Cerrado conectou os Andes com a Mata Atlântica
03 de abril de 2019
Peter Moon | Agência FAPESP – As florestas
tropicais dos Andes e a Mata Atlântica estão separadas por quase mil
quilômetros de áreas mais secas e de vegetação aberta, nos biomas Chaco,
Cerrado e Caatinga. Apesar de atualmente não terem conexão, essas
florestas tropicais compartilham espécies e linhagens intimamente
relacionadas, o que sugere ter havido uma ligação entre essas matas no
passado. Há, por exemplo, 23 espécies de aves tropicais presentes nos
dois biomas.
Análise genética e computacional
em aves sugere que florestas tropicais andina e atlântica, hoje
separadas por quase mil quilômetros de áreas mais secas e vegetação
aberta, tiveram períodos de conexão no passado (ave da espécie Syndactyla rufosuperciliata / foto: Gustavo Cabanne)
Diversos estudos publicados reforçam tal hipótese. O que ainda não se
sabia era se a ligação se dava por meio das florestas de galeria que,
no passado, acompanhavam os cursos dos rios na região do Chaco (que
abrange o sul da Bolívia, o norte da Argentina e o Paraguai), ou pelo
Cerrado (parte da Bolívia, Centro-Oeste do Brasil e norte do Paraguai).
De acordo com uma nova pesquisa, que analisou dados genômicos e biogeográficos de aves das espécies Syndactyla rufosupercilita e Syndactyla dimidiata,
a conexão entre as florestas andina e atlântica no passado ocorreu pelo
Cerrado. A ligação teria se formado diversas vezes durante o
Pleistoceno, período geológico ocorrida entre 2,5 milhões e 11,7 mil
anos atrás.
A investigação foi conduzida pelo ornitólogo Gustavo Cabanne, do Museo Argentino de Ciencias Naturales, em colaboração com Cristina Yumi Miyaki, professora no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP). Os resultados foram publicados na revista Molecular Phylogenetics and Evolution.
A equipe teve apoio da FAPESP,
por meio do Programa FAPESP de Pesquisas em Caracterização,
Conservação, Restauração e Uso Sustentável da Biodiversidade (BIOTA), do
Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Conicet),
na Argentina, e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq).
Participaram pesquisadores de diversas instituições no Brasil
(Universidade Federal de Minas Gerais, Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais, Universidade de Brasília e Museu Paraense Emílio
Goeldi), Bolívia (Universidad Mayor de San Andrés e Museo Nacional de
Historia Natural), Estados Unidos (American Museum of Natural History e
Cornell University) e Canadá (Royal Ontario Museum).
A biogeografia é a ciência que estuda as relações entre os seres
vivos, a geografia, o relevo e o clima. A paleobiogeografia parte dessas
mesmas relações para entender, por exemplo, como era a distribuição das
espécies no passado e as relações existentes entre elas. Entender a
paleobiogeografia de diversas espécies que habitam áreas específicas no
presente pode ajudar a inferir como era a distribuição desses biomas no
passado.
"O grande desafio dos estudos de biogeografia é integrar e
interpretar as informações obtidas de diversas fontes, como componentes
biológicos, dados genômicos das espécies analisadas, informações
geológicas, dados paleoclimáticos, dados palinológicos [de pólen e
esporos] ou dados de sensoriamento remoto obtidos a partir de imagens de
satélite", disse Miyaki.
"Foi preciso coletar e analisar vários desses dados a fim de
investigar a hipótese da existência de uma antiga conexão entre as
florestas tropicais andina e atlântica e testar se isso ocorreu via
Cerrado ou via Chaco. Pode ter sido por meio de florestas de galeria
que, no Pleistoceno, seriam remanescentes de vegetação úmida que
atravessam biomas mais áridos”, disse.
De acordo com Cabanne, a conexão entre as florestas úmidas andina e
atlântica é apoiada por estudos palinológicos, entre outros, segundo os
quais ambas se expandiram transitoriamente em algumas regiões (por
exemplo, no Cerrado) em direção aos Andes durante os últimos máximos
glaciais – os períodos mais frios das diversas idades do gelo (foram
identificadas ao menos 11 delas) que ocorreram nos últimos 2,5 milhões
de anos.
"Sob esse cenário biogeográfico histórico, as florestas andina e
atlântica poderiam ter funcionado como refúgios. Sua história dinâmica
[ciclos de conexão e isolamento] poderia ter sido um importante
impulsionador da especiação nos neotrópicos [região que compreende a
América Central, incluindo parte do México e dos Estados Unidos, todas
as ilhas do Caribe e a América do Sul]”, disse.
