sábado, 20 de abril de 2019

A origem das borboletas

Baseados na análise de genes e fósseis, estudos estimam que esses insetos surgiram entre 120 e 100 milhões de anos atrás
Revoada de Rhabdodryas trite às margens do rio Claro, em Mato Grosso
Mark Piazzi
Com voo leve, formas variadas e cores em geral vistosas, as borboletas talvez estejam entre os raros insetos que, em vez de repulsa, despertam deslumbramento nas pessoas – exceto, claro, nas que sofrem de motefobia. Os biólogos as adoram por uma série de razões. As borboletas se destacam na paisagem, são fáceis de capturar e funcionam como indicadores da saúde de um ambiente. Também permitem realizar estudos evolutivos que tentam desvendar como elas se diversificaram tanto – há quase 19 mil espécies atuais – e quais fatores ambientais podem ter influenciado o surgimento de novas espécies desses insetos e de plantas e animais com os quais interagem. Para lidar com as duas últimas questões, há quase um século tenta-se desvendar quando surgiram as borboletas.

Apenas nos últimos anos, os especialistas no assunto, do Brasil e do exterior, começaram a se aproximar de uma idade mais precisa. As primeiras borboletas, possivelmente mais parecidas com mariposas, teriam surgido entre 120 milhões e 100 milhões de anos atrás. O trabalho mais recente a estabelecer uma cronologia robusta para essa origem foi publicado em janeiro deste ano na Systematic Biology por um grupo do qual participou o entomologista André Lucci Freitas, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

No estudo, os pesquisadores chegaram a uma data intermediária: 107,6 milhões de anos – mesmo assim, com uma margem de erro grande (de 130 milhões a 90 milhões de anos), comum nos estudos de filogenia desse grupo de insetos.

“Uma dificuldade é que quase não existem fósseis de borboletas em bom estado e com idade bem definida para indicar a data mínima de origem de diferentes grupos e servir como ponto de referência na genealogia”, explica Freitas. A razão para a escassez de fósseis é que eles só se formam em condições especiais: a borboleta tem de ser aprisionada na resina de uma árvore ou morrer em terreno lamacento e ser logo recoberta por sedimentos, que, solidificados, preservam seu corpo ou a impressão dele.
Fóssil de Doritites bosniackii, usado no estudo e guardado no Museu de História Natural de Viena, ÁustriaAndreas Kroh/Wikimedia Commons

Construir uma árvore evolutiva até os fundadores de um grupo de plantas ou animais é uma viagem complexa rumo ao passado. Parte-se das espécies atuais, que são sucessivamente agrupadas de acordo com o grau de semelhança genética e de formas externas e estruturas. A abordagem segue o raciocínio de que, quanto mais semelhantes, mais próximas as espécies. Segundo Freitas, foram 15 anos de trabalho para reunir os dados apresentados no artigo da Systematic Biology. Os pesquisadores examinaram as características anatômicas de 994 espécies de borboletas existentes hoje (quase 5% do total) e usaram a taxa de alterações (mutações) acumuladas em 10 genes para agrupá-las em 39 subfamílias e, depois, em 7 famílias. Conhecida como relógio molecular, a técnica que avalia o parentesco entre espécies a partir do ritmo de acúmulo das mutações não é exata. Como a taxa de mutações pode variar muito à medida que diminui a proximidade entre as espécies, os pesquisadores usaram, sempre que possível, a idade dos fósseis para calibrar o relógio molecular. Com essa referência externa, eles tentavam assegurar que as informações fornecidas pelos genes tinham algum fundamento na realidade.

O entomólogo Rienk de Jong, do Centro Naturalis de Biodiversidade, em Leiden, Holanda, analisou os 49 fósseis conhecidos de borboleta e selecionou os 12 mais bem conservados, que permitiam identificar a família ou subfamília a que pertenciam e tinham idade definida com mais segurança. Entre os escolhidos, está o mais antigo de que se tem notícia: o de Protocoeliades kristenseni, encontrado em sedimentos datados em 55 milhões de anos de uma ilha da Dinamarca, e descrito por Jong em 2016. 

Com asas de 2,3 centímetros, esse fóssil foi posicionado próximo ao ponto de surgimento da família Hesperiidae, composta por cerca de 3.500 espécies de borboletas de corpo robusto e antenas com ponta em forma de agulha de crochê. Também foi incluído o fóssil de Neorinella garcie, uma borboleta que viveu entre 28 milhões e 23 milhões de anos atrás. Achado em Taubaté, interior de São Paulo, foi descrito em 1993 pelo paleoentomólogo Rafael Martins Neto e colaboradores. Era um pouco maior do que P. kristenseni, com uma faixa mais clara e uma marca em forma de olho nas asas anteriores.

Recentemente, a equipe da entomóloga Marianne Espeland, do Museu de Pesquisa Zoológica Alexander Hoening, na Alemanha, analisou cerca de 350 regiões gênicas de 207 espécies desses insetos. Publicados em 2018 na Current Biology, os resultados jogavam a origem das borboletas para 119 milhões de anos atrás. “As diferenças entre esse trabalho e o nosso não são alarmantes e são difíceis de avaliar, já que usamos menos marcadores moleculares e mais espécies”, relata Jong, coautor do artigo da Systematic Biology. Para ele, o importante é que tanto o trabalho deste ano quanto o de Marianne Espeland mantêm a filogenia proposta em 2012 pelos grupos de Maria Heikkilä, da Universidade de Helsinque, na Finlândia, e Niklas Wahlberg, da Universidade de Lund, na Suécia. “Isso sugere que estamos chegando ‘perto da verdade’”, diz Jong.

Vistos em conjunto, os estudos indicam que as borboletas surgiram em meados do Cretáceo, período geológico que durou de 145 milhões a 66 milhões de anos atrás. Nessa fase da história da Terra, alguns supercontinentes começavam a se separar e as plantas com flores a se diversificar. Os dinossauros dominavam a terra firme e os pterossauros os ares. Das 39 subfamílias de borboletas atuais, oito sobreviveram à extinção do final do Cretáceo, que eliminou os dinossauros. As demais teriam surgido a seguir, entre 65 milhões e 50 milhões de anos atrás. “Trabalhos como esse são fundamentais para ajudar a compreender como as espécies foram se separando com o tempo”, comenta a entomóloga Karina Silva-Brandão, da Universidade Federal do ABC (UFABC), que estuda a diversificação das borboletas. “As datas que apresentam serão usadas em outros estudos destinados a compreender as causas da especiação.”

Projeto
 
História natural, filogenia e conservação de lepidópteros neotropicais (nº 11/50225-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Programa Biota; Pesquisador responsável André Victor Lucci Freitas (IB-Unicamp); Investimento R$ 265.559,41.

Artigo científico

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