O Animal de sangue azul que salva vidas
O
límulo (Limulus polyphemus) mais conhecido como caranguejo-ferradura, é
um artrópode bastante estranho por diversas razões. Para começar,
apesar do nome (caranguejo), esta espécie está filogeneticamente mais
próxima das aranhas e escorpiõe.
que dos caranguejos (Crustacea)
propriamente ditos. Ele ainda é considerado um “fóssil vivo”, uma vez
que os primeiros límulos surgiram há 400 milhões de anos. Estes animais
podem viver vários meses sem se alimentar e também podem regenerar
partes do corpo perdidas, seguindo um mecanismo parecido com a
regeneração das estrelas-do-mar.
Os cientistas afirmam que o fato de os
Límulos terem evoluído tão pouco ao longo desses 400 milhões de anos, é
uma das razões que faz deste um animal tão diferente dos demais. O mais
interessante a respeito dele, é sem dúvida o sangue. O sangue destas
criaturas é AZUL, por causa de uma alta concentração de hemocianina e
não a hemoglobina encontrada no nosso sangue. A hemocianina é uma
proteína do sangue com pigmento azulado pois em vez de ferro, possui
cobre em seu princípio ativo, e ao reagir com o oxigênio, fica azul.
O sangue azul do caranguejo-ferradura já
vem sendo estudado (e usado) desde 1964 quando descobriu-se que este
componente tinha poderes endotóxicos bacterianos e que poderia ser usado
na cura de várias doenças causadas por bactérias. O sangue possui uma
substância química encontrada apenas nos amebócitos de suas células que
pode detectar até mesmo leves vestígios de bactérias e prendê-las em
coágulos de onde não conseguem se livrar. Qualquer solução contaminada
por bactérias irá formar coágulos parecidos com gel se entrar em contato
com o sangue os limúlos. Se não existe contaminação bacteriana, a
coagulação não ocorre. É um teste simples, quase instantâneo conhecido
como LAL (Limulus Amebocyte Lysate).
Como objetivo de aproveitar ao máximo o
poder de detecção bacteriano do sangue azul dos límulos, as indústrias
farmacêuticas fazem a extração do sangue da criatura e alguns
procedimentos o deixam ideal para os testes LAL. Para obter o composto
LAL, requer-se o sangue de ao menos 500.000 caranguejos ao ano, dos
quais são extraídos ao redor de 100 mililitros perfurando o pericárdio
de seu coração primitivo .
Durante o processo 15% dos caranguejos
morrem, os demais são devolvidos à água.Um litro de sangue deste
caranguejo tem um preço aproximado de 15.000 dólares.É devido à presença
de cobre na hemocianina e não de ferro, que o sangue adquire a peculiar
cor azul. Extrato aquoso de amebócitos do caranguejo é utilizado com
frequência em testes para detectar as endotoxinas bacterianas.
Caranguejos-ferraduras, os símbolos da resistência
2016, David F. Donavel - Como ocorre a 200 milhões de anos, o sutil aumento da temperatura no limo frio já e suficiente para os caranguejos-ferraduras (Limulus polyphemus) iniciarem sua longa migração em direção as praias da costa atlântica dos Estados Unidos, onde costumam desembarcar entre maio e junho. Eles repetem esse despertar da primavera desde os tempos em que os dinossauros perambulavam pelo planeta, quando os continentes ainda se afastavam um dos outros e os mamíferos ensaiavam os primeiros passos para ser tornarem os reis do mundo animal. Para os caranguejos, nos somos meros intrusos, talvez tão passageiros quanto diversas criaturas que tiveram uma existência breve no planeta.
Estudos científicos sugerem que apenas
duas espécies seriam capazes de sobreviver ao holocausto nuclear – as
baratas e o Limulus, o que prova a resistência desses caranguejos. O
movimento rumo à praia, lento e inexorável, e disparado por um dos mais
fortes impulsos: o sexo. Os caranguejos deixam a lama, que habita
durante o inverno, para se acasalar nas baias rasas, aquecidas pelo sol,
no litoral da região que aqueles instruções – os seres humanos –
convencionaram chamar Estados Unidos. Os machos vêm na frente e
aguardam. Uma ou duas semanas depois é que aparecem as fêmeas.