No presente período interglacial, explica Cabanne, esses biomas
florestais representam refúgios onde se espera que organismos se
diferenciem. Durante as idades do gelo do Pleistoceno, as florestas
teriam sido conectadas, permitindo, assim, o fluxo gênico entre as
regiões.
Genética e análise computacional
No trabalho publicado na revista Molecular Phylogenetics and Evolution, os pesquisadores elegeram como objeto de estudo uma ave popularmente conhecida como trepador-quiete (Syndactyla rufosuperciliata). Trata-se de um passarinho (ordem Passeriformes) da família dos furnariídeos, a mesma do joão-de-barro (Furnarius rufus)
e de outras 230 espécies encontradas na Argentina, Bolívia, Brasil,
Equador, Paraguai, Peru e Uruguai. Existem cinco subespécies
reconhecidas desse táxon.
"O trepador-quiete é um modelo apropriado para explorar a conexão das
florestas andina e atlântica porque a espécie habita tanto os
principais domínios dessas matas como as áreas que poderiam ter sido
diretamente envolvidas na sua ligação: as florestas de galeria do Chaco
oriental e algumas regiões no sul do Cerrado", disse Cabanne.
Os pesquisadores exploraram a conectividade histórica entre os dois
biomas por meio de modelagem de nicho. A seguir, eles usaram sequências
de DNA de 71 indivíduos e análises genômicas de outros 33 pássaros para
avaliar a estrutura genética da população e o fluxo gênico dentro da
espécie. Por fim, foi realizada a seleção do modelo populacional com
auxílio de computação bayesiana aproximada, método de inferência com
base em estatísticas sumárias.
Segundo os pesquisadores, a análise genômica evidenciou que os
trepadores-quiete habitantes das florestas tropicais andinas pertencem
hoje a linhagens diferentes daquelas dos trepadores-quiete da Mata
Atlântica. Mas nem sempre foi assim. No passado, há centenas de milhares
de anos, a distribuição original da espécie parece ter sido muito maior
do que a atual, e também suas linhagens eram menos diferenciadas do
ponto de vista genômico.
Porém, com a sucessão de períodos glaciais e o avanço e recuo da
vegetação de Cerrado, os passarinhos andinos e atlânticos foram ficando
isolados uns dos outros por dezenas de milhares de anos, o que levou à
diversificação em duas linhagens.
Os dados sugerem inclusive que, durante os períodos interglaciais do
Pleistoceno, quando a temperatura se elevou e houve avanço das florestas
úmidas, ocorreram novos contatos entre trepadores-quiete do leste e do
oeste, o que permitiu cruzamentos e novas trocas genéticas entre as duas
linhagens.
Aliada aos dados paleoclimáticos, a análise da diversidade genômica
dos trepadores-quiete andinos e atlânticos sugere que tais trocas
gênicas ocorreram via Cerrado, ao norte, e não via Chaco, mais para o
sul.
“Nossos resultados indicam que as florestas andina e atlântica
atuaram como refúgios e que as populações das espécies de ambas as
regiões entraram em contato por meio da região do Cerrado, sugerindo que
a dinâmica histórica desses dois biomas é importante para a evolução
das aves florestais”, disse Cabanne.
"Os resultados estão de acordo com estudos de outros organismos e
podem indicar um padrão mais geral de conectividade entre os biomas nos
neotrópicos”, disse Miyaki.
Além disso, segundo Cabanne, o novo estudo e outros anteriores do
mesmo grupo “sugerem a existência de altos níveis de diversidade
críptica [de espécies morfologicamente semelhantes e geneticamente
distintas] entre os Andes e a Mata Atlântica e também sugerem considerar
a população andina de trepadores-quiete como uma espécie plena”.
O artigo Phylogeographic variation within the Buff-browed
Foliage-gleaner (Aves: Furnariidae: Syndactyla rufosuperciliata)
supports an Andean-Atlantic forests connection via the Cerrado
(https://doi.org/10.1016/j.ympev.2019.01.011), de Gustavo S. Cabanne,
Leonardo Campagna, Natalia Trujillo-Arias, Kazuya Naoki, Isabel Gómez,
Cristina Y. Miyaki, Fabricio R. Santos, Giselle P. M. Dantas, Alexandre
Aleixo, Santiago Claramunt, Amanda Rocha, Renato Caparroz, Irby J.
Lovette e Pablo L. Tubaro, está publicado em: www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1055790318302847.
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