sábado, 20 de abril de 2019

A origem dos pássaros

Grupo que representa mais de 60% das espécies de aves teria surgido há 47 milhões de anos na Austrália
Saíra-sete-cores (Tangara seledon) no Parque de Itatiaia, no Rio de Janeiro
Daniel J. Field/University of Cambridge
A ordem dos Passeriformes, os pássaros ou passarinhos, grupo que representa mais de 60% das espécies atuais de aves, teria surgido por volta de 47 milhões de anos atrás na região do Pacífico Sul, nos arredores da Austrália e da Nova Zelândia. 

Dali essas pequenas aves, que hoje incluem exemplares famosos por seu canto melodioso, como os canários, ou onipresentes no globo, como os pardais, espalharam-se pelos demais continentes. As conclusões fazem parte de um estudo internacional coordenado por pesquisadores da Universidade Estadual da Louisiana (LSU), dos Estados Unidos, com a participação de colegas de 10 países, inclusive o Brasil. O trabalho resultou em um artigo, publicado em 1º de abril na revista científica PNAS.

A equipe analisou o material genético de 221 exemplares de pássaros, que representam todas as 137 famílias que compõem essa ordem, além de 13 registros fósseis de pássaros e de aves de ordens aparentadas. Assim reconstruiu a história evolutiva e montou uma árvore genealógica desse grupo de seres alados. O estudo também identificou uma nova família de pássaros, a dos Hyliidae, da África, e confirmou o status taxonômico de outras seis famílias.
Tui (Prosthemadera novaeseelandiae), pássaro endêmico da Nova ZelândiaDaniel J. Field/University of Cambridge 

Os resultados do trabalho confirmam outros estudos que também situaram o lugar de origem dos pássaros no hemisfério Sul, geralmente nas cercanias da Austrália ou na América do Sul. 

Mas sinalizam que essa ordem teria surgido mais recentemente, por meio de processos evolutivos mais complexos, ainda não devidamente compreendidos, do que defende a visão mais convencional da ornitologia. “Nossos dados indicam que os pássaros surgiram 35 milhões de anos depois do que afirma a estimativa prevalente nos últimos 15 anos”, comenta o biólogo evolucionista Carl Oliveros, da LSU, principal autor do estudo. 

O trabalho também sinaliza que os aumentos na taxa de diversificação desse grupo de aves em sua história evolutiva não estão ligados a mudanças na temperatura global ou à colonização de novas terras. “Esse resultado foi surpreendente e indica que outros processos ainda não conhecidos influenciaram o processo de diversificação dos pássaros”, comenta o ornitólogo brasileiro Alexandre Aleixo, hoje curador do Museu de História Natural da Finlândia, ligado à Universidade de Helsinque, um dos autores do trabalho. Até o início de 2019, Aleixo era pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém.

Historicamente, grandes mudanças geológicas têm sido apontadas como um fator determinante para a criação de condições ambientais propícias para o surgimento dos pássaros. No caso dessa ordem das aves, a alteração comumente citada teria se dado há cerca de 82 milhões de anos. Por volta dessa época, a Nova Zelândia se separou do que ainda restava do antigo supercontinente austral Gondwana, que chegou a reunir América do Sul, África, Índia, Oceania e Antártida. 

Segundo essa linha de raciocínio, os pássaros, aves delicadas e de menor porte do que seus parentes mais distantes, teriam evoluído e adquirido novas formas nesse pedaço de terra isolado do Pacífico, desprovido de mamíferos terrestres predadores e com poucos répteis. Há, no entanto, uma parte truncada nessa narrativa.

O registro paleontológico nunca amparou essa estimativa cronológica. Fósseis de pássaros são raros, sua preservação é difícil, e os mais antigos remontam a cerca de 50 milhões de anos.

Em um esforço de conciliação de dados genéticos, paleontológicos e de biogeografia (estudo da distribuição das espécies no planeta), o novo artigo chega a uma síntese evolutiva que aponta para uma origem mais recente dos pássaros. “Nosso artigo é o mais completo sobre os Passeriformes.

Acho que não resta muita margem de discussão sobre o tema”, avalia Luís Fábio Silveira, curador da seção de ornitologia do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZ-USP), um dos autores do estudo. “Para calibrar os resultados temporais obtidos com as análises de DNA, nas quais encontramos mais de 4 mil regiões genômicas ultraconservadas entre as famílias de pássaros, levamos em conta apenas fósseis que claramente eram de aves dessa ordem ou de ordens próximas.” Silveira enviou amostras de cerca de 20 pássaros brasileiros para o trabalho, como o saíra-sete-cores (Tangara seledon), típico da Mata Atlântica.
Esqueleto de Eozygodactylus americanus, um dos 13 fósseis de pássaros usados no estudoN. Adam Smith/Aj M. DeBee/Julia A. Clarke 

O trabalho ratifica a divisão hoje mais aceita entre os Passeriformes. A família mais antiga da ordem seria a dos Acanthisittidae, as corruíras neozelandesas, aves endêmicas daquele país que vivem em regiões altas. Essa família, às vezes também classificada como uma subordem, teria surgido apenas 3 milhões de anos antes das outras duas subordens mais antigas de pássaros, ambas originadas há 44 milhões de anos: a dos Tyranni, que inclui bem-te-vis, arapongas e uirapurus entre suas mais de mil espécies, a maior atualmente encontrada na América do Sul; e a dos Passeri, com cerca de 4 mil espécies, bem distribuídas pelo globo, como os sabiás e os pintassilgos. Desses três grupos ancestrais descendem todas as mais de 6 mil espécies de pássaros espalhadas pelo planeta.

As primeiras aves, como o registro fóssil e numerosos trabalhos científicos atestam modernamente, formavam uma das linhagens de dinossauros, há mais de 150 milhões de anos. Como esses dinossauros com penas deram origem, algumas dezenas de milhões de anos mais tarde, aos graciosos pássaros encontrados na natureza, ainda é um processo evolutivo não muito bem compreendido. “Queremos fazer com ornitologistas de todo o mundo estudos ainda mais refinados das relações das aves ao nível de espécie e de gênero como parte do nosso projeto OpenWings”, comenta o ornitólogo Brant Faircloth, da LSU, coordenador do esforço internacional que resultou no paper da PNAS.

Projeto
 
Sistemática, taxonomia e biogeografia de aves neotropicais: Os Cracidae como modelo (nº 07/56378-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Luís Fábio Silveira (MZ-USP); Investimento R$ 86.928,28.
Artigo científico
OLIVEROS, C. H. et al. Earth history and the passerine superradiation. PNAS. 1º abr. 2019.

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