Entregadoras de ovos, liberando um poderoso fenômeno, uma espécie de
perfume, típico dos caranguejos-ferradura, com a função de acender os
desejos dos machos.
Esses então, se engalfinham para
literalmente agarrar as recém-chegadas. Os caranguejos-ferraduras machos
são equipados com afiadas tenezes, como se chama seu primeiro par de
pernas, com as quais seguram na carapaça das companheiras. Assim,
preços, permitem que as fêmeas os reboquem para a beira do mar. Na
praia, uma única fêmea deve depositar de 3000 a 4000 ovos, em tons de
verde e marrom, cada qual com cerca de 3 milímetros de diâmetro. O macho
fertiliza esses ovos imediatamente depois da postura. Então, o casal
cobre o ninho com areia. A desova do Limulus parece ser cuidadosamente
planejada para coincidir com a elevação do nível da água, típica nos
mares da primavera. Dentro dos ovos, os embriões passam por quatro mudas
de carapaça, enquanto se desenvolvem. Um mês depois de fecundada, o ovo
se rompe e aparece uma larva, cavando a areia. O caranguejo-ferradura
recém-nascido já emerge bastante parecido com seus pais. A única
diferença é a falta de um parelho digestivo desenvolvido. Por isso, o
Limulus passa os primeiros dias envolto no saco vitelino – a bolsa que,
na maioria das outra espécies, armazena nutrientes apenas para a fase
embrionária da vida.
O calendário rígido da desova determina
um espetacular fenômeno na costa dos Estados Unidos: a migração de
pássaro das mais diversas regiões do planeta, que vem se juntar com as
gaivotas locais> Apesar de os caranguejos-ferraduras serem
encontrados em praticamente toda a costa atlântica América, a maioria de
Limulus habita a Baia Delaware. Ali, em 1990, foram contados 1 240 700
caranguejos. Esse numero formidável atraia não somente cientistas e
naturalistas , como pássaros famintos pelos ovos. Ou seja, se a
população desses pássaros também declinará. Além disso, milhares de
pequenos peixes são atraídos para a beira da água, a fim de participar
do banquete. Esses pequeninos, por sua vez, atraem peixes maiores aos
quais servem de alimento. São tantas as interdependências, que muitas
espécies sofreriam, caso o caranguejo-ferradura desaparecesse.
A ignorância dessa complexa cadeia, no
entanto, fez com que durante muito tempo as pessoas encarassem o Limulus
com um baderneiro, responsável pelo afastamento dos turistas. É verdade
que a aparência do caranguejo-ferradura costuma inspirar medo: sua
carapaça escura lembra um capacete, arrastando-se com dois olhos
sinistros, enquanto balança uma cauda formidável, também conhecida o
ultimo segmento de abdome de um crustáceo. Os banhistas, em geral,
imaginam que aquela cauda e capaz de ataques letais, quando na realidade
os Limulus são absolutamente inofensivos. Eles podem fincar o telso em
observadores mais ousados, mas preferem fugir dos seres humanos, sempre
que possível.
De fato, o caranguejo-ferradura não se
parece com outros caranguejos. Não exibe Atenas nem mandíbulas, possui
muita garra e ainda por cima, tem um numero errado de pernas. Ele esta
mais para uma das ultimas espécies remanescentes dos primitivos
escopioes-marinhos, sendo muito mais aparentado com as aranhas e com os
carrapatos do que com seus xarás. O detalhe anatômico que mais o
aproxima das aranhas e o aparelho respiratório no caso, guelras,
dobradas como as paginas de um livro, para aumentar a superfície
destinada à troca de gazes. Essas guelras e as genitais se encontram na
parte mediana do abdome, chamado opistossomo. Do lado oposto ao da cauda
fica uma parte larga, o prossoma, por onde se estende a boca, entre
cinco pares de pernas agitadas.
