O supermacaco das Américas
Paleontólogos reconstroem o estilo de vida versátil do Cartelles coimbrafilhoi, o maior símio que já habitou o continente
Há
mais de 15 mil anos viveu onde hoje é o Brasil um macaco duas vezes
maior que o muriqui, o maior macaco vivo no Novo Mundo. A prova da
existência desse supermacaco das Américas é um esqueleto fóssil quase
completo, descoberto em 1992 em uma caverna no município de Campo
Formoso, no interior da Bahia. Descrito pelo paleontólogo Cástor
Cartelle, hoje pesquisador da Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais (PUC-Minas), o fóssil do supermacaco foi analisado em detalhes
mais recentemente por Lauren Halenar e Alfred Rosenberger, paleontólogos
da Universidade da Cidade de Nova York (CUNY). Lauren e Rosenberger
concluíram que a espécie, batizada este ano de Cartelles coimbrafilhoi,
explorava o chão da floresta tão bem quanto um chimpanzé. Ao mesmo
tempo, apesar do tamanho avantajado, esse macacão podia escalar as
árvores e se pendurar em seus galhos com a mesma habilidade, embora um
pouco mais lentamente, que as espécies menores de sua família – a dos
Atelidae, à qual pertencem o bugio, o macaco-aranha, o macaco-barrigudo e
o muriqui. “O Cartelles provavelmente não se movia ou se comportava como nenhuma espécie de macaco do Novo Mundo viva hoje”, diz Lauren.
O fóssil do Cartelles coimbrafilhoi, segundo os
pesquisadores, é um dos mais importantes para reconstituir a história
evolutiva, ainda pouco conhecida, dos macacos dessa região. A
classificação desse fóssil em uma nova espécie – na verdade, gênero e
espécie – eleva para quatro o número de espécies de macacos que viveram
na América do Sul no final do Pleistoceno e hoje estão extintos. A
descoberta de novos fósseis, como os encontrados nos últimos anos por
Rosenberger e colaboradores em cavernas submersas da República
Dominicana, deve ajudar a completar esse quadro, que ainda tem como peça
importante o macaco achado em Campo Formoso em 1992.
Naquele ano, explorando um pequeno trecho da Toca da Boa Vista, que
tem 110 quilômetros de extensão e é considerada a maior caverna do
hemisfério Sul, uma equipe de espeleólogos encontrou um dos esqueletos e
avisou ao grupo de Cartelle, que achou dois esqueletos fósseis de
macacos bastante completos, com mais de 90% dos ossos preservados. Os
animais devem ter vivido em campos e florestas ao redor da caverna em
algum momento, entre 360 mil e 15 mil anos atrás, no final do período
geológico chamado Pleistoceno. Logo após a morte dos bichos, suas
carcaças devem ter sido levadas por fortes enxurradas para o interior da
caverna, onde seus ossos foram preservados. “Encontrar um esqueleto
quase completo de qualquer táxon [grupo de organismos] é muito raro”,
Lauren comenta.
As primeiras descrições desses fósseis foram publicadas em 1996, em
dois artigos científicos escritos por Cartelle e pelo paleontólogo
norte-americano Walter Hartwig, da Universidade Touro, na Califórnia. O
esqueleto detalhado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS) não representou grande desafio. Estudos posteriores confirmaram que a espécie, chamada de Caipora bambuiorum,
foi uma versão maior do atual macaco-aranha. Embora pesasse cerca de 20
quilos (o dobro de um macaco-aranha), o Caipora devia se mover de
maneira muito parecida, sendo capaz de usar tanto braços e pernas quanto
sua cauda preênsil para se deslocar com agilidade entre os galhos das
árvores.
Mais enigmático era o outro esqueleto, descrito por Hartwig e Cartelle na Nature.
