Serotonina inibe inflamação sistêmica severa como a que ocorre na sepse
21 de outubro de 2019
Maria Fernanda Ziegler | Agência FAPESP
– Conhecida como o “hormônio do bem-estar”, por ser relacionada à
regulação do humor, a serotonina também é capaz de modular a inflamação
sistêmica severa, como a que ocorre durante a sepse. Artigo publicado na
revista Brain, Behavior, and Immunity descreve
esse neurotransmissor, pela primeira vez, como um possível mediador da
interação neuroimune, capaz de amenizar a inflamação não só no sistema
nervoso central como em todo o organismo.
Experimento em ratos realizado na USP de
Ribeirão Preto revela que o "hormônio do bem-estar" atua na modulação do
sistema imune, sendo capaz de induzir efeitos anti-inflamatórios e
prevenir complicações como queda da temperatura corporal e da pressão
arterial (imagem: NIDA / NIH)
O estudo, conduzido por pesquisadores da Faculdade de Odontologia de
Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FORP-USP), da Escola de
Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP-USP) e da Faculdade de Medicina de
Ribeirão Preto (FMRP-USP), mostrou que a administração da substância no
sistema nervoso central de ratos teve efeitos anti-inflamatórios,
diminuindo os níveis de moléculas sinalizadoras do sistema imune
(citocinas pró-inflamatórias) no plasma sanguíneo e no baço dos animais.
A serotonina preveniu ainda a hipotermia e a queda da pressão
arterial. O trabalho é resultado de um Projeto Temático apoiado pela FAPESP.
“Não se tinha conhecimento até então de que a serotonina poderia
inibir a inflamação sistêmica. Concluímos isso em dois estudos, um
publicado em 2017, sobre inflamação sistêmica leve – como a que ocorre
durante uma gripe ou infecção urinária – e agora este, sobre a
inflamação sistêmica severa, que nos surpreendeu ainda mais por termos
observado um efeito tão positivo em um quadro muito mais grave, que
corresponde à sepse”, disse Luiz Guilherme Branco, professor do Programa de Pós-Graduação em Fisiologia da FMRP-USP e autor do artigo.
Doença letal
Durante a sepse, observa-se uma resposta inflamatória desregulada do
organismo na presença de um agente infeccioso, ou seja, o sistema de
defesa passa a combater o patógeno de forma exagerada. O quadro inclui
aumento ou redução da temperatura corporal, queda da pressão arterial e
consequente redução da irrigação sanguínea, levando à disfunção de
vários órgãos.
Nesses casos, a falência dos órgãos é agravada pela queda acentuada e
repentina da pressão arterial, o estágio mais grave da doença,
conhecido como choque séptico. A gravidade da sepse também está nas
estatísticas: trata-se da doença que mais mata em Unidades de Terapia
Intensiva (UTIs) no Brasil (leia mais em: http://agencia.fapesp.br/26621).
Para investigar o papel da serotonina na interação neuroimune, os
pesquisadores realizaram dois tipos de experimento. No primeiro, com
modelos de inflamação sistêmica leve, a substância foi injetada dentro
do sistema nervoso central dos ratos.
Meia hora depois da injeção
intracraniana, os animais receberam também uma quantidade baixa (100
µg/kg) de lipopolissacarídeo – toxina encontrada na membrana de algumas
bactérias.
Na comparação entre os animais com serotonina e o grupo controle (que
recebeu apenas as toxinas), observou-se que o neurotransmissor
apresentou efeitos anti-inflamatórios tanto no sistema nervoso central
quanto no periférico, sendo capaz de reduzir a febre causada pela
inflamação sistêmica leve.
No artigo publicado este ano, os pesquisadores relatam o mesmo
experimento, porém com a administração de uma dose 15 vezes maior da
toxina (1,5 mg/kg), o que conferiu aos animais um quadro de inflamação
sistêmica severa semelhante ao da sepse. Nesse experimento, além de
reduzir os níveis de citocinas pró-inflamatórias, o neurotransmissor foi
capaz de prevenir a hipotermia e a hipotensão causadas pela inflamação
sistêmica severa.
“Acreditamos que o efeito da serotonina se dá pela ativação de um
reflexo anti-inflamatório que ocorre durante a inflamação sistêmica.
Esse reflexo consiste na noção de que a atividade neuronal modula a
imunidade, atuando por meio de conexões neurais do cérebro para outros
órgãos, sobretudo o baço, reduzindo a produção de citocinas
inflamatórias”, disse Clarissa Mota, primeira autora do artigo e pós-doutoranda na FMRP-USP, com bolsa da FAPESP.