Milhares morriam para se transformar em fertilizantes
O Limulus se alimenta de minhocas,
moluscos e crustáceos que habitam a lama ou o solo submarino. Graças a
receptores no ventre, que fazem às vezes de narizes, ele sente a
presença da presa: agarra-a, quebrando-a em inúmeros pedacinhos com a
ajuda de espinhos espalhados por suas pernas. Um par de garras, então,
termina o serviço, levando a comida ate a boca destinada. A cauda, com
seus movimentos, impedem que o caranguejo seja carregado pelo vaivém das
ondas. A carapaça do Limuls, normalmente, é toda riscada por linhas
que, por sua vez, refletem o processo de crescimento do animal. Afinal, e
como se o limulus vivesse dentro de um esqueleto – no caso,
exoesqueleto, porque esta do lado de fora – incapaz de crescer.
Assim, a única maneira que o caranguejo
tem de ganhar tamanho e trocando sua carapaça. A nova carapaça, a
principio, e macia e flexível, ficando toda enrugada cada vez que o
caranguejo emerge da lama para a água. As linhas que se vêem na dura
carapaça são justamente resquícios dessas rugas. Os machos atingem a
maturidade aos 9 anos., ou seja, depois da décima quinta muda; as
fêmeas, por sua vez, são consideradas adultas aos 10 anos, quando já
passaram por dezesseis mudas. Os cientistas especularam que os
caranguejos-ferraduras vivem cerca de cinco anos depois de alcançar a
maturidade. Os nativos americanos ensinaram aos imigrantes europeus que
esses caranguejos são excelentes fertilizantes. Os nativos alias, também
comiam os músculos responsáveis pelos movimentos abdominais do animal.
Na década de 50, o Limulus passou a ser
usado na fabricação de alimentos para porcos e galinhas. Foi em Cape
Cod, no Estado Massachusetts, porem, que o caranguejo-ferradura ganhou a
fama de peste. Os pescadores de mariscos perceberam sua predileção por
essas pequenas criaturas. E assim lhes declararam uma guerra: os
caranguejos começaram a ser mortos aos milhares. Apesar de o gosto por
mariscos ser verdadeiro, o fato é que os Limulus existem a milhões de
anos e nem por isso suas presas entraram em extinção. Ao contrario: ao
se alimentarem de outros animais, os caranguejos ate criam um ambiente
favorável à sobrevivência da maioria dos mariscos.
Por ironia, justamente em Cape Cod, o
lugar onde o Limulus ganhou seu status de fora-da-lei, foi descoberto o
seu imenso valor para a Medicina. Nos últimos sessenta anos, os
cientistas vêm usando o nervo ótico do caranguejo-ferradura, por ser
grande e de fácil acesso, para desvendar os mecanismos da visão.
Em 1967, alias, o médico Keffer
Hartline, da Universidade Keffer Hartline, da Universidade Rockfeller,
ganhou o premio Nobel por seus estudos na área oftalmologia, com a
contribuição inegável do Limulus. Mas a pesquisa de maior aplicação foi
realizada nos anos 50 pelo medico Frederick Bang, na Universidade Johns
Hopkins. Ao estudar a circulação sanguínea desses caranguejos, Bang
notou que eles possuíam apenas um tipo de célula sanguínea, que coagula
na presença de endotoxinas grudadas chamadas bactérias gram-negativas.
Endotoxinas são moléculas capazes de
provocar febre e, às vezes, morte quando caem na circulação sanguínea de
um organismo qualquer. Elas existem em toda parte: na nossa comida e na
água, no nosso intestino, nas paredes celulares de bactérias
gram-negativas e, ainda, na lama que o Limulus habita. Provavelmente, a
reação de coagulação diante de uma endotoxina representa uma espécie de
sistema imunológico primitivo, que ajudou os caranguejos-ferraduras a
sobreviver todos esses milhões de anos. Um reagente, fabricando a partir
do sangue do caranguejo, chamado LAL- de lisato de amebócito do
Limulus-, tem se mostrado muito eficiente na identificação de
endotoxinas. Para entender a importância, é preciso conhecer essa
substancias. Uma endotoxina é uma molécula dura de se destruir.
