial e qualquer
hipótese aventada sempre é passível de críticas e polêmicas. O geólogo
Alvaro Penteado Crósta, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
um dos maiores estudiosos de crateras no país, acredita que ainda são
necessários mais dados para realmente associar a extinção do Permiano a
efeitos indiretos do surgimento do domo de Araguainha. “Trata-se de uma
hipótese interessante. Contudo, não há evidências de que a quantidade de
matéria orgânica presente nas rochas da região (Formação Irati) tenha
sido suficiente para liberar tamanha quantidade de metano”, diz Crósta.
“Além disso, o processo de liberação do metano a partir de ondas
sísmicas proposto pelos autores necessitaria ser mais bem estudado,
assim como a proposta de que tsunamis de grande magnitude teriam se
propagado a distâncias de vários milhares de quilômetros em um ambiente
marinho de águas rasas, o que não seria de se esperar.” Segundo o
geólogo Claudio Riccomini, do Instituto de Geociências (IGc) da USP,
outro autor do trabalho sobre o possível papel de Araguainha na extinção
do Permiano, a Formação Irati apresenta teores de até 20% de carbono
orgânico que tornam razoável formular essa hipótese.
Alguns
estudiosos sustentam que a extinção não teve uma causa, mas talvez
várias, como a queda de meteoritos, a atividade vulcânica e variações no
nível do mar. “Para os que defendem uma multicausalidade para o
fenômeno, teria sido justamente a somatória dos efeitos, e não
necessariamente a intensidade de cada um, a responsável pela magnitude
dessa grande extinção. Nesse caso, porém, a principal dificuldade é
demonstrar o sincronismo entre as várias causas e determinar o momento
em que foi atingido o limiar que levou à extinção”, diz o paleontólogo
Cesar Schultz, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
“Nesse tipo de contexto, qualquer uma das causas poderia ter sido ‘a
gota d’água’ que fez o copo transbordar. Mesmo que se possa questionar
se a intensidade do impacto de Araguainha teria sido suficiente para,
isoladamente, causar a extinção, ele poderia ter sido essa ‘gota
d’água’.” Entretanto, Schultz ressalta que a diferença de tempo entre a
idade atribuída à queda do meteorito em Araguainha e a grande mortandade
de espécies do Permiano está no limite da margem de erro do método
utilizado por Tohver e o grupo da USP. Isso ainda é um complicador, diz o
paleontólogo, uma vez que os autores propõem uma relação imediata de
causa e efeito entre o impacto da rocha extraterrestre e as mudanças
climáticas que levaram à extinção.
Projeto
Caracterização geofísica e petrofísica da estrutura de impacto de Araguainha (nº 2005/51530-3); Modalidade Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa; Coord. Yára Regina Marangoni/IAG-USP; Investimento R$ 217.201,69 (FAPESP).
Artigos científicos
TOHVER, E. et al. Shaking a methane fizz: Seismicity from the Araguainha impact event and the Permian-Triassic global carbon isotope record. Palaeogeography, Palaeoclimatology, Palaeoecology. Publicado on-line em 18 jun. 2013.
TOHVER, E. et al. Geochronological constraints on the age of a Permo-Triassic impact event: U-Pb and 40Ar/39Ar results for the 40 km Araguainha structure of central Brazil. Geochimica et Cosmochimica Acta. v. 86, n. 1, p. 214-27. jun. 2012.
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