De acordo com a pesquisadora, o objetivo para os próximos estudos é
investigar, de modo mais aprofundado, os mecanismos relacionados às
regiões cerebrais que produzem serotonina ou que comprometam a
inflamação sistêmica.
“A descoberta de que a serotonina também atua na modulação da
inflamação abre caminho para estudos referentes ao desenvolvimento de
novas terapias contra a sepse e outras desordens inflamatórias. Estamos
juntando as peças de um quebra-cabeça para o melhor entendimento da
fisiopatologia da inflamação e das funções terapêuticas da serotonina.
Há décadas, os sistemas eram estudados em separado. Hoje, sabemos que o
organismo é como uma rede conectada, com todos os sistemas trabalhando
em conjunto”, disse Mota.
Dessa forma, a serotonina, um produto do metabolismo do triptofano,
atua nessa rede conectada, desempenhando uma série de funções dentro do
cérebro e de outros órgãos. Por ser um neurotransmissor, a serotonina
opera como um mensageiro nas sinapses – a conexão entre os neurônios –,
modulando a comunicação. A atuação vai, portanto, desde a regulação de
comportamentos fisiológicos, como função do sono, respiração e humor,
até a coagulação de plaquetas, função gastrointestinal e, como foi
comprovado pelos pesquisadores da USP de Ribeirão Preto, modulação do
sistema imunológico.
Mota explica que por se tratar de um estudo inicial para a
investigação de mecanismos neurais da inflamação e de terapêuticas –
ambos pautados na serotonina – optou-se por fazer um teste de
pré-tratamento.
“Experimentalmente, partimos da investigação dos efeitos do
pré-tratamento para a identificação do potencial da serotonina em
modular a inflamação. Agora que nossos estudos mostraram que a
serotonina é capaz de prevenir muitos efeitos da inflamação sistêmica,
os nossos próximos estudos devem ser pautados pela busca de um
tratamento curativo, em vez de um pré-tratamento [preventivo] para o
melhor entendimento de como a serotonina pode modular a inflamação”,
disse Mota.
Antidepressivos e ansiolíticos
O potencial translacional do estudo foi destacado em editorial assinado por Christoph Rummel,
pesquisador da Universidade de Giessen (Alemanha) que tem contribuído
para o entendimento dos mecanismos mediadores de vias de comunicação
neuroimune durante a inflamação. “Há potencial aplicação translacional
para o uso de inibidores da recaptação de serotonina [presente em
medicamentos] para tratar os principais distúrbios depressivos, bem como
a sepse. Isso representa novas e emocionantes possibilidades, que
precisam ser investigadas”, escreveu Rummel no editorial.
Como explicaram os autores, ao injetar serotonina no sistema nervoso
central dos roedores, o experimento mimetizou a ação de medicamentos
antidepressivos e ansiolíticos que aumentam a disponibilidade desse
neurotransmissor no cérebro de pacientes.
“Inibidores de recaptação de serotonina têm sido usados pela
indústria farmacêutica para o tratamento de desordens psiquiátricas,
como ansiedade e depressão. São medicamentos que aumentam a
biodisponibilidade de serotonina na fenda sináptica do sistema nervoso
central. O que observamos no estudo foi que durante a inflamação
sistêmica há uma queda da produção de serotonina [endógena] pelo
organismo. No estudo, a administração de serotonina exógena reverteu
parte desses sintomas da inflamação sistêmica”, disse Branco.
O artigo Central serotonin prevents hypotension and hypothermia
and reduces plasma and spleen cytokine levels during systemic
inflammation (doi: 10.1016/j.bbi.2019.03.017), de Clarissa M.D.
Mota, Gabriela S. Borges, Mateus R. Amorim, Ruither O.G. Carolino,
Marcelo E. Batalhão, Janete A. Anselmo-Franci, Evelin C. Carnio, Luiz
G.S. Branco, pode ser lido em www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0889159118307700?via%3Dihub.
O artigo Central serotonin attenuates LPS-induced systemic inflammation
(doi: 10.1016/j.bbi.2017.07.010), de Clarissa M.D. Mota, Caroline
Rodrigues-Santos, Rodrigo A.R. Fernández, Ruither O.G. Carolino, José
Antunes-Rodrigues, Janete A. Anselmo-Franci, Luiz G.S. Branco, pode ser
lido em www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0889159117302179?via%3Dihub.
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