Os métodos convencionais de
esterilização são incapazes de afastá-las, por exemplo, dos equipamentos
médicos: quando bactérias gram-negativas são mortas, suas células se
rompem e, com isso, são liberadas mais e mais endotoxinas. Por causa
disso, as indústrias farmacêuticas e de instrumentos hospitalares – como
seringas e cateteres – tem de testar constantemente toda a sua
produção, vigiando a eventual existência de endotoxinas. Se elas
estiverem presentes, o paciente pode piorar ou morrer ao receber o
tratamento. Antes de se descobrir o LAL, extraído dos
caranguejos-ferraduras, a Food and Drug Administration (FDA), a rigorosa
agencia do governo americano encarregada de fiscalizar a produção de
remédios e equipamentos médicos, só considerava eficiente, no controle
do problema, o chamado teste do coelho: o roedor recebia uma injeção do
produto a ser testado e tinha a temperatura monitorada durante três
horas. Se nesse período o coelho começava a arder de febre, era sinal de
que havia endotoxina, um coágulo se forma imediatamente.
O maior centro de produção de LAL,
fundado em 1974, fica em Cape Cod: trata-se da ACC (Associadas de Cape
Cod), localizada em um edifício baixo, a beira da estrada. A aparência
do prédio parece modesta, mas é impressionante o que se vê no interior:
inúmeras prateleiras onde se penduram as fêmeas de
caranguejos-ferraduras, fontes do LAL. O pico de produção coincide com o
período de acasalamento, quando são coletadas na praia cerca de 1000
fêmeas por dia. Caso o animal já tenha doado sangue naquela estação,
será poupado ate o ano seguinte. Caranguejos doentes e feridos também
são desenvolvidos à praia.
O sangue é retirado na articulação do
abdome, onde existe uma fina membrana, capaz de ser perfurada pela
agulha. Cada fêmea doa cerca de 100 mililitros de sangue, que é
derramado diretamente em uma solução salina. Como o sangue dos
caranguejos é à base de cobre – diferente do sangue humano, cujos
glóbulos vermelhos carregam moléculas de ferro -, ao entrar em contato
com o ar ele se transforma: o liquido vermelho-escuro passa a ser
azul-leitoso. O processo não causa danos aos caranguejos: eles recuperam
o volume sanguíneo 24 horas depois da doação e, cerca de sessenta dias
mais tarde, já estão com seu estoque completo de hemocianina, a molécula
azulada transportadora de oxigênio.
O sangue colhido é centrifugado, para
separar o plasma azul das células. Essas células são lavadas com água
destilada. Ao atravessar suas paredes, o liquido arrebenta as membranas.
O resultado é a mistura de membranas celulares com enzimas dissolvidas
na água. É justamente dessa parte aquosa, separada por uma nova
centrifugação que se extrai o LAL.
Até a pouco tempo, os cientistas jogavam
fora os outros produtos do sangue do Limulus – ou seja, o plasma azul e
os pedaços de membranas celulares. Mas estudos realizados por
cientistas da ACC mostram que, na membrana da célula sanguínea do
caranguejo-ferradura – antes, destinada ao lixo -, existe uma proteína
capaz de bloquear a molécula de endotoxina, neutralizando-a. Essa
proteína poderá ser usada para remover endotoxinas de soluções ou mesmo
para evitar a more de pessoas com choque séptico, como se chama o
envenenamento por endotoxinas. Os resultados das experiências com
animais são promissores. Por isso, a proteína do Limulus começa a ser
testada em hospitais americanos.
O plasma do caranguejo-ferradura também
poderá ser muito útil aos médicos. Recentemente, os pesquisadores da ACC
isolaram outra proteína desse componente sanguíneo, capaz de reagir ao
acido siálico, substancia que costuma aumentar terrivelmente no
organismo de pessoas com câncer. Assim, a proteína devera ser aplicada
para diagnosticar mais precocemente a doença. Graças a tantas
descobertas para a Medicina moderna, o Limulus polyphemus finalmente
passa a ser encarado com respeito pelos intrusos seres humanos, nas
praias onde desova há milhões de anos. Sua historia, no entanto, serve
como ponto de reflexão, a respeito de outras espécies ameaçadas de
extinção por pura ignorância nossa.
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