Os pesquisadores concluíram que a hipótese mais provável era que se
tratava de um segundo fóssil de uma espécie descoberta um século e meio
antes em uma caverna no município de Lagoa Santa, Minas Gerais, a mais
de 1.200 quilômetros da Toca da Boa Vista. Em Lagoa Santa, o
paleontólogo dinamarquês Peter Lund encontrou em 1836 um fragmento de
fêmur e um pedaço de osso do braço, que ele identificou como o primeiro
fóssil de primata descoberto na história. O Protopithecus brasiliensis
é mencionado por Charles Darwin em seu clássico de 1859, Sobre a origem
das espécies, e as estimativas mais recentes sugerem que pesava até 24
quilos.
Cartelle conta, no entanto, que sempre desconfiou que era preciso confirmar se os dois fósseis eram mesmo do Protopithecus. Ele e Hartwig haviam comparado o esqueleto da Toca da Boa Vista com fotos dos fragmentos do Protopithecus brasiliensis,
guardados no Museu de História Natural da Dinamarca. Os dois
pesquisadores haviam notado pequenas diferenças entre os fósseis, mas as
interpretaram como variação natural entre indivíduos da mesma espécie.
“Pensava comigo que iria um dia à Dinamarca examinar melhor”, conta
Cartelle, que ainda não teve a oportunidade de realizar a viagem.
O suposto Protopithecus da Toca da Boa Vista apresentava
ainda uma combinação muito estranha de características para os
pesquisadores. Em seu doutorado concluído em 2005, a bióloga Patrícia
Guedes, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
concluiu que a dentição do fóssil, embora um pouco desgastada, reunia
características de duas subfamílias dos Atelidae: a dos Alouattinae e a
dos Atelinae. Ela observou ainda que a forma do crânio era semelhante à
dos outros Alouattinae, subfamília a que pertencem os bugios, enquanto
seus dentes pareciam mais com os da subfamília dos Atelinae, a mesma do
macaco-aranha, do macaco-barrigudo e do muriqui. Outros estudos, tanto
do crânio quanto do resto do corpo, também sugeriam que a espécie
misturava características dessas duas subfamílias, separadas há mais de
12,9 milhões de anos.
Para tentar resolver essas contradições, Rosenberger propôs a Lauren,
então sua estudante de doutorado, que dedicasse sua tese a esmiuçar
completamente os fósseis do P. brasiliensis de Lagoa Santa e da
Toca da Boa Vista. Durante algumas semanas em Copenhague e em Belo
Horizonte, ela mediu as formas e as dimensões dos ossos fossilizados,
para depois comparar com os ossos de centenas de indivíduos de várias
espécies de macacos atuais do acervo do Museu Americano de História
Natural, em Nova York. O objetivo era determinar onde os fósseis se
encaixavam na árvore filogenética dos macacos e deduzir como eles se
movimentavam, a partir da forma de seus ossos. “Inferimos a função dos
elementos do esqueleto de espécies extintas ao comparar a forma de seus
ossos com a dos ossos de espécies vivas”, Lauren explica.
“Lauren notou imediatamente que alguns dos ossos eram bem diferentes
anatomicamente”, lembra Rosenberger. Em artigo publicado neste mês no Journal of Human Evolution, ele e Lauren estão propondo que cada um dos fósseis atribuídos ao Protopithecus brasiliensis pertence, na realidade, a uma espécie diferente.
O P. brasiliensis de Lagoa Santa, segundo os pesquisadores,
devia ser um atelíneo. Embora seja difícil afirmar qualquer coisa mais
detalhada a seu respeito a partir de dois fragmentos de ossos, Lauren
supõe que a espécie fosse como um muriqui, mas duas vezes maior. Já o
esqueleto da Toca da Boa Vista era da mesma subfamília dos bugios, mas
pertencente a um gênero diferente. Sua espécie foi batizada de Cartelles coimbrafilhoi,
em homenagem a Cartelle, que há 50 anos estuda os mamíferos do
Pleistoceno brasileiro – pelo menos quatro espécies extintas levam seu
nome –, e a Adelmar Coimbra-Filho, um dos pioneiros da primatologia
brasileira, que atuou para salvar o mico-leão-dourado da extinção.
Lauren estima que o Cartelles coimbrafilhoi pesava entre 25 e
28 quilos, o que faz dele a maior das quatro espécies de grandes
macacos que viveram na América pleistocênica. O C. coimbrafilhoi
media 1,67 metro do topo da cabeça à ponta da cauda e a base de seu
crânio e sua mandíbula lembram as do macaco-barrigudo. Mas o formato
geral do crânio se parece com o de um bugio, inclusive com o mesmo
grande espaço próximo à garganta, que abriga o aparelho vocal desses
macacos capazes de emitir urros audíveis a até 5 quilômetros de
distância. Lauren explica, no entanto, que não é possível saber se o C. coimbrafilhoi
urrava tão ou mais forte do que os bugios, pois a potência do chamado
desses macacos não se relaciona de maneira simples com seu tamanho – ela
depende também dos hábitos sociais de cada espécie e do ambiente em que
vive.
O restante do esqueleto lembra o de um macaco-aranha, só que mais
robusto. O formato de seus ossos sugere uma musculatura bem
desenvolvida, adaptada para escalar e se dependurar. Hartwig e Cartelle
já haviam proposto que o animal devia se sentir em casa no topo das
árvores. Mas, por conta de seu tamanho, alguns pesquisadores descartaram
a ideia, sugerindo que a espécie vivesse apenas no chão. De modo geral,
apenas as espécies menores costumam ter um estilo de vida arborícola,
pois os animais grandes correm mais risco de quebrar um galho e cair.
Mas nem sempre é o caso. “O peso da grande maioria dos macacos
arborícolas do Velho Mundo está na casa dos 10 quilos”, explica o
primatólogo Stephen Ferrari, da Universidade Federal de Sergipe.
“Entretanto, o maior primata arborícola, o orangotango, pode chegar aos
100.”
Além de ser bem menor que um orangotango, o Cartelles coimbrafilhoi
talvez contasse ainda com a ajuda de sua grossa e longa cauda para se
agarrar aos galhos, embora ainda faltem estudos biomecânicos para
confirmar se a sua cauda podia ser usada como um quinto membro preênsil,
capaz de se pendurar em galhos e sustentar o peso inteiro do animal,
como fazem várias espécies vivas da família dos Atelidae.
Em todo caso, os ossos também indicam que a espécie tinha hábitos
terrestres bem desenvolvidos. “Parece provável que o comportamento do Cartelles
era mais parecido com o dos chimpanzés atuais, que são trepadores
habilidosos, mas passam a maior parte de seu tempo no chão”, sugere
Ferrari. Patrícia concorda, lembrando que mesmo bugios e muriquis,
normalmente arborícolas, às vezes exploram o chão. Recentemente a equipe
da primatóloga Karen Strier, da Universidade de Wisconsin-Madison, nos
Estados Unidos, registrou entre muriquis-do-norte vivendo em uma reserva
particular protegida em Minas Gerais o desenvolvimento de hábitos
terrestres. Em artigo publicado em 2012 na Plos One, Karen
defende que a mudança de comportamento esteja ligada ao aumento da
população, que passou de 60 para 300 indivíduos nos últimos 30 anos, e a
falta de espaço para tantos macacos na reserva. Segundo a pesquisadora,
ao aprender a explorar o chão, os muriquis encontraram mais comida e
houve um aumento da taxa de natalidade, embora os animais também tenham
se tornado mais vulneráveis ao ataque de predadores.
As quatro espécies extintas de macacos brasileiros – Cartelles coimbrafilhoi, Caipora bambuiorum, Protopithecus brasiliensis e Alouatta mauroi–
conviveram com a megafauna, mamíferos de grande porte, como as
preguiças-gigantes e os tigres-dente-de-sabre, que habitaram as Américas
no Pleistoceno e podem ter sido extintos por causa das mudanças
climáticas. “Espécies grandes de primatas são muito mais vulneráveis à
extinção, não importa a causa”, Lauren explica.
Até o momento, não há como saber se alguma espécie de macaco atual
descende da linhagem de algum desses grandalhões. “O trabalho de Lauren e
Rosenberger chama atenção por mostrar a carência de dados disponíveis
sobre a morfologia pós-craniana de primatas americanos”, comenta
Patrícia. “Compreender a variação da morfologia dos platirrinos [grupo
que inclui os macacos do Novo Mundo, com narinas distantes e voltadas
para os lados] é muito importante para propor hipóteses de
relacionamento entre eles e compreender a diversificação desses
mamíferos na América do Sul.”
Um fim de ano bom
Equipe achou dois fósseis de primatas às vésperas do ano-novo
Ricardo Zorzetto
O ano de 1992 havia praticamente acabado quando Cástor Cartelle,
paleontólogo especialista em preguiças extintas, fez uma das descobertas
mais importantes da primatologia brasileira. Era 30 de dezembro e ele e
dois colegas haviam caminhado duas horas por um labirinto de túneis,
passagens estreitas e abismos para chegar ao salão da Toca da Boa Vista,
onde estavam, lado a lado, os fósseis de duas das maiores espécies de
macacos que viveram nas Américas no final do Pleistoceno. “Inicialmente
pensei que fossem um macho e uma fêmea”, conta Cartelle, que mais tarde
saberia que os fósseis pertenciam a espécies distintas, ainda não
descritas.
Ele e seus colaboradores Mauro Ferreira e Rodrigo Lopes Ferreira não
chegaram lá sozinhos. No dia anterior, quatro ou cinco integrantes do
Grupo Bambuí de Pesquisas Espeleológicas, uma equipe grande que durante
anos mapeou a Toca da Boa Vista, havia começado a explorar um trecho da
caverna chamado “além mundo”, avistado os fósseis e levado uma amostra
ao acampamento, uma escola em Laje dos Negros, distrito de Campo
Formoso. “Alguém, não lembro quem, trouxe um crânio e nos mostrou”,
conta Rodrigo, à época estudante de biologia na UFMG que trabalhava com
Cartelle. “Vimos que era de um macaco e pedimos para nos levarem aonde o
tinham encontrado.”
No dia 30 de dezembro, ao deparar com os fósseis, os pesquisadores se
surpreenderam. “Estava um a cinco metros do outro e o estado de
conservação era impressionante”, recorda Rodrigo. Por mais de oito horas
ele, Cartelle e Mauro esquadrinharam o chão do local coletando tudo o
que encontravam do esqueleto dos macacos, depois descritos como Caipora bambuiorum e Protopithecus brasiliensis (este, rebatizado agora de Cartelles coimbrafilhoi),
e de um fóssil de preguiça. Réplicas dos esqueletos estarão expostas
no Museu de Ciências Naturais da PUC Minas, que reabre em dezembro,
depois de um incêndio no ano passado.
Na época em que viveram os macacos a região de Campo Formoso abrigava
uma floresta tropical úmida, resultado do encontro da vegetação do
Atlântico com a da Amazônia. Com o fim da última era glacial, o clima da
região se tornou semiárido. No dia da coleta, ao calor e à secura da
região se somaram as altas temperaturas da caverna. “Passamos um dia na
antessala do purgatório”, conta Cartelle, “nunca suei tanto”. Até ele,
que não bebe, naquela tarde tomou um ou dois copos de cerveja para
comemorar.
Artigo científico
HALENAR, L. B. e ROSENBERGER, A. L. A closer look at the “Protopithecus” fossil assemblages: new genus and species from Bahia, Brazil. Journal of Human Evolution. v. 65, n.4, p. 374-90. out. 2